Assim que chego primeiro do outro lado, abro os braços e grito:
— Esta é a vitória dos colonizados!
Se eu estava recebendo olhares irritados antes, piora bastante depois disso.
Ember me alcança, respirando com dificuldade, e abaixa o zíper do próprio casaco, tirando-o com rapidez. Eu também me livro do meu sobretudo, sentindo a camiseta por baixo grudar ao corpo. O vento frio gela a minha pele em contato com o tecido molhado de suor. Caminho devagar até um banco vazio, voltado para o rio.
Depois de alguns segundos, Ember se senta ao meu lado.
Ficamos assim, em silêncio, só recobrando o fôlego.
O sol está começando a se pôr, lançando cores opacas pela água do rio, deixando o dia cinza um pouquinho colorido. Olho de lado para Ember e ela mira aqueles olhos verdes em mim.
— Juro que mataria alguém por um sorvete agora — confesso. — Nem ligo que é inverno.
— E arriscar uma dor de garganta? — Ela inclina o rosto para o lado. — Logo antes de um jogo?
— Bom, é sempre logo antes de um jogo para a gente.
Ela comprime os lábios e assente, me concedendo esse ponto.
— Eu mataria por um copo d'água, isso sim.
Olho ao redor, esperando que uma sorveteria se materialize, mas não tenho tanta sorte. Acabo cruzando o olhar com duas meninas loiras que estão sentadas no banco mais próximo do nosso. Elas acenam e, depois de olhar confusa para trás, eu aceno de volta.
— A gente pode pegar sorvetes para vocês! E água! — Uma das meninas diz, levantando só um pouco a voz. — Se vocês nos derem autógrafos.
É meio estranho saber que elas ouviram tudo, ainda mais estranho ser reconhecida assim, quando acabei de atravessar uma ponte correndo e tenho certeza de que meu cabelo está grudando na testa e nas bochechas.
Mas Ember diz:
— Fechado!
Rindo umas com as outras, as duas meninas saem dali. Não tenho certeza de que realmente vão atrás de sorvete e de água, parece alguma piada, mas tenho esperanças.
Troco um olhar com Ember, que dá de ombros. Bufo, tentando conter uma risada que, de repente, parece tomar conta do meu corpo, querendo transbordar. Não sei o porquê da vontade de rir. Se pelas apostas bobas, pela corrida na ponte, pela promessa de sorvete no inverno ou por nossas fãs inesperadas.
— Será que elas reconheceram mesmo a gente? — Ember pergunta. — Porque às vezes eu sou confundida com a Angelina Jolie.
É impossível controlar a risada depois disso. Eu caio na gargalhada, batendo a mão na coxa.
— O que foi? — Ember se faz de ofendida. — Eu sou mesmo.
— Claro, claro — digo, ainda rindo. — Se a Angelina Jolie fosse uma atleta lésbica com uns setenta quilos de puro músculo e sem lábios.
— Eu tenho lábios! — ela tenta se defender, mas está meio rindo também. — Tenho uma boca bem tentadora, dizem por aí.
— Dizem, é? — Eu arqueio as sobrancelhas para disfarçar que se me perguntassem, eu diria que ela tem uma boca tentadora. Mas jamais afirmaria que tem lábios grossos, ainda mais que se equiparem com os da Angelina Jolie. — São as mesmas pessoas que te acham parecida com a Angelina Jolie? Ember, essas pessoas estão com a gente aqui agora?
Ela meneia a cabeça, sorrindo, e volta a olhar para o rio.
— Talvez aquelas meninas realmente saibam quem a gente é. Existem fãs do futebol feminino escondidas por todos os cantos.
— E nós somos muito famosas — digo, só com um toque de ironia.
— Você não parece muito convencida. — Ela volta a me encarar. — Jogar numa Copa do Mundo não é ser famosa o suficiente para você?
— Bom, você já jogou em três Copas, então pode até ser o seu caso. Mas eu só joguei três partidas na última. Não foi o ápice da minha carreira, como eu esperava. — Passo a mão pelo cabelo, depois puxo o elástico do pulso e o utilizo para prendê-lo. O vento frio arrepia minha nuca, e continuo olhando para Ember. — Mas é bom saber que você lembra que eu já joguei em uma Copa.
— É o que eu fiquei sabendo. — Ela ergue os ombros. — As pessoas falam muito de você.
— Admite logo, Ember. — Me inclino na direção dela, estreitando os olhos. — Diz que já sabia o meu nome antes de me conhecer.
Ela pisca duas vezes, bem rápido, e o humor desaparece do seu rosto. Estou tão perto que consigo ver uma gota de suor escorrendo devagar pela sua bochecha. As maçãs do rosto dela estão coradas por causa do frio e, ao mesmo tempo, da onda de calor provocada pela corrida. As minhas devem estar também, mas não só por causa disso.
Ember se aproxima, sua boca próxima do meu ouvido.
— Já falei para me chamar só de Connie — diz baixinho. Os pêlos da minha nuca se arrepiam ainda mais. Se ela me provocar sobre isso, vou culpar o frio. Mas ela não provoca, só volta a se afastar. — Se é mesmo minha amiga, precisa parar de ficar me chamando pelo sobrenome. Eu não saio por aí te chamando de Ferraz.
Meu sobrenome na boca dela soa muito mais sexy do que deveria, seu sotaque transformando a palavra em algo indecente.
— Pode chamar, se quiser. — Dou de ombros, o gesto forçado. — E eu gosto de "Ember".
Ela abre a boca para dizer algo, mas bem nessa hora as duas adolescentes que nos abordaram antes chegam, cada uma com uma casquinha de sorvete e uma garrafa d'água nas mãos.
— Esquecemos de perguntar os sabores que vocês preferem, então trouxemos um de chocolate e um de baunilha — uma delas diz, soando bem confiante para alguém que está entregando sorvetes para estranhas.
A segunda menina vem logo atrás dela, parecendo um pouco mais tímida, e segura uma casquinha sorvete de chocolate. Estendo a mão para ela — nem fodendo que vou tomar o de baunilha, sou uma mulher de princípios — e agradeço.
— Você tem uma caneta? — pergunto, porque não esqueci dos autógrafos. — E sabe mesmo quem a gente é?
Ela assente, suas bochechas se tingindo de rosa, depois pega uma caneta na mochila. A outra garota, que é mais de falar, acrescenta:
— A gente sabe que você é a — prendo a respiração, pronta para o pior — Rebeca Ferraz. E que você — ela sorri para Ember, jogando o cabelo sobre o ombro — é a Connie Ember.
Isso faz Ember olhar para mim.
— Viu? Até ela me chama de Connie.
Controlo o impulso de mostrar a língua, mas ainda estou extasiada demais para isso. A garota não me chamou de "ex-namorada do Stephen Andrews". Ela me chamou pelo meu nome. Eu não tinha ideia do quanto estava esperando por esse momento.
Ember e eu assinamos as camisetas delas, e ninguém reclama do fato de que nossa caligrafia fica meio torta contra o tecido. Depois elas se despedem e voltam a se sentar no banco perto do nosso.
É difícil ficar confortável assim, com pessoas que se dizem fãs tão perto — tenho quase certeza de que a extrovertida das duas acabou de abrir uma live no Instagram —, mas a presença de Ember acalma um pouco os meus nervos.
— Não foi dessa vez que te confundiram com a Angelina Jolie — digo, tentando retomar a nossa conversa descontraída de antes.
— Pois é. — Ela lambe o sorvete de baunilha, o que me impele a imediatamente desviar o olhar. — Pelo menos agora você tem provas de que também é famosa.
— Só um pouquinho.
— O suficiente.
Nós conversamos em voz baixa depois disso, tomando nossos sorvetes devagar, olhando para o rio. O sol continua se pondo, uma luz dourada nos envolvendo, e logo preciso colocar o casaco de novo.
Estou no meio de contar sobre um dia em que Emily e eu ficamos presas no vestiário, na época em que jogávamos para o Santos, quando Ember ergue a mão, me interrompendo. Ela se aproxima de mim, tocando a minha bochecha com os dedos.
— Espera aí — diz, sua voz rouca. — Você tem um pouco de...
O polegar dela roça no canto da minha boca, seus olhos fixos naquele ponto. Eu me sobressalto, bem quando ela completa:
— ... sorvete aqui.
Ela limpa o sorvete com o polegar, depois seus olhos prendem os meus. Estou com a boca entreaberta, sem respirar.
— Pronto — ela diz, pigarreando, e se afasta.
Ainda não consigo dizer nada. Nem sei em que parte parei da história. Engolindo em seco, volto a olhar para o rio, e espero que o vento gelado me desperte um pouco, porque não consigo raciocinar.
Devo ter lido sobre esse tipo de momento — dedos na bochecha, pele na pele, a desculpa de uma sujeirinha só para levar ao beijo — em incontáveis livros. Nunca imaginei que aconteceria comigo.
Pelo menos não teve beijo.
Solto o ar devagar, minha pele toda arrepiada.
Onde eu estava da história, caramba?
— Daí a gente começou a ligar para os telefones de todo mundo... — retomo devagar, os pensamentos voltando aos poucos, por mais que eu ainda esteja repassando mentalmente o que acabou de acontecer.
Termino a história mais rápido do que pretendia, e Ember logo engata em outro assunto, contribuindo com uma história dela. Ela não olha na minha direção, e dá para ver que está um pouco envergonhada.
Minhas bochechas queimam porque sei que reagi de forma desproporcional ao que deveria ser apenas uma amiga me ajudando a não sair andando por aí com a boca suja de sorvete de chocolate. Não sei até quanto tempo vou conseguir sustentar essa amizade se continuar desse jeito, pirando a cabeça com cada gesto.
Eventualmente, nossas outras amigas nos encontram ali.
Ember e eu apostamos para ver quem come dez pastéis de Belém mais rápido, e as coisas vão voltando ao normal entre nós. Ou quase o normal. Porque ainda sinto, quase como se estivesse acontecendo de novo, o toque do polegar dela no canto da minha boca. Sinto enquanto anoitece. Sinto depois de anoitecer. E continuo sentido até bem antes de pegar no sono naquela noite.
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