CONTINUAÇÃO DO MESMO CAPÍTULO
A porta levou a um corredor escuro. Um corredor pequeno e estreito com pequenas lamparinas presas a parede que fornecia iluminação precária, e um cheiro forte de poeira e mofo.
O mais preocupante de tudo isso era que o corredor não mostrava aonde levava, era tão grande que o final não era visível. Aquela situação não agradava nada a Kale, que sempre odiou seguir por caminhos escuros.
Sem outra escolha, ele andou calmamente e com uma feição dura de quem não estava em nada apreensivo.
Quanto mais andava, mais o cheiro mudava, em um momento ele percebeu o aroma de incenso e de velas perfumadas, as paredes se abriam e o corredor sombrio levou a uma sala que não era muito diferente.
Kale avançou e analisou o local. Aquilo era completamente uma loja de antiguidades, era misteriosa e parecia que contava as mais diversas histórias.
A sala tinha poucas janelas, e todas elas estavam tampadas por cortinas claras que permitiam que a luz do sol entrasse e iluminasse precariamente o local. Depois de alguns anos trabalhando na Biblioteca Real, Kale até entendia o motivo disso, o ar e a umidade que as janelas abertas traziam, danificam obras antigas.
E olhando para todo aquele acervo ao seu redor, Kale viu que tinha muito o que proteger.
Livros era espalhados em prateleira de madeira, pequenas adereços, como baús, porta-joias e caixas estavam um em cima do outro. Cadeiras, mesas, armas, estátuas de antigos deuses, estavam por todo o canto.
Kale observou totalmente admirado, relíquias valiosas estavam ali.
Ele, também, procurou por alguém que pudesse ajudá-lo a encontrar o que precisava, mas a única atendente disponível estava ocupada com outro cliente. Então, Kale tomou seu tempo saciando sua curiosidade.
Ele parou em frente ao que mais o interessava, não é muita surpresa que Kale parou na frente de um estante de livros.
Ele leu cada um dos títulos, sabendo que nos lugares mais escondidos tem as maiores preciosidades.
A corça e o caçador.
Dinastia Liang e sua Queda.
Do Norte ao Sul, as grandes planícies habitadas.
De todos esses um em específico chamou sua atenção.
As Antigas Criaturas da Primeira Era.
Os olhos de Kale paralisaram naquele ponto. Uma sensação pesada e familiar se instalou em seu peito, ele se aproximou da estante velha e tomou coragem o suficiente para pegar o livro em suas mãos com todo o cuidado.
Ele folheou delicadamente e passava os olhos pelas palavras, como o seu trabalho diário era na leitura de antigas e complexas obras, Kale adquiriu uma habilidade especial da leitura rápida.
É claro que ele não leu o livro todo, mas entendeu o cerne da questão em poucos segundos.
Kale achou o livro muito interessante. Era como uma apostila, explicava e relatava as teorias do autor, sobre antigas espécies que ele tinha certeza que uma vez já existiram.
Sereias, elfos, fadas, duendes, criaturas da noite e até dragões. Imagens anatômicas e provas concretas de que eles já viveram e pisaram nessa terra.
Kale percebeu que poderia ficar horas lendo e relendo, absorvendo analisando todas as informações contidas naquele livro.
Porém, algo nas últimas páginas chamou sua atenção, parecia um comunicado de editores que republicaram o livro.
Por mais que Cassio Falo tenha escrito diversos livros importantes para a ciência e a história, ao fim de sua vida, tudo o que ele escreveu foi manchado por sua loucura da velhice. Portanto, nenhum dos textos a seguir devem ser levados a sério, de acordo, com vários outros estudiosos que vieram depois.
Aparentemente, nenhuma das pessoas que leram realmente acreditavam que aquele livro podia ser levado como uma pesquisa científica real.
Aquilo era decepcionante e ele se perguntou se os estudiosos desconsideravam aquele livro por comprovar que as informações eram falsas, ou só rejeitaram pelo estigma de seu estado mental. Kale guardou o livro aonde achou e fez uma anotação mental para procura-lo depois. Quando não estivesse a serviço da Biblioteca
Os seus olhos passaram por mais objetos, seu corpo avançando e andando entre corredores de objetos distintos.
Estava se aproximando do balcão, quando outra coisa o chamou a atenção.
Ele congelou naquele momento, o seu corpo ficou frio, e sua cabeça virou lentamente para o objeto que seus olhos tinham visto só de relance.
Kale ficou maravilhado, ele nunca tinha visto algo tão lindo. Um colar. Com a corrente dourada feita de ouro, e três estrelas brilhantes como amuleto, aquela peça brilhava.
Os pés de Kale iam em direção ao colar sem ele notar, ele não conseguia desviar o olhar, e parar de sentir tão abismado. Algo dentro dele sentia que havia algo de errado, que aquela reação nele não era normal, que sua mente não estava agindo de modo racional.
Mas seus olhos não deixavam a caixa de vidro, com o aparador que guardava e expunha aquela peça. Ele queria para si. Mesmo que jamais fosse usar.
-Eu tomaria cuidado se fosse você. – Uma voz ecoou entre o silêncio. Kale acordou do transe de imediato e olhou para quem tinha falado um pouco assustado.
Ele percebeu que o cliente que estava ali tinha saído, Kale nem tinha notado, e que a mulher gorda, alta e morena estava atrás do balcão o esperando.
Porém, sua atenção continuava voltando para o colar, algo dentro de Kale estava gritando e se contorcendo.
-Dizem que o colar é amaldiçoado. – A mulher continuou- Que foi enfeitiçado há muito tempo pelo antigo Rei Kiran para tramar a morte de sua esposa, a Rainha Dinin. Falam que o brilho se torna irresistível, e que as correntes o sufocam até a morte.
Ela falou calmamente e em silêncio Kale escutava. O colar era enfeitiçado. Agora tudo fazia sentido.
Kale respirou fundo e conteve o desejo de olhar para a peça de novo.
-Ainda bem que são só boatos, não? – A mulher perguntou com um sorriso. Kale tentou sorrir de volta mais saiu mais uma careta.
-A peça é muito bonita, apesar da má fama. – Kale respondeu engolindo seco. A mulher olhou para o colar, e Kale a observou, da mesma forma que ele sentia com o colar, havia algo de diferente com aquela mulher, algo que fazia Kale se arrepiar e se contorcer por dentro.
-Sim, é mesmo algo precioso. E mesmo que os mitos de ser amaldiçoado serem falsos, o fato de ter pertencido a Rainha é real.
Kale levantou as sobrancelhas intrigado, uma joia real em um lugar como aquele? Aquilo era uma boa surpresa, ou uma imensa mentira.
Ele sorriu.
-É mesmo? – Kale perguntou, a senhora olhou para o colar por alguns instantes, e da mesma forma que aconteceu com Kale, os olhos delas brilharam e se perderam, ficaram foscos, como se ela tivesse viajado dentro de sua própria mente. Ela franziu a testa e murmurou.
-Pertenceu à Rainha ou ainda vai pertencer. – Ela falou virando a cabeça de leve. – As informações estão meio obscuras, sabe?
Kale recuou.
-Me desculpe? – A mulher deu um salto e saiu do transe do colar, piscou várias vezes e soltou uma risada sombria.
-Ah. Me perdoe. – Ela sorriu. – Às vezes as histórias usam o contador não o contrário.
Kale estava ficando cada vez mais desconfortável com aquela mulher, ela com certeza não era normal, uma bruxa, talvez? Apesar de suas desconfianças, aquilo não era um problema seu.
A mulher se aproximou mais de Kale.
- Então, vamos cuidar de você querido? – Ela disse. – O que te trouxe à minha loja hoje?
-Eu estava procurando por alguns livros raros. Ouvi dizer que ele podiam estar aqui.
A mulher sorriu e se virou para as prateleiras pegando algumas edições.
-Temos vários livros inestimáveis, tenho certeza de que vamos encontrar o seu.
-O livro que eu quero é bem específico, na verdade. – A mulher sorriu para Kale.
- Hum. Então, talvez precisa de mais informações para encontra-lo. Você sabe o título?
- O Chamado das Forças do Universo. – Quando Kale falou, a mulher congelou. Ela estava de costas e se virou lentamente para Kale, com uma expressão fria, gelada, todo o calor e a simpatia que ela oferecia para o cliente tinha ido embora.
-Como é? – A mulher perguntou.
- O livro se chama... –
-Eu escutei essa parte. – A mulher o interrompeu brusca, os olhos cortantes. – Por que está interessado nesse livro?
Kale endureceu.
-Com todo respeito, senhora, isso não é da sua conta. – A mulher ficou rígida.
-Você está bastante enganado se acha que vou vender algo tão perigoso sem saber...
-Então, você o tem? – Kale perguntou. A mulher paralisou.
-Não foi isso que disse. – Ela respirou fundo, se acalmou e sorriu para Kale de novo. – Qual é o seu nome, querido?
Kale suspirou e disse irritado, aquilo já estava demorando demais e estava tirando sua paciência.
-Kale, senhora. – Ele respondeu. Surpresa ascendeu em seus olhos.
-Kale. – A mulher repetiu o nome. – Significa “órfão” no antigo idioma, sabia?
Kale ficou rígido de novo e desconfortável.
-Sabia sim. – Ele respondeu brusco.
-Você conhece o antigo idioma. – Ela constatou um fato. – Como?
-Faço parte da Sociedade da Biblioteca Real, senhora. Por isso preciso daqueles livros, é para a segurança do Reino.
A mulher congelou, ela voltou seus olhos para Kale meio paralisada.
A cultura de Astoria era definida por preceitos entendido por todos, existiam coisas que eram respeitadas simplesmente por estarem em cotidiano, as pessoas foram ensinadas a isso, e continuariam fazendo isso, passando isso para seus filhos, e para os filhos de seus filhos. O respeito ao saber e a importância do conhecimento era uma daquelas coisas ensinadas desde da curta idade a serem recebidas.
Kale era da Biblioteca Real de Astoria, a importância daquele título e daquela posição o trazia status e respeito, apenas os homens e mulheres mais inteligentes de todo o continente podiam ser aceitos na Biblioteca Real. A mulher sabia de todas essas coisas e tinha um débito no tratamento que tinha oferecido a Kale. Isso dava uma autoridade a ele que não tinha antes.
Ela engoliu seco, desviou os olhos.
-Eu sinto muito. – Ela falou baixo. – O senhor parecia novo demais para uma posição tão privilegiada.
- Não há problema. – Kale falou ficando subitamente desconfortável. – Sabia exatamente o que estava abrindo mão ao não dizer de onde eu vim.
Os olhos de Kale ficaram mais consoladores, diziam para ela que estava tudo bem, a mulher ficou mais relaxada, Kale tirou o peso de suas costas que dizia que ela não o ofendera.
-Eu devia ter desconfiado antes de qualquer forma. – Ela falou com um meio sorriso. – Ou pelo menos reparado em suas roupas. Porém, as vestes estão pretas. Ainda de luto pelo Rei?
Kale adotou uma postura reta, respeitosa como havia sido ensinado pelos superiores.
- Passou apenas três semanas, senhora. Os mestres ficarão de luto pelo menos um ano.
Surpresa brilhou os olhos da mulher.
-Realmente muito tempo. -Ela levantou as sobrancelhas. – Mas acho que não devo ficar surpresa, o Rei foi um grande protetor da Biblioteca. Muitos dos meus livros raros foram confiscados por causa de decretos dele.
Kale decidiu voltar para o pretendido
-A senhora tem ou não tem o que estou procurando?
A mulher suspirou.
-Não tenho. – Kale murchou. Pra que tinha perdido tanto tempo naquele lugar, então? -Mas, sei quem tem.
Kale voltou os olhos para a mulher.
- Aposto que não me dará sem algo em troca? - Perguntou Kale desconfiado. A mulher o olhou no fundo dos olhos.
-Sim, é verdade.
-E suponho que dinheiro não é o suficiente – Kale falou. A mulher balançou a cabeça.
-Existem coisas mais importantes que o dinheiro.
-E o que seria?
A mulher deu de ombros.
-Liberdade, talvez? – Kale não entendeu.
-Como que eu concederia liberdade a senhora?
Ela deu um passo para trás o olhando.
-Eu tenho uma dívida com um dos Mestre de sua Biblioteca. Mestre Suez. Essa dívida me prende – Ela falou. – Te dou o nome do atual dono e o que devo será pago.
Kale pensou, aquilo era impossível para ele, ele estava em uma hierarquia baixa demais para perdoar dívidas, não teria como garantir isso. Mas Kale precisava daquela informação. Ele, no fim, concordou, mesmo sabendo que não poderia fazer nada.
-Avisarei que a senhora... – Ele esperou pelo nome.
- Suzana.
-A senhora Suzana está livre de quaisquer conflitos com a Biblioteca Real. -Kale concordou. – Agora me dê o nome.
Suzana andou atrás do balcão em busca de papel e penas.
-Você sabe qual o conteúdo desses livros? – Ela perguntou enquanto anotava. Kale olhava pela loja enquanto esperava.
-Não me foram passadas tantas informações. E eu também não perguntei. Além disso, que tipo de dívida a senhora contraiu com Mestre Suez?
Suzana se aproximou com o papel já escrito. Ela estendeu para ele.
-O livro é um compêndio de informações sobre a nossa religião. Nossas divindades, suas características, poderes, aonde estão agora, até a forma de chama-los. – Kale congelou com a mão estendida.
- E por que essas informações seriam tão perigosas a ponto de não querer me informar sobre seu paradeiro?
Suzana deu de ombros.
- Conhecimento é uma forma de poder. E nem todos entende o perigo de mexer com forças tão antigas. – Ela entregou o papel na mão de Kale, os dedos se tocaram, Suzana agarrou a mão de Kale e a puxou para si. – Tome cuidado. – Ela sibilou. – Qualquer erro pode custar caro.
Kale engoliu seco e acenou em afirmativo. Com o papel e as informações que precisava ele caminhou em direção a saída processando tudo que tinha acontecido.
Há poucos metros da porta, Kale virou e perguntou.
- Você não respondeu qual era a dívida que você tinha.
Suzana assentiu e disse.
-Mestre Suez me pegou praticando clarividência. - Uma bruxa, então. Ele sabia que tinha alguma coisa a ver com isso.
-Por que ele não a denunciou? – Ser uma bruxa não era um crime dentro do Reino, porém, fazer clarividência por dinheiro era, simplesmente porque vigaristas sempre tentavam lucrar dando visões falsas e muitas vezes levando populações inteiras ao pânico.
-Ele me disse que se eu estivesse sempre disponível para tocar sua mão e prever seu futuro, ele não me denunciaria para a Guarda Real.
Kale não devia ficar surpreso, havia corrupção em todos os lugares.
-Isso já faz quase uma década. – Ela disse. – E estou cansada de estar sempre servindo.
Kale duvidava que Mestre Suez a deixasse partir tão facilmente, mas não falaria nada, ele tinha que sair com aquele papel, e não achava que isso aconteceria se ele não cumprisse a sua parte do acordo.
Kale se virou para sair, mas uma coisa o impediu.
-Você disse que toca as mãos para ter visões. Você tocou as minhas. – Kale falou. – Alguma boa previsão para mim?
Suzana olhou para Kale e balançou a cabeça, o semblante caindo e parecendo triste.
-Não. Nenhuma boa visão.
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