It's like I got this music in my mind
Saying it's gonna be alright
É como se eu tivesse uma música na cabeça
Dizendo que vai ficar tudo bem
— Shake it off
Não, eu não estou saindo com a minha melhor amiga.
Acontece que tenho uma irmã gêmea.
E, por mais que as novelas mexicanas tenham me alertado sobre o perigo nisso, nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Nem somos tão parecidas, Andressa tem bem menos músculos do que eu e o cabelo dela é um pouco mais curto. Se tivessem tirado uma foto melhor, ficaria nítido que não era eu ali, aos beijos com Emily. Mas a foto borrada levantou questionamentos e, mesmo que tivéssemos terminado, Stephen se aproveitou da situação para construir toda uma narrativa em que ele era a vítima.
O pior é saber que tudo poderia ser resolvido se Andressa e Emily fizessem declarações desfazendo todo o mal entendido.
Mas isso não vai acontecer e, depois de sermos questionadas por Alba no karaokê, Emily e eu acabamos dizendo que foi só um beijo sem importância, no calor do momento, e que na realidade somos apenas amigas.
Dá pra ver, na forma como Alba franze a testa, que não compra essa desculpinha. Emily ainda tenta limpar mais a própria barra, dizendo:
— Nem foi algo romântico. Eu não sou...
Ela não termina, como se a palavra em si fosse algo que não deve ser dito em voz alta. Meu coração dói por ela, de verdade.
— Lésbica? — Alba questiona, as rugas em sua testa se tornando mais pronunciadas. — Sério mesmo?
Algo no tom dela me deixa na defensiva. Quase sem me dar conta, coloco o ombro na frente de Emily, me interpondo entre ela e Alba.
— Deixa isso pra lá — digo, meu tom firme.
O olhar de Alba vacila entre mim e Emily, depois os ombros dela relaxam.
— Certo, desculpa. — Ela passa a mão no cabelo, das raízes loiras até as pontas azuis, piscando rápido. — Eu não devia ter falado nada, isso é entre vocês duas.
Depois ela se vira, sem dizer mais nada, e sai da sala de karaokê. Um silêncio desconfortável prevalece até que Sofia toma a dianteira, se despedindo e sorrindo amarelo, e todas vão aos poucos deixando a sala também.
Ember fica por último, junto comigo e com Emily. Não sei como, mas ela dá um jeito de segurar todas as comandas nas duas mãos, se preparando para ir até o caixa que fica do lado de fora.
— Se vocês estão juntas — ela diz, sem olhar para a gente —, não precisam esconder isso aqui.
— Não estamos juntas — falo rápido.
— É. — Emily está com a voz rouca, suas palavras tão sem emoção que parece ler de um script. — Aquilo nas fotos são duas amigas demonstrando carinho.
Já na porta, Ember se vira na nossa direção.
— Está certo, se vocês estão dizendo... — Ela acena com o queixo e se vira de novo para sair. — Até segunda, Rebeca.
Quando já passaram uns dez segundos depois de ela ter saído, eu começo a andar até a porta.
— Ela só se despediu de você, hein — Emily diz, indo atrás de mim.
Eu paro e olho para ela. Toda essa situação me deixou com um gosto amargo na boca e, no momento, nem consigo registrar a tentativa de uma provocação bem intencionada.
— Será que nem para elas você consegue...?
Deixo a frase no ar, e Emily levanta uma sobrancelha.
— Sair do armário?
— É, né. Você ouviu o que a Ember disse, não precisa se esconder aqui, é um espaço seguro. Mais da metade das jogadoras é sapatão, pode apostar.
Ela suspira e passa uma mão pelo rosto.
— Eu sei, Becs, mas não posso arriscar baixar a guarda. Minha avó tem problema no coração e, sei lá…
A implicação fica no ar, sem que ela complete a frase. Não sei o que dizer.
Como se Emily, a pessoa mais maravilhosa que eu conheço, pudesse causar mal a alguém. Para mim, pode parecer óbvio que isso não vai acontecer. Sei, no entanto, que as coisas são bem diferentes para quem as vivencia, ainda mais quando estão acostumadas a se sentirem responsáveis por tudo, como é o caso da minha amiga.
— Isso não vai acontecer — digo, e ela abre a boca para protestar, mas levanto uma mão. — Mas tudo bem, vem cá.
Abro os braços e, com o rosto se iluminando, ela me deixa envolvê-la. Enquanto nos abraçamos, sinto o corpo dela relaxar, e acabo me acalmando junto. Isso tudo vai passar. De alguma forma, vai ficar tudo bem mesmo. Emily é o que realmente importa, e não vou deixar uma situação criada pelo idiota do Stephen fazer ela se assumir num momento em que não se sente segura.
— Está tão ruim assim? — ela pergunta contra o meu ouvido. — Lidar com tudo o que aconteceu, quero dizer.
— Não, já está melhorando — minto com facilidade. Depois me afasto e faço uma careta exagerada. — Mas você está estragando as minhas chances com a Ember, agora ela pensa que temos um romance secreto.
Ela ri, revirando os olhos.
— Fica tranquila. Pelo que ouvi falar, ela gosta de joguinhos. Talvez o nosso suposto romance seja um desafio para ela.
Dou um tapa no ombro dela, que solta um "ai" surpreso.
— É melhor já não existirem fanfics com nós duas, viu?
O indício de sorriso desaparece do rosto dela.
— Sério que isso é uma possibilidade?
Merda. Eu e a minha boca grande. Não devia ter dito nada.
— Tô brincando, não tem nada. Vem, vamos para casa. Tenho malas para desfazer e um monte de caixas me esperando.
Nós duas vamos até a porta, sem dizer mais nada. Olho uma última vez para trás, para as luzes neon da cabine, para os microfones deixados um pouco tortos e para o telão ainda mostrando a última parte da letra de Bohemian Rhapsody.
Até que, para um primeiro dia, não foi ruim.
O complexo de prédios baixos onde a maioria das jogadoras mora fica ao lado do estádio e do centro de treinamento, e não precisamos pagar aluguel, apenas as contas de luz, água e internet. O espaço é pequeno, mas não é como se eu fosse passar muito tempo nele.
Depois da noitada no karaokê, dedico o final de semana a arrumar a minha mudança. Consumo uma dieta balanceada de macarrão, shakes com whey protein e comentários de ódio do Twitter e do Instagram. Saúde é tudo.
No final, estou com tanta dor no corpo e dormi tão mal que não sei como vou sobreviver à semana. Por isso, acabo pedindo socorro à Emily na segunda-feira.
Preciso montar uma estante para os poucos livros que trouxe comigo e para os outros que pretendo comprar aqui. Mas o manual de instruções, mesmo escrito em vários idiomas, parece impossível de ser compreendido.
Emily está segurando o papel e semicerrando os olhos enquanto tenta ler as letras miúdas. O celular dela está entre nós duas, tocando uma playlist qualquer, e conversamos calmamente enquanto tentamos entender o que fazer com a estante.
— Você foi mesmo direto do aeroporto para o treino de sexta? — ela pergunta, colocando o manual de lado. — Por que não esperou para ir hoje?
Estou sentada no chão ao lado dela, com as pernas cruzadas, e diante de mim está a bagunça de parafusos e placas de MDF que, me prometeram, vai virar uma estante. Pego uma das placas e a examino enquanto respondo:
— Já fazia semanas que a data para o meu início no time estava marcada, eu não queria começar a minha carreira chegando atrasada. Ainda mais com a fama que os brasileiros têm.
— Ah, amiga, nada do que você faça vai vencer essa fama. E do que adianta? Hoje a gente já vai se atrasar.
— Como assim? — Olho na direção da porta, que está aberta para o corredor, como se isso fosse me teletransportar para o campo. — Que horas são?
— Ainda faltam quinze minutos pras 14h, relaxa. — Emily pega a placa de MDF da minha mão e a posiciona ao lado de outra. — Mas com certeza vamos demorar mais do que quinze minutos pra montar isso aqui.
— A gente deixa isso pra depois, Emy.
— Que nada, agora que começamos, vamos terminar.
Bufo e olho de novo para a porta, a tempo de ver uma figura alta passar, parar e voltar alguns passos.
Ember. Claro que é Ember.
Pelo menos Emily e eu não estamos montando uma cama juntas.
— O que está acontecendo aqui? — Ember pergunta, apoiando o antebraço na porta. Ela tem uma tatuagem, o desenho de um tigre rodeado de flores, que serpenteia do pulso até o cotovelo.
— Estamos nos arrumando para sair — respondo.
Quase ao mesmo tempo, Emily diz:
— Vamos montar a estante da nerd aqui.
— Nem começa. — Faço cara feia para ela. — Já falei que a gente deixa isso pra depois.
Emily me ignora, virando o rosto na direção de Ember.
— Quer um desafio? Precisamos montar isso em quinze minutos.
Ember se endireita, abrindo um sorriso de canto.
— Adoro um desafio.
Na mesma hora, Emily vira para mim, arqueando as sobrancelhas, e murmura:
— Não falei? — Controlo o impulso de empurrá-la. Ela se vira de novo para Ember. — Tem uma parafusadeira? A Becs não tem.
— Tenho, já volto.
Assim que ela sai, eu fixo meu melhor olhar assassino em Emily. Ela coloca o indicador sobre a boca, pedindo silêncio. No corredor, escuto uma porta se abrindo e fechando.
Ah, não. Não pode ser.
Ember é minha vizinha de porta?!
— Você sabia disso? — sussurro com urgência.
— Sabia o quê? — Emily faz uma cara de inocência.
Ai, que cara de pau.
— Podia ter me contado que ela mora no apartamento ao lado!
— E perder essa sua reação? Jamais.
Antes que a gente entre demais na discussão, Ember volta com a parafusadeira. Hoje ela não está de óculos, deve ter escolhido já ir só de lentes de contato para o treino. Com o cabelo castanho preso, usando uma regata branca e com um casaco de moletom aberto, até parece que estou assistindo a um dos edits dela no TikTok.
Melhor ainda quando ela começa, junto com Emily, a unir as placas de MDF e parafusá-las. Connie Ember usando uma parafusadeira? Nossa, o TikTok está perdendo e nem sabe.
— Então você gosta de ler? — ela pergunta, olhando de relance pra mim.
— Só os clássicos. — Dou um sorrisinho, ciente de que a minha única função nisso tudo é entregar as placas para elas duas.
— Só pornografia, ela quer dizer.
— Nossa, Emy, nossa amizade aqui por um fio e você me queimando. Que coragem, hein.
Ember olha para nós duas, balançando a cabeça, depois vai em minha defesa:
— Pornografia também pode ser clássico.
— Exatamente — eu digo, mesmo que os livros que leio sejam tiragens independentes de romances eróticos. Mas eu já li Machado de Assis, então posso me considerar eclética no meu gosto literário. — E você, gosta de ler?
— Nah. — Ela dá de ombros. — Prefiro esperar sair o filme.
Ela olha para mim com os olhos brilhando de divertimento e, pronto, está perdoada por isso.
Conseguimos montar a estante em dez minutos.
Ember, Emily e eu chegamos um pouco atrasadas no treino de qualquer forma, mas ninguém liga. Assim que termino de trocar de roupa, meu celular começa a vibrar com uma ligação de Andressa. Eu aceno para as meninas irem ao campo sem mim e, quando fico sozinha no vestiário, atendo.
— Lembrou que tem irmã, é? — já começo dizendo.
— Você é canceriana demais para seu próprio bem.
— Nosso mapa astral é o mesmo, sua besta. Nem vem tentar usar a astrologia contra mim.
— Como você está? — ela pergunta com um suspiro.
De fato canceriana demais para o meu próprio bem, eu retruco:
— Como você acha?
De tudo o que aconteceu, a forma como Andressa lidou com as coisas foi o que mais magoou. Emily pode não ter ido a público por receio de se assumir para a família, mas Andressa só... não queria se envolver. E, sei lá, para alguém que resolveu beijar a minha melhor amiga logo depois do primeiro jogo do Brasil na Copa, isso é meio hipócrita. Se ela não queria se envolver, podia só não ter se envolvido e ponto.
— Ai, Rebeca, eu li alguns comentários e, sinceramente, nem é tão ruim assim.
Todos os meus pensamentos se silenciam por um instante.
Não sei, acho que de tudo o que eu li ao longo das últimas três semanas, depois de as fotos de julho terem vazado para a mídia no início de setembro, nada se compara a isso. "Nem é tão ruim assim".
Pigarreio numa tentativa de dispersar o nó na minha garganta e aperto mais o telefone contra o ouvido.
— Você ao menos gosta da Emily?
— Foi só um beijo, eu já disse.
Um beijo que destruiu a minha imagem, mas tudo certo se para ela ela não valeu nada. Emily merece mais do que isso. E eu também.
— Que seja, Dêssa, por que você tá me ligando?
— Só queria saber se você tá bem.
— Que lindo. Agora me diz o motivo real.
Ela espera uns três segundos até dizer:
— Queria te perguntar se posso transformar o seu quarto num escritório. É por pouco tempo, só enquanto você está morando fora.
Aí está.
Quero dizer “não” e ponto, sem pensar duas vezes sobre isso. Mas sei que, entre Barcelona e o Rio de Janeiro, onde os treinos com a Seleção Brasileira vão acontecer, quase não visitarei a casa dos meus pais em Araçatuba, no interior de São Paulo.
— Tudo bem, faz o que quiser — respondo num tom seco. Antes que ela possa pedir mais alguma outra coisa ou fazer um comentário passivo-agressivo, acrescento: — Preciso ir para o treino. A gente se fala depois.
E desligo o celular.
Às vezes, Paulina e Paola, de A Usurpadora, não são nada perto da minha relação com Andressa.
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