Here you are now, calling me up, but I don't know what to say
I've been picking up the pieces of the mess you made
Agora você vem me ligar, mas eu não sei o que dizer
Ando juntando os fragmentos da bagunça que você fez
— All you had to do was stay
A mensagem em destaque na tela de bloqueio do meu celular diz:
Podemos nos encontrar? Estou em Barcelona.
Os últimos dias foram uma correria, mal tive tempo de respirar depois do jogo na Champions e de repente era novembro, e passei uma semana treinando com a Seleção Brasileira no Rio e o tempo todo sentindo, de maneira completamente bizarra, como se aquele não fosse o meu time. Quando foi que me acostumei com as jogadoras ao meu redor se comunicando em catalão, espanhol e inglês, e não só em português?
De volta a Barcelona, estou começando a ficar confortável com o meu time ao meu redor — Despacito tocando no vestiário por insistência de Alba, e Sofia gravando alguma dancinha pro TikTok enquanto Emily filma com o celular. Mas lá vem essa maldita mensagem me tirar de órbita de novo.
Podemos nos encontrar? Que merda é essa?!
Quando Emily aponta a câmera do celular para mim, eu forço um sorriso e logo desvio o olhar, torcendo para ela entender que não estou no clima. Ainda nem acredito que já é a última semana de novembro. Tem decoração de Natal por todo canto na cidade, e alguém pendurou uma guirlanda sobre a porta do vestiário, pelo lado de dentro.
As fotos tiradas de mim e de Olga, a mulher que encontrei em Valência, já não circulam tanto na internet e foram completamente esquecidas pelos programas de TV. Mas ainda estou ansiosa com a possibilidade de as pessoas me reconhecerem quando não estou aqui, na segurança do vestiário, e tudo porque meu ex é um babaca famoso. Ninguém nunca tinha se interessado desse jeito pela minha vida antes. Pensei que os paparazzi só iam atrás de gente tipo a Britney Spears.
Porém, mesmo com medo de câmeras escondidas pelos cantos, eu estava começando a respirar aliviada.
Agora isso.
Desligo o celular sem responder a mensagem e o guardo de volta na mochila.
Uma das assistentes técnicas entra no vestiário bem nessa hora, pedindo licença e carregando uma pilha de coletes amarelos de pano.
— O treino de hoje vai ser duro — ela explica —, temos uma previsão de chuva forte, mas é bom para vocês se prepararem para essas condições em uma partida. Vamos dividir vocês em dois times, da maneira mais equilibrada que conseguimos considerando seus pontos fortes e fracos.
Ela começa a chamar os nomes que vão vestir o colete: Alba, Karin, Emily, por aí vai. Depois manda todas elas para fora, deixando o restante de nós para discutir estratégias no vestiário.
— Vocês têm dez minutos, depois nos encontrem lá fora — ela avisa antes de sair.
Eu e as meninas nos aproximamos mais, nos sentando coladas umas às outras nos bancos, e Ember se senta ao meu lado, a coxa dela quase roçando na minha. Não chega a me tocar, mas a possibilidade disso me mantém distraída. Pilar Martin começa a falar enquanto Sofia termina de fazer uma trança no cabelo preto e liso dela.
— Nos primeiros vinte minutos a gente reforça a defesa. Elas vão querer marcar o primeiro gol logo e, se a gente não deixar entrar, vão começar a ficar impacientes e errar os passes.
Eu assinto, como se estivesse prestando muita atenção, daí olho de relance para a perna de Ember. O calção azul do uniforme subiu um pouco na coxa dela. Ela ainda não colocou as meias, então é muita pele à mostra, quase tocando na minha.
— Se a bola entrar, aí a gente muda de tática — Pilar continua dizendo. — Nesse caso, a Marge e a Rebeca podem avançar mais junto comigo, com a Sofia e com a Irina. A Connie vai armando a jogada pelo lado direito, depois a gente inverte lá na frente.
Ember empurra a coxa para o lado ao ouvir o nome dela. Seu joelho encosta no meu. Uma espécie de eletricidade sobe pela minha perna.
Ela olha para mim.
— Acha que podemos repetir o que fizemos naquele jogo?
Sei bem de qual jogo ela está falando, o nosso primeiro da Champions. Três gols meus, três assistências dela.
Assinto, meu rosto esquentando.
— Podemos tentar.
Pensar nesse jogo, agora que já não estou consumida pela adrenalina dele e pela raiva que senti quando vi fotos pessoais minhas expostas em todo lugar, me deixa estranhamente nervosa. Não sei se entendo o que aconteceu ali. Todas as bolas de finalização estavam vindo para mim. Ember estava tocando todas. Para mim. Mas por quê?
Pilar termina de falar, e Ember também dá alguns conselhos, depois nos levantamos para sair. Minha cabeça ainda está repassando o toque do joelho de Ember no meu, suas palavras, minha promessa de tentar.
Eu paro na soleira porta e olho para trás.
As outras meninas estão avançando para o campo, mas Ember ficou para terminar de vestir as meias e as chuteiras.
— Ember? — chamo, meu coração na boca.
Ela levanta o rosto.
— Pode me chamar de Connie. Sério.
Não sei se quero, mas assinto.
— Ok, Connie — testo o nome, curto e suave na garganta, minha língua tocando de leve o palato da boca. Connie. É delicado. Mesmo ela sendo tão alta e tendo todos aqueles músculos, combina com ela. — Queria saber... naquele jogo da Champions... por que você estava tocando todas as bolas para mim?
É uma boa pergunta, sei que é, mas ela franze a testa como se não entendesse direito.
Eu atuo no meio do campo, geralmente mais para trás e armando as jogadas. Já marquei gols decisivos em alguns jogos, mas, por mais que eu seja bem ofensiva na minha posição, as atacantes sempre serão as prioridades para as bolas de finalização.
— Por que eu não tocaria? — ela pergunta.
Dou de ombros.
— Não estou perguntando por que você não tocaria. Quero saber por que tocou.
Os lábios dela se curvam em um sorriso pequeno, particular. Como se eu tivesse pegado-a no pulo dessa vez.
— Você precisava daquilo — ela admite. — Mais do que qualquer uma de nós.
Calor se espalha pelo meu peito, pelo meu estômago.
É verdade. Eu precisava daquilo. Precisava tanto.
E ela notou, não sei como, nem sei se era um acordo com o time todo. Talvez todas elas vissem, mesmo sem comentar nada, a forma como cada coisa que eu fazia fora de campo era esmiuçada pela mídia, distorcida e usada contra mim.
Uma esperança traiçoeira se instala, junto com uma pergunta que se repete na minha cabeça:
Você presta atenção em mim tanto quanto presto em você?
É algo silencioso, não vou cometer o erro de dizer as palavras em voz alta e destruir essa camaradagem que começa a crescer entre a gente.
Ember termina de amarrar as chuteiras.
Ainda estou parada na porta, sem ter conseguido dizer nada.
— Vamos? — ela pergunta, se levantando.
Ignoro as batidas aceleradas do meu coração ao vê-la assim, tão perto, num espaço em que estamos sozinhas, admitindo que me ajudou a fazer três gols só porque eu precisava deles.
— Vamos.
Mal a gente pisa no gramado, ouço as reclamações. Todas as jogadoras se amontoaram ao redor da assistente técnica que dividiu os times. Ember e eu nos aproximamos de lá, trocando olhares preocupados, e a assistente aponta para mim.
— Vem cá, Rebeca, bota o colete — ela ordena, me estendendo o tecido amarelo.
— Ah, puta que pariu! — Emily protesta, cruzando os braços. O xingamento em português indica que está brava de verdade, o que é raro.
— Como assim? — pergunto para a assistente, me aproximando, mas ainda sem aceitar o colete. — O que está acontecendo?
— Uma falcatrua — Alba diz.
— Isso nem faz sentido! — Sofia exclama. — Por que deixar a gente planejar a estratégia se você ia trocar jogadoras?
— Porque as estratégias de vocês não importam. — A resposta da assistente, tão direta ao ponto, faz todo mundo ficar num silêncio estupefato. — Nesse treino, eu sou a técnica do time de coletes e o Roberto ali — ela aponta para um cara a alguns passos de distância, que parece envergonhado — vai ser o técnico do time sem coletes. Vocês precisam aprender a nos ouvir. E precisam aprender a lidar com imprevistos. Rebeca, veste a merda desse colete.
Eu pego o colete, arqueando as sobrancelhas, e o visto sem dizer mais nada. A relação entre o time e a comissão técnica é... conturbada, para dizer o mínimo.
Olho na direção dos bancos, onde Carlos Alvarez, nosso técnico, observa tudo. Ele é uma presença soturna na maioria dos treinos — mas não vem para todos — e dizem que não tem nem quarenta anos, mas parece mais velho, com as sobrancelhas grossas e a barba preta mal-feita.
— Não quero uma repetição do que aconteceu no jogo de quarta — a assistente técnica diz, e volto minha atenção para ela.
O jogo da Champions, ela quer dizer. No qual detonamos o outro time.
— Mas nós ganhamos — Alba protesta, falando exatamente o que estou pensando, e o que as outras devem pensar também.
— Ganharam por sorte, mas não seguiram nenhum direcionamento que o Carlos passou para vocês — a mulher retruca, como se esperasse por isso. — No próximo jogo, quero que vocês façam o que nós orientarmos. É sério, meninas, confiem na nossa equipe. Estamos aqui para isso. Não vai ser como no ano passado.
A menção ao ano passado força um silêncio no grupo. Algumas das jogadoras se entreolham, parecendo receosas, e só posso imaginar que tipo de memória vem à tona.
Não sei como foi para o time antes da minha chegada, mas ouvi falar de conflitos com o antigo técnico. E isso explica a tensão com a comissão de agora, a hesitação em confiar.
— Tá, que seja — Pilar diz, encerrando a discussão. — Vamos jogar logo. Rebeca, não entrega tudo o que conversamos.
Ela se afasta com o resto do time dela, e Ember dá de ombros antes de acompanhá-la, me lançando um olhar resignado. Não vai ser hoje que repetiremos o que aconteceu no jogo da Champions. Karin se afasta junto, não mais vestindo um colete como o meu.
Fico ali, cercada pelas outras usando coletes. Parece que a estratégia era deixar a gente conversar e, depois, trocar uma jogadora de cada time. Uma palhaçada.
Alba se aproxima, dizendo:
— Pode entregar tudo sim. A Karin com certeza vai falar para elas sobre o que discutimos mesmo.
Sinto meu rosto esquentar.
— Tudo o quê? — tento desconversar.
— Fala logo, Becs. — Emily também se aproxima. — O que vocês conversaram? Qual é a estratégia delas?
— Eu... — Ah, merda, não tem outro jeito de dizer. — Não prestei muita atenção, mas...
Alba bufa e coloca uma mão no meu ombro.
— Tá bom, tá bom, não precisa mentir. Respeito a sua lealdade. Vamos improvisar.
Solto um suspiro aliviado porque realmente não prestei muita atenção no que tínhamos discutido no vestiário. Talvez eu me saia melhor no jogo depois dessa confusão do que se tivesse ficado com o outro time. Teria que improvisar de qualquer jeito.
Assumimos nossas posições. O apito soa.
E, uns cinco minutos depois, a chuva despenca sobre nós.
A grama fica escorregadia e, na primeira vez que vou tocar a bola para Emily tentar um gol, escorrego e erro o passe. Xingo baixinho, tentando me recompor.
Ember fica com a posse de bola e vai levando-a devagar, esperando o time dela se reorganizar na defesa. De repente, me lembro de uma parte da estratégia de Pilar: defender em vez de atacar nos primeiros minutos. Parece ter continuado a mesma.
O assistente orientando o time delas, no entanto, grita para partirem pro ataque. Pilar para com a bola no pé, claramente indecisa. Eu corro para cima dela, chegando por trás e recuperando a bola.
Saio em disparada, buscando por Emily ou por Alba. O calção, a camisa e o colete estão encharcados, grudando na minha pele. Ember vem da esquerda e começa a correr quase ao meu lado, seus ombros se chocando com os meus. Ela me empurra, eu a empurro de volta.
Toco a bola direto para os pés de Emily e...
Não sei direito o que acontece depois, se Emily consegue marcar o gol ou não. A ponta da minha chuteira trava na grama e eu caio para a frente, de alguma forma levando Ember comigo.
Meus joelhos afundam na grama molhada, o corpo de Ember embaixo do meu, uma das minhas mãos ao lado do ombro dela, a outra em seu abdômen enquanto busco apoio. Nossos olhares se encontram e... tudo para.
Merda.
Merda.
As gotas de chuva são geladas, mas meu corpo todo esquenta.
— Merda, Rebeca — Ember diz, ecoando meus pensamentos.
Eu deveria me desculpar. Tenho quase certeza de que estava segurando a camisa dela quando caí, num ângulo em que os assistentes não poderiam ver e marcar falta, e devo ter me esquecido de soltá-la a tempo.
Eu também deveria ficar de pé, mas, com a mão que já está tocando a barriga dela, agarro com mais força a sua camisa do uniforme. Não soltei antes, não vou soltar agora.
— Está tudo bem? — pergunto, sem fôlego.
Ela solta o ar com força e assente. Então coloca uma mão no meu braço. A pele dela está fria e seus dedos se fecham ao redor do meu antebraço, apertando de leve.
— E você? — ela devolve a pergunta.
Faço que sim e me obrigo a começar a levantar, apoiando um joelho entre as pernas dela, com o outro do lado da sua coxa. Nossos calções estão sujos de barro e, parecendo vir de longe, ouço gritos de comemoração, mas não olho para os lados ou para trás.
Quando Ember levanta a cabeça, soltando o meu braço para apoiar os cotovelos no chão, vejo que há pedaços de grama em seu cabelo. As gotas de chuva pingam em seu rosto, molhando suas bochechas, seus cílios e sua boca.
Merda, penso de novo, porque o que mais posso fazer?
Não tenho chance alguma.
Fico de pé e estendo a mão para ela, que aceita a ajuda para se levantar.
Por alguns segundos, ela continua segurando a minha mão, olhando para mim de uma forma que não sei decifrar. Sinto um frio na barriga, do tipo que vem quando a gente chega no ponto mais alto de uma montanha-russa.
— Vai lá fazer um gol, Rebeca — ela diz, enfim me soltando.
— Ok — respondo, e ainda não recuperei o fôlego.
Olho para ela uma última vez, molhada da chuva, suja de grama e lama, e mesmo assim com aquele quase sorriso que tem um efeito catastrófico nos meus batimentos cardíacos. Então me afasto correndo, tentando acompanhar as outras e voltar para o jogo que, enquanto estávamos no chão, continuou rolando como se nada tivesse acontecido.
Porque nada aconteceu.
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