Oh my God, look at that face
You look like my next mistake
Ah meu Deus, olha pra esse rosto
Você tem cara de ser o meu próximo erro
— Blank Space
Assistir a gravações de jogos de futebol com Ember se torna rotina.
No sofá do meu apartamento, nós passamos alguns fins de tarde — que facilmente se estendem até o meio da noite — revendo todas as partidas de outros times na Liga F, além de jogos dos times masculinos na Champions. Também projeto na TV os jogos da Libertadores que tenho baixados no meu computador, falando sobre as jogadoras com uma saudade que me pega desprevenida. Até quando eu digo “essa daí é uma filha da puta” durante o jogo da final que aconteceu em outubro, entre dois times brasileiros, as palavras soam quase carinhosas.
É tudo muito casual. E, ao mesmo tempo, parece algo íntimo. Essas noites não são um segredo porque eu poderia comentar sobre elas com outras pessoas. É só que eu não quero. Prefiro que fique entre nós.
Tá, eu deveria pelo menos mandar uma mensagem para Emily, convidando-a para fazer parte desse rolê, mas não consigo. Ela pode ser minha melhor amiga e fazemos quase tudo juntas, mas Emily e eu temos nossos próprios passatempos. E, pelo visto, Ember e eu também.
Quando, no primeiro dia de dezembro, Ember viaja para jogar pela Inglaterra na Liga das Nações, me sinto um pouco perdida. Ela fica fora por quase uma semana.
Eu me forço a lembrar de que existe vida para além do gramado, da academia e do meu apartamento. É fácil me retrair no inverno, mas aproveito o final de semana sem a possibilidade de ver Ember para continuar a minha exploração da cidade.
Não vou à praia porque está muito frio, porém saio para comprar decorações de Natal com Emily e Alba. Barcelona é tão bonita nessa época do ano, parece um filme. E ainda me choca perceber que não estou vendo isso sentada numa poltrona do cinema, ou mesmo só observando fotos na tela do celular. Estou aqui, esta é a minha vida agora.
Stephen não tenta entrar em contato comigo de novo, e não sinto falta dele. Mas sinto falta de Ember.
Ela volta na quinta-feira, e conversamos um pouco na academia, depois no treino. Não pergunto se ela vai passar no meu apartamento depois. Nunca pergunto. Ou ela vai, ou não vai.
No meu apartamento, tomo um banho longo e finjo não me importar com a hora. O dia escurece. Faço uma mistureba de grãos e ovos cozidos para o jantar. Como em frente à TV, assistindo a uma série em que não consigo realmente prestar atenção.
Então me dou por vencida e, munida do meu cobertor, vou até o apartamento de Ember.
Assim que toco a campainha, tenho impulso infantil de sair correndo. Ember já foi até o meu apartamento algumas vezes, sempre com a desculpa de lavar roupa, pegar algum ingrediente emprestado ou qualquer coisa do tipo, nunca sugerindo logo de cara que a gente assistisse a algum jogo juntas.
Eu não tenho desculpa nenhuma. Só quero passar um tempo com ela.
Ouço ruídos dentro do apartamento, um banco ou uma cadeira se arrastando, passos abafados se aproximando da porta. Minha respiração fica trancada na garganta.
Ember abre a porta antes que eu tenha tempo de mudar de ideia. Está usando calça de pijama, casaco de moletom e pantufas. Seu cabelo está solto e um pouco úmido.
— Oi — ela diz, piscando algumas vezes antes de parecer realmente me ver, seu olhar passando do meu rosto para o meu corpo. — Aconteceu alguma coisa?
Entendo que ela deve achar minha aparição no mínimo inusitada. Estou enrolada num cobertor, como na primeira vez em que essa coisa de vermos jogos juntas começou, e só dá para ver meu rosto e minhas meias felpudas. Parece que saí da cama às pressas. E são quase oito horas da noite.
— Não, eu só... não assisti ao seu jogo de ontem ainda. — Ela arqueia as sobrancelhas, então me apresso em completar: — Sei que vocês ganharam, parabéns. Mas... pensei que a gente poderia rever juntas. Se você quiser.
Sua expressão se suaviza, e aquele indício de sorriso que já é familiar brinca em seus lábios.
— Está bem. Gostei da ideia.
Ela abre mais a porta e me convida a entrar com um menear da cabeça. Seguro firme nas bordas do cobertor enquanto entro.
É a minha primeira vez no apartamento dela. Dou uma volta, observando as paredes brancas, o sofá cinza e a cozinha com apenas algumas louças na pia. O único indício de que o apartamento é dela mesmo, não de outra pessoa, é a foto emoldurada na parede ao meu lado, mostrando Ember junto com outras três jogadoras da Inglaterra.
Ela fecha a porta, dizendo:
— Eu estava jantando, quer um pouco?
Olho na direção da bancada da cozinha, onde só tem um prato com meio sanduíche.
Ah, pronto, interrompi a janta dela. E para quê? Para convidá-la para ver um jogo que ela acabou de jogar? Que bola fora.
— Não precisa.
— Tem certeza? — Ela caminha devagar até a bancada. — Posso fazer um para você.
Balanço a cabeça, dando um sorriso que deve ser o mais sem-graça da minha vida. Meu estômago parece cheio de nós.
— Vamos lá então. — Ela pega o prato com o sanduíche, indo até o sofá. — Vou tentar achar a partida no YouTube.
Eu a acompanho, meus passos um pouco mais lentos, e sento ao lado dela no sofá de dois lugares. O do meu apartamento é um pouco maior, com três lugares, então sempre há um espaço seguro entre nós. Aqui, esse espaço diminui bastante.
Começo a desenrolar o cobertor de mim e Ember procura a partida no YouTube, usando o controle da televisão. Depois, enquanto ela ainda está distraída, vou cobrindo nós duas.
Ela olha para mim, comprimindo os lábios num sorriso pequeno.
— Você é bem apegada a essa coberta, né?
— É, mas sempre divido com você. — Olho ao redor, pigarreando para desfazer um nó na garganta. — Aliás, que tipo de pessoa não tem uma coberta na sala?
— Que bom que você trouxe uma. — Ela pega uma das pontas, afastando-a do colo enquanto diz: — Mas espera aí, tive uma ideia.
Ela deixa o prato com o sanduíche na mesa de centro, depois anda rápido até a cozinha. Eu a observo, um pouco indignada com o quão sexy uma calça de pijama cinza consegue ser, folgada nos lugares certos, mas apertada o suficiente no quadril.
Ember volta rápido, segurando duas garrafas de cerveja.
— Um gole cada vez que o comentarista falar o meu nome.
Ela me entrega uma das garrafas e, sem querer, deixo uma careta escapar.
— Cerveja quente?
— Não está quente. — Ela se senta de novo ao meu lado, dobrando uma perna sob o corpo e puxando a coberta. — Está fazendo uns cinco graus agora, a temperatura ambiente já é gelada o bastante pra esse tipo de cerveja. — Ela dá uma piscadinha e meu coração dá uma cambalhota. Ai, inferno. — É para te esquentar.
Nossa, como se precisasse da cerveja.
— Tem certeza disso? — Lanço um olhar duvidoso para a garrafa na minha mão. — É quinta-feira.
— Amanhã a gente só precisa ir à academia, não requer muito esforço.
— Certo. — Suspiro e inclino o rosto para a televisão. — Dá play aí então, vamos ver quantas vezes chamam o seu nome.
Muitas vezes. O nome dela é chamado muitas vezes.
Já vi Ember jogar antes. Já analisei seus movimentos em uma tela com as minhas colegas da Seleção, tentando pensar em maneiras de passar por ela e chegar até o gol. E já assisti a jogos dela por diversão, sem esquentar a cabeça com o fato de que, uma hora ou outra, ela seria minha rival.
Também nunca pensei que, antes de ser minha rival, ela acabaria sentada ao meu lado, recontando detalhes da partida, rindo de passes errados e de tropeços.
— Tá, talvez essa ideia tenha sido péssima — ela diz uma hora depois, sua voz só um pouquinho arrastada, e em seguida damos goles nas nossas respectivas cervejas.
A mesa de centro está cheia de garrafas vazias e o segundo tempo acabou de começar.
— Uma ideia de merda — concordo. E logo preciso tomar outro gole, pois o locutor diz "Ember com a bola, direto para os pés de Paisley". — Você está em todo canto!
— Eu sei. — Ela sorri contra a boca da garrafa. Mulher linda do caralho. — Não sou de assistir aos meus próprios jogos, mas esse foi um dos bons. E já que você insistiu...
— Eu não insisti — resmungo, e dá para notar que as palavras começam a se embolar na minha língua.
— Ah, mas foi quase isso. Você precisava ver sua cara, parecia um cachorro que foi largado na chuva.
— Não parecia, nada. Eu só... — Suspiro, sem concluir a frase.
Ajeito melhor os pés embaixo da coberta. Estou sentada um pouco de lado no sofá, assim como Ember, e dessa vez a sola do meu pé roça no calcanhar dela. Um arrepio na nuca me avisa que isso, sim, é uma péssima ideia. Mas não me afasto. Nem ela.
— Só o quê? — ela insiste.
Por que eu fui abrir a minha boca, hein?
— Só... — Puta que pariu. — Gosto de passar um tempo com você.
Ela fica séria. Acompanho o momento da sua garganta quando engole em seco. Depois assente.
— Gosto de passar um tempo com você também.
Nós nos olhamos por alguns segundos, o suficiente para fazer as batidas do meu coração começarem a se acelerar, e ela se ajeita um pouco no sofá, evidenciando de novo o contato do meu pé em seu calcanhar. Sua pele é quente, dá para sentir mesmo com esse toque mínimo. Um calor começa a se espalhar pelo meu pescoço e enfim desvio o olhar, voltando minha atenção para o jogo.
Nem dois minutos depois, ela pergunta:
— A Emily sabe que a gente está fazendo isso?
Nego com a cabeça, presa no que está acontecendo na partida na TV.
— Não. Nem pensei em chamá-la.
Daí me dou conta do motivo para ela perguntar sobre a Emily. Não é porque sabe que somos amigas, mas porque acredita que somos mais do que isso. Olho em sua direção, franzindo a testa.
— Emily e eu não estamos saindo, tá bom? A gente não mentiu lá no karaokê.
— Mas... — Ela se interrompe, balançando a cabeça. — Nada, nada, desculpa.
— Não é como se fizesse diferença também — acrescento rápido, as palavras se atropelando. Meu sotaque deve estar uma desgraça. — Se eu e a Emily estamos saindo ou não, ou se ela sabe ou não, não importa porque você e eu... quer dizer, eu e você... nós somos amigas. Acho que somos, não somos? Este é um rolê de amigas, não é?
Ember ri, o som baixo e rouco, depois bebe um gole de cerveja. O comentarista chamou o nome dela de novo? Eu não ouvi. Dessa vez, boto a mão na consciência e afasto o meu pé do calcanhar dela, cruzando as pernas em frente ao corpo.
— Sim, somos amigas — ela diz. — E este é um "rolê" de amigas, eu acho, por mais que não saiba exatamente o que "rolê" significa
A voz dela se enrola na palavra rolê, e me dou conta de que talvez tenha misturado um pouco português e inglês quando falei. Minhas bochechas estão quentes, culpa do álcool e culpa de Ember.
— Certo — murmuro e olho de novo para a televisão, respirando fundo.
— Ótimo — ela devolve, e pelo canto do olho vejo que faz o mesmo.
Amigas. Acho que podemos ser amigas sim.
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