Existem momentos em que eu desejo não ter nascido. Nenhuma vida vale o
tanto de sofrimento que eu passei. - #####
No reino de Astoria, existia um cargo específico para Contadores de Histórias.
Eram homens e mulheres espalhados por todo o limite territorial que tinham como objetivo conservar as culturas e histórias que a população estava ocupada demais para aprender sozinha. Essas pessoas, apesar de escolherem o campo de estudo em que mais gostavam – como guerras, música, política- sempre espalhava uma mesma história.
Eles diziam que na época da conquista dos Condados Capitais, no momento em que Astoria foi formada, o Conquistador Yasima criou o reino em cima de três pilares essenciais. Coisas que o Conquistador acreditava ser a chave para uma civilização em paz e avançada.
Ele acertou em pelo menos uma das coisas, Astoria com certeza era avançada, em paz, nem tanto.
Contudo, os pilares eram simples, Ciência, Religião e Poder. Essas três bases criaram Astoria e ainda eram valorizadas acima de qualquer outra coisa. Alguns diziam que era o que mantinha Astoria unida e funcionando.
Amira Yasima sempre acreditou nisso. Ela foi ensinada a acreditar nisso. Que valorizar os saberes científicos os tornariam inteligentes, sábios e estratégicos, que ter em mente os deuses e sua adoração os traria paz, benção e proteção e que confiar no poder, tanto na política quanto nos exércitos era a chave para a proteção em geral.
Contudo, naquele momento, todas as coisas que Amira acreditava estavam sendo desafiados.
O conhecimento não fazia nenhuma diferença em sua vida, mesmo com sua inteligência ninguém dava a ela credibilidade real, apesar das orações e juras feitas, nada impediu que os deuses tirassem seu pai, e o poder, político e militar, estava se despedaçando ao perder cada vez mais em uma guerra que durava cinquenta anos.
Amira mergulhava nesses pensamentos sombrios, quando sabia que aquele era o último lugar aonde devia ter tais pensamentos.
Estavam todos orando. Suas cabeças baixas e bocas se mexendo sentados em tapetes no chão com olhos fechados e cabeça se concentrando.
Amira devia estar fazendo aquilo, o que todos estavam fazendo. Mas seu coração estava gelado demais para fazer a adoração que todos faziam.
Ela decidiu se concentrar em outra coisa. Seus olhos se movimentos dentro da abadia, o segundo lugar mais bonito que tinha visto.
Amira ia para lá toda semana, mas nunca teve a oportunidade de explorar cuidadosamente todos os detalhes incrustados.
Existia três lugares que representavam os pilares de Astoria, o Palácio de Mármore, a sede do poder do reino e a morada dos reis e rainhas, a Abadia de Celene, o templo em que adoravam a protetora dos humanos, e A Biblioteca Real, o lugar que continha os conhecimentos de tudo o que os humanos conseguiam relatar.
De todos eles, Amira tinha que admitir que a Abadia era a melhor, bem, Amira nunca tinha entrado na Biblioteca Real para saber, mas apenas pela fachada de pedra escura, deteriorada pela idade, ela descobrira que a Abadia era mais bonita.
Tudo era para representar a importância, o lugar extremamente cuidado, construído de forma elementar para evidenciar como Astoria valorizava esses pontos.
Na Abadia aquilo tinha tido todo o sucesso, as paredes eram revestidas de pintura, imagens da deusa e dos outros deuses que mostravam sua vida esplêndida enquanto ela ainda vivia na terra.
Tudo esculpido do ouro, os detalhes feitos em pedras preciosas, o lugar era esplêndido, Amira poderia o olhar por horas, e não se cansar disso.
-A visão é linda, não? – Alguém se dirigiu a Amira. Ela virou os olhos em direção aquela voz baixa que sussurrava para não incomodar os outros. – Passo a maior parte dos meus dias aqui e ainda não me acostumei, acho que nunca acontecerá.
Era o Sacerdote. A grande autoridade da Religião, o homem que podia falar com os deuses, entender seus desejos. Aquele homem tinha poder. Até magia. Se os boatos estivessem certos.
- Realmente. – Amira concordou. – Venho a anos aqui, já devia ter me acostumado. – Ela falou olhando para os detalhes.
O Sacerdote a olhou, era um homem velho, de idade avançada, seu cabelo caído por causa da idade. A pele marrom escura e os olhos cansados, sempre sombrios.
Ele se aproximou de Amira e pigarreou.
-Não posso deixar de notar... – O Sacerdote falou. – Que a Vossa Alteza que não está muito concentrada hoje. Existe algo que gostaria de conversar?
Ele perguntou com a voz gentil, Amira sorriu um pouco, meio constrangido por ter sido pega pela única pessoa que poderia ver aquilo como um insulto grave.
Ela respirou fundo, o Sacerdote nunca tinha sido um inimigo para sua família ou para o Rei, todos os líderes dos três pilares, na verdade andavam unidos, pois acreditavam na unidade dos poderes e em sua eficiência.
Porém, Amira estava sofrendo, e nenhuma conversa aliviaria suas dores.
-Meu pai morreu, meu senhor. – Amira disse. – Não estou pronta para agradecer aos deuses ainda.
O Sacerdote a olhou surpreso, ofereceu seu braço para ela o acompanhar, Amira fez uma careta, uma careta na frente do Sacerdote que viu aquilo, ele, porém, sorriu, Amira tinha o hábito de ser sincera, aquilo muitas vezes não era algo politicamente bom. O Sacerdote, contudo, não parecia ligar, ele tinha conhecido pessoas demais, para entender que a honestidade era sempre a característica mais favorável em uma pessoa.
E ele não a deixaria se lamentar no chão da igreja, quando sabia que apenas sua companhia poderia fazer Amira se sentir melhor.
-Nunca tive a chance de dar minhas condolências. – O Sacerdote disse para Amira depois de começarem a andar pelas laterais da Abadia observando as pinturas nas paredes.
-O senhor fez o funeral do meu pai. Aquelas palavras foram o suficiente para mim. – Amira respondeu.
- Aquilo, porém, jamais vai ser o suficiente para mim. – Ele sussurrou.
-Sacerdote... – Amira começou.
-Sua mãe parecia ter uma visão parecida com a sua. – O Sacerdote falou. – Se recusando a vir a Abadia, de até mesmo falar comigo.
-Sinto muito por isso. – Amira respondeu. – Minha mãe tinha que culpar alguém. Ela direcionou sua fúria aos deuses.
-Bem, vamos orar para que as entidades não façam o mesmo com ela.
Amira engoliu seco, não falou como com o passar dos anos a rainha ficara cada vez mais fraca na fé, como ela mau acreditava que deuses existiam e que eles olhavam por nós, e ela só estava ali naquele momento para aplacar uma profunda consciência culpada e por puro desespero. Como um moribundo procurando por coisas impossíveis apenas por estar desesperado para se salvar. Mas naquele caso, a rainha só queria salvar o marido.
-E mesmo assim, ela está ali. – O Sacerdote olhou para a rainha. – Com os olhos fechados e os joelhos no chão.
-Algo a fez mudar de ideia.
-E o que seria? Ela está orando pelo seu irmão? Faz sentido ela pedir por sua segurança.
Amira balançou a cabeça negativamente.
-Na verdade não, minha mãe está orando pelo meu pai. – Amira respondeu. – Por mais que ela esteja brava com Celene por tira-lo do mundo dos vivos, ela não consegue cogitar que meu pai não esteja em um mundo de paz agora.
-Um sentimento lindo. – O Sacerdote falou. – A devoção de uma esposa mesmo na morte do cônjuge. Muitos casamentos políticos são fadados ao fracasso. Seu pai e sua mãe sempre fizeram a diferença.
Os olhos de Amira ficaram molhados, lembrando da dor e solidão da mãe por ter perdido o amor de sua vida, o homem que compartilhou com ela tudo o que ele tinha.
Ela devia estar devastada. Amira tinha perdido o pai, mau estava aguentando aquela dor, e ela se perguntou se o sentimento da mãe era ainda maior em intensidade.
-E você? - O Sacerdote perguntou enquanto a mente de Amira divagava. – Eu tenho que admitir que a encontrei orando também.
O rosto de Amira esquentou. Ela deu um sorriso torto.
-Bem, eu não consegui resistir. Estava pedindo por minha paz de espírito e a calma em minha mente.
Aquilo fez o Sacerdote se surpreender, as sobrancelhas se levantaram em confusão.
-Não vai pedir pelo seu irmão? – Ele perguntou, Amira deu de ombros.
-Todos estão pedindo pelo meu irmão. Alguém tem que pedir por mim.
O Sacerdote ficou em silêncio, a analisando intensamente, depois ele desviou os olhos e apertou o braço de Amira de forma forte.
-Eu tenho olhado para você, Amira. – Ele falou. – E tenho pedido por você também.
Amira engoliu seco, seus olhos se movendo para baixo. Ela deu um sorriso falso e disse mesmo no limiar da emoção.
-O senhor me comove. Agradeço muito. Mas, tenho certeza que há causas maiores do que a minha.
O Sacerdote sorriu.
-Como o que?
Amira deu de ombros.
-Temos um conflito que vem conquistando Astoria, Sacerdote. Não há como negar por mais que gostemos de ser ignorantes.
O homem arregalou os olhos, não esperando que Amira falasse sobre isso.
-Eu peço por isso também, princesa. Pedi por vinte anos. E devo dizer que teremos uma resposta dos deuses em um futuro próximo.
Amira levantou as sobrancelhas. Ela não replicou ou perguntou porque, o Sacerdote tinha contato direto com os deuses, Amira não podia duvidar.
-Uma resposta boa?
-Não sei. Talvez não seja boa para nós. – O Sacerdote franziu a testa- Mas o assunto foi deixado de lado. Você sabe que sempre me preocupei com sua saúde.
Amira paralisou, o sangue em suas veias ficou gelado, ela desviou o olhar e seu queixo trincou, ela não queria falar sobre isso, era um assunto delicado que a deixava desconfortável.
-Agradeço por isso.
Ela não desenvolveu, não contou todas as informações que ele queria saber, mas o Sacerdote tampouco se afastou.
-Como estão suas crises? Pediu opinião de mais alguém?
Amira ficou em silêncio, seus olhos vidros focaram em uma das pinturas em sua frente, era Celene, a Deusa da Vida, a Protetora dos Humanos, com uma espada grande na mão, seus cabelos pretos estavam esvoaçados e seu rosto em uma careta de ódio, atacando outra divindade. Ela se perguntou porque a deusa estava com tanta raiva? Por que ela brigaria com outras entidades que sempre estiveram com ela?
Quando Amira era menor, ela perguntava a aquele mesmo Sacerdote as histórias por trás das imagens. Algumas ele sabia, explicava as ocorrências de modo mágico e divertido prendendo a atenção de Amira, contudo, aquele era um dos desenhos que não tinha nenhuma explicação. A Abadia tinha sido construída séculos atrás, algumas das histórias tinham sido perdidas com o passar da autoridade de pessoa para pessoa.
Sempre diziam que Amira tinha sido abençoada por Celene, por ter tido mais uma chance na vida, dada a uma experiência de quase morte na infância, e que, querendo ou não, Amira era muito parecida fisicamente com os desenhos registrados na Abadia. As características eram semelhantes, a pele escura, os cabelos pretos longos e escuros caindo em cascata, e os traços nos rostos. Diziam que Amira tinha sido abençoada com sua beleza.
Amira não iria mentir ao dizer que os elogios sempre foram muito bem-vindos, ela não sentia, porém, muita simpatia compartilhada com a deusa naquele momento.
-Amira? – O Sacerdote perguntou.
Ela saiu do transe, seus olhos se afastando da pintura e reencontrando o Sacerdote que a olhava com sobrancelhas levantadas.
-Me perdoe. Viajei dentro da minha mente. – Ela se desculpou, querendo evitar o assunto. Aquilo preocupou ainda mais o Sacerdote.
Ele assentiu com a cabeça, como se dissesse que não tinha problema, mas seus olhos falavam outra coisa, mostravam fascínio, preocupação, a analisavam profundamente.
-Sempre foi muito avoada, não? – O Sacerdote perguntou. – Trabalha mais dentro de sua cabeça do que fora.
Amira o olhou e engoliu seco, os olhos do Sacerdote, que a dissecavam como se quisesse corta-la para descobrir o que há dentro, eram pesados demais.
-Você não respondeu minha pergunta.
Amira fechou os olhos fortemente, ela pensava que tinha se livrado de seu escrutínio.
-Os episódios tem sido mais frequentes, deixando-me e minha família mais assustados. Minha mãe principalmente.
O Sacerdote assentiu, entendendo.
-E assumo que as respostas não foram encontradas por nenhum dos Mestres?
Amira balançou a cabeça negativamente.
-Eles não entendem o que está acontecendo comigo. Acham que eu fiquei louca, assim como todas as outras pessoas que perguntei sobre a fonte da minha doença.
-Mas, pelo menos seus episódios não são recebidos com violência, certo? Tudo o que há de errado fica simplesmente na sua cabeça.
Amira se virou para o Sacerdote. Pelo menos?
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