Duas horas depois, estou cantando Welcome to New York com Karin Olsson em um karaokê no centro de Barcelona, desafinando com todo o meu coração enquanto as outras nos incentivam com assovios e batidas de palmas no ritmo da música.
Ninguém perguntou sobre Stephen, se eu o traí, se sou mesmo a ex-namorada dele e como é namorar um jogador famoso. É como se ele não existisse na minha vida, o que é um ótimo presságio.
Já ouvi tantas histórias sobre o time — peripécias das jogadoras que estão aqui e de outras que já foram transferidas — que minhas bochechas doem de tanto sorrir. Mas não é nada que me impeça de praticamente gritar contra o microfone.
— Like any true love, it drives you crazy. But you know you wouldn't change anything, anything, anything.
E de repente eu quero chorar, simples assim. Na minha garganta, o choro se transforma em um riso aliviado. Continuo a cantar ao lado de Karin, que faria um trabalho muito melhor sozinha, mas não reclama da minha falta de harmonia.
Quando a música acaba, Sofia e Alba se adiantam para cantar um reggaeton, e eu me sento ao lado de Emily, exatamente entre ela e... Ember.
Ember, aliás, ainda não falou diretamente comigo — com exceção da coisa toda envolvendo saber ou não meu nome —, mas não é porque se porta de forma fria ou distante. Ela é apenas reservada, mas parece a ponto de sorrir o tempo todo.
Não que eu a conheça. Sei lá, assistir a uns quinhentos edits da pessoa no TikTok não é conhecimento.
E é tudo culpa de um algoritmo que sabe muito bem como prender a atenção de uma bissexual em um relacionamento fracassado com um cara que considera qualquer demonstração de afeto um atentado à masculinidade. Connie Ember, com o sorriso tranquilo, a voz grave e o sotaque irresistível do norte da Inglaterra — afinal, se nem a Taylor Swift resiste a um britânico, como eu poderia? — era exatamente o que eu precisava para me tirar um pouco da realidade.
Os devaneios saíram do meu controle — como tudo na minha vida, que delícia — e, quando fechei o contrato com o Barça, tive que silenciar qualquer palavra relacionada a Ember só para dar uma chance para a minha mente se recuperar um pouco.
Deu certo? Não deu.
Porque eu posso não conhecê-la de verdade, mas conheço a forma como ela se move em campo, e passei tempo demais encarando o corpo dela de todos os ângulos possíveis. Uma paixonite nunca foi tão... inoportuna.
Então utilizo a tática milenar para lidar com alguém que faz meu corpo esquentar: finjo que ela não existe.
Pela duração da música que Sofia e Alba cantam, troco sussurros com Emily como se fôssemos as melhores amigas do mundo — e somos — e como se ela não tivesse destruído a minha vida há três semanas — mas destruiu.
Depois, o time incentiva Ember a ir até o microfone cantar Bohemian Rhapsody, que pelo visto é a música dela nesses momentos, e ela bate com o ombro no meu. Olho na sua direção, pega totalmente desprevenida.
— Canta essa comigo? — ela pergunta.
Por algum milagre, não entro em combustão. Mas gaguejo:
— P-por quê?
— Estou contando com o fato de que você vai fazer a minha voz não soar tão ruim assim em comparação. — Ela dá uma piscadinha. — Graças a Deus, meus dias como a pior cantora do time chegaram ao fim.
É uma coisa bem escrota de se dizer, mas ela fala isso de uma maneira tão suave e com um tom brincalhão que faz parecer um elogio. Como se cantar mal agora fosse algo nosso.
Ou talvez eu seja iludida, fica aí essa outra possibilidade.
— Isso é o que vamos ver — digo, ficando de pé. Depois me viro para as outras. — Quero abrir uma votação aqui. Vamos ver quem ganha o título de pior cantora, Ember ou eu.
— Nossa, perfeito. — Alba une as mãos, abrindo um sorriso maquiavélico. — E a pior cantora paga a conta de hoje.
— De novo isso, cara — Emily resmunga. — Você sempre acha uma desculpa para outras pessoas pagarem a conta.
— Isso se chama responsabilidade financeira — Alba retruca.
— Se chama extorsão.
Ignoro as duas e olho para Ember, estreitando os olhos.
— Vamos ver se sou pior do que você mesmo. Algo me diz que é uma tarefa difícil.
— Cuidado aí, novata. — Ela continua com aquela expressão que não é um sorriso, mas quase. — Cadê o respeito pelas mais velhas?
— Nossa, falou a idosa de trinta anos — deixo escapar, porque sou burra.
Pronto, agora ela sabe que eu sei a idade dela.
— Tenho trinta e três — ela corrige, me salvando dessa.
— Tem razão, é velha mesmo. Mas foi você quem começou. — Ando até os microfones, ainda falando. — E também quero apontar que a música é na sua língua materna, não na minha, então me dá um desconto.
No fim, Ember nem precisa me dar um desconto coisa nenhuma.
Assim que ela começa a cantar, fica óbvio que ninguém vai tirar dela o título de pior cantora do time. Mesmo interrompendo algumas letras da música para rir, sem conseguir me conter, eu sei que me saio melhor do que ela.
Há dois microfones na cabine e a letra é projetada na parede oposta, com as garotas sentadas em bancos estofados logo abaixo. O jeito como as outras meninas estão claramente se acabando de rir de mim e de Ember me distrai um pouco em alguns momentos, eu canto errado, como palavras e, num geral, faço a pior performance em karaokê da minha vida.
E não importa, porque a Ember é tão pior.
Está aí uma coisa que eu não sabia sobre ela, que ela tinha essa capacidade de cantar tão mal e, mesmo assim, continuar com uma expressão serena e movendo o corpo devagar, de uma maneira quase hipnótica, como se não fosse nada demais, como se estivesse arrasando. Não consigo deixar de observá-la sob as luzes roxas e rosas. Ela tem o tipo de confiança tranquila de alguém que não precisa fingir ser o que não é, que está apenas confortável na própria pele.
É... reconfortante, de certa forma. Porque, ao lado dela, eu começo a pegar emprestado um pouco disso. No meio da música, Ember passa a cantar olhando para mim, com um meio sorriso e completamente fora do tom.
Não tenho forças para desviar o olhar. Ela destroça o melhor verso, me fazendo quase engasgar de rir enquanto canta:
— I don't wanna die. I sometimes wish I'd never been born at all.
E aí a gente se embaralha de tal forma na estrofe seguinte que até Ember não se aguenta e começa a rir, perdendo várias partes da letra — um avanço, na verdade — e eu só torço para o vídeo que Alba está filmando nunca ser postado na internet.
A música parece acabar rápido demais, e eu balanço a cabeça, tentando recobrar o fôlego.
— E aí? — Ember pergunta contra o microfone, se dirigindo às outras. — Qual é o veredicto?
— Nossa, nem precisa de votação, mas vamos lá — Alba diz e levanta a mão. — Mãos para cima quem concorda que a Connie ainda canta pior do que... do que... ah, não consigo nem pensar numa comparação, você é o pior que fica, Connie.
— Vai, gira a faca mesmo — Ember reclama, mas não soa muito séria. Quando as mãos de todas se erguem, ela diz: — Vocês só estão com inveja da forma como eu reinvento a música.
— Deve ser isso mesmo — digo, rindo, e me aproximo para dar tapinhas nas costas dela.
E daí, só pra deixar claro o quanto eu sou trouxa, ela bagunça o meu cabelo. Assim, brincando. Como se eu fosse a porra de uma criança.
Meu sorriso desmancha, meu estômago despenca e uma fada morre em algum lugar. Porque, pra Ember, é isto mesmo que eu sou: uma criança. Mesmo que eu seja só oito anos mais nova, ela é uma das mais velhas no time e eu sou uma das mais jovens. Sem chances pra nós. Vou ter que me imaginar adotando um cachorro com outra pessoa.
Desvio o olhar, tentando não demonstrar o quanto estou incomodada, e me sento ao lado de Emily de novo.
— E aí, já me perdoou? — ela pergunta, com os olhos brilhando.
— Vai sonhando.
É mentira porque, no fundo, ela sempre estará perdoada por qualquer coisa que faça. Nossa amizade é assim. Mas ainda dói.
Ela assente, ficando um pouco mais séria. A mudança em sua expressão é tão imediata que me arrependo do que disse. Não quero ser a pessoa diminuindo o brilho dela e, ao mesmo tempo, não sei o que fazer para dissipar essa mágoa.
Ember impede que a gente se aprofunde no assunto, ocupando de novo o lugar ao meu lado e dizendo:
— Valeu a tentativa pelo menos. Mas você vai ter que ficar com o segundo lugar entre as cantoras, Rebeca.
— O segundo ou o penúltimo? — Arqueio as sobrancelhas.
— Tudo é uma questão de perspectiva.
Ela se inclina e pega a minha comanda, que está na mesinha à minha frente. Seu braço roça no meu ombro, o contato da pele dela na minha tão inesperado que me dá um frio na barriga. O mundo para de girar por um segundo, só que apenas eu pareço notar.
Caramba, este dia não está pegando leve com o meu emocional. Aceitar a ajuda de algum psicólogo disponível para o time de repente não me parece uma ideia tão ruim assim.
Depois Ember se endireita com a minha comanda na mão e o tempo volta a correr em uma velocidade normal. Eu só pedi uma água, mas o gesto dela ainda me assusta. Tento pegar a comanda de volta, e Ember a estende no alto. Mesmo que estejamos sentadas, a diferença de altura entre nós é evidente, com ela tendo a vantagem.
— Não precisa mesmo pagar — digo, afinal todas estão aqui por minha causa. Pensando bem, eu é que deveria estar pagando a conta.
— Precisa sim — Alba intervém. Essa mulher parece ver tudo. — São as regras.
E assim a noite vai se encerrando, todas começam a se levantar e a recolher os casacos. Faço isso também, entendendo a deixa, e baixo a guarda o bastante para deixar o meu olhar se demorar em Ember, agora do outro lado da sala, recolhendo as comandas de Karin e Pilar.
— E essa sua quedinha pela Connie, hein? — Emily sussurra ao meu lado, me fazendo pular no lugar. — Surgiu quando?
Ai, filha da mãe.
— Que quedinha?
— Nem tenta.
Eu suspiro e a puxo mais para o canto, perto da parede, onde há uma lâmpada comprida e cor-de-rosa. Falo tão baixo que precisamos ficar grudadas:
— Está tão óbvio assim?
— Não é sutil, amiga. Mas fica tranquila, se a Connie percebeu, ela é educada demais para comentar.
Não é algo muito tranquilizante, mas vai ter que valer.
Alba, com seus olhos de águia, nota Emily e eu juntas no canto e faz a pergunta de milhões:
— Então é verdade? Vocês duas estão mesmo juntas?
E eu quero morrer.
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