Emma e o soldado Frederick arrumam as caixas de forma organizada e contabilizam todos os itens que irão levar. São trinta pães para 15 soldados, uma panela grande com o caldo e uma garrafa para o licor. O soldado havia lembrado a Emma que ela não precisaria levar quaisquer outros utensílios de cozinha, pois havia de sobra na despensa do forte.
Com tudo embalado e pronto, Frederick segue para fora carregando duas grandes caixas de madeira, e Emma vai logo em seguida, levando consigo a garrafa de licor. Por sorte, a guarnição não fica muito distante dali, e a caminhada não será tão longa e cansativa.
A pequena cidade de fronteira durante a noite tem um aspecto melancólico. Durante o dia, apesar do clima de guerra ser constantemente lembrado pela presença de soldados, também há muitos comerciantes e caravanas. Mesmo com uma fiscalização mais severa na fronteira, muitos estrangeiros buscam segurança na nação de Valnor.
É engraçado pensar que o lugar mais seguro do continente seria justamente o país que mantém conflitos com nações menores. O velho Rei Hellyon III comandou décadas de campanhas militares em busca de territórios e riquezas.
Os dois amigos caminham sozinhos por uma estreita rua de tijolos vermelhos, em uma vizinhança cercada por construções similares, como mercados e bares. Praticamente todos estavam fechados, com exceção daqueles que funcionam apenas à noite. Poucas pessoas caminham na rua também, apressando os passos para entrar em suas casas.
O clima local está agradável, e Emma consegue se esquecer do calor da cozinha. A vizinhança está bem iluminada, com a lua cheia no ponto mais alto do céu e postes com chamas alaranjadas iluminando as ruas.
“Me perdoe por todo esse trabalho, Emma. Nosso fornecedor nos abandonou sem aviso.”
Diz Frederick, rompendo o silêncio que durou poucos segundos depois que saíram da pousada. Ele segue à frente de Emma e vira a cabeça para trás para vê-la. Com o rosto completamente coberto pelo elmo, sua voz abafada e com um tom baixo, Emma se apressa para ficar mais perto dele e ouvi-lo.
“Não há por que pedir desculpas, Fred. O dinheiro extra me ajudará bastante, e não há nenhum hóspede na pousada hoje. Está tudo bem!”
Agora mais perto do soldado, Emma cruza o braço com o dele, ficando ainda mais próximos, como um casal. Mais uma vez, ela percebe que dentro da armadura, Frederick está tremendo por ela estar tão perto dele.
“Você já me falou muito sobre sua família, Fred, mas nunca de como era a sua vila. Sinto quase como se eu conhecesse suas irmãs, sua mãe e até os animais da fazenda. Hahahah!”
Emma ri ao se lembrar dos casos engraçados que Frederick já havia contado.
“Não há muito o que dizer. A fazenda fica a poucos quilômetros da vila onde íamos até o mercado central vender queijo e pão. Comprovamos o que não dava para produzir lá.”
Por alguns segundos, o jovem soldado diminui os passos e inclina a cabeça para cima, tentando se lembrar de mais detalhes de sua terra natal.
“Ah sim… a vila fica perto de uma montanha. A montanha era a passagem para um entreposto comercial, então algumas vezes ficava movimentado. Como a vila era muito pequena e o mercado ficava bem no meio, um cheiro de temperos, bebidas e outras mercadorias, sempre estava no ar.”
Frederick dá uma risada nostálgica ao se lembrar de casa. Um misto de alegria e saudade tomam conta de sua voz, enquanto ele ainda se lembra de mais alguns detalhes.
“Mas, na verdade, eu ficava mais tempo em casa. A fazenda tinha um pequeno campo de trigo amarelo, um rio que passava atrás de casa e uma estrada de barro avermelhado. Não muito longe havia uma floresta que tinha muitos frutos, e quando o vento mudava, o cheiro doce vinha na direção da nossa casa. Ah! Que saudade…”
Mesmo sem ver o rosto de Frederick, Emma sabe que ele não está mais sorrindo. Assim como tantos outros jovens, ele foi recrutado de forma compulsória, tendo sido obrigado a ir para a fronteira e, eventualmente, participar das incursões em alguma nação rival. A campanha agressiva do exército prejudicava até mesmo as famílias do interior, que estavam relativamente longe do cenário de guerra.
“E você e Emma? Você já me disse que foi criada em uma espécie de orfanato, mas nunca me falou muito sobre seu país. Os outros soldados dizem que é bem diferente daqui.”
Tentando não deixar Emma perceber a saudade que pesa em seu coração, o soldado tenta despistá-la perguntando sobre sua terra natal, da qual ela falou muito pouco.
“Sinto muito por fazer você sentir saudade de casa, Fred. Eu também sinto algumas vezes, mas os afazeres são tantos que acabo não pensando tanto nisso.”
Emma aperta o braço de Frederick, tentando lhe dar um pouco de calor e conforto, sabendo que ele realmente sente muita saudade de sua casa e de sua família.
“E o deserto realmente é muito diferente daqui. Há muito calor, mas também há muito vento. Aqui, eu demorei algum tempo até me acostumar a dormir sem ouvi-lo. Existem também dificuldades, como quando não há água no poço, precisamos caminhar bastante até a fonte mais próxima…”
Emma larga o braço de Frederick e caminha em sua frente, ficando cara a cara com ele, andando de costas com um grande sorriso no rosto.
“Uma vez ao ano, todas as famílias menores se reúnem na casa da matriarca da família Al Nazari para celebrar a Grande Colheita da Lua. Um festival de sete dias e sete noites em festa, com mesas repletas de frutas frescas, carnes suculentas, bebidas exóticas, músicas e danças cheias de energia. Os antigos contam as histórias que ouviram das areias, como a da grande serpente que cavou a terra e levou as areias vermelhas para fora. Dizem que suas lágrimas deram origem às fontes de águas e seus dentes brilhavam como ouro ao sol…”
Em um impulso alegre, Emma rodopia à frente de Frederick, com um sorriso radiante, abraçando consigo a garrafa que carregava em suas mãos. Ela dança uma melodia imaginária, cantarolando por entre os lábios um som sibilante, quase inaudível, mas ainda assim encantador. O sibilo melodioso e os movimentos graciosos da dança de Emma, parecem hipnotizar Frederick, fazendo-o diminuir os passos até eventualmente parar de andar. Seus olhos estavam fixos em Emma, totalmente cativado por aquele espetáculo único, iluminado pelo brilho azulado da lua.
“Emma… isso é tão bonito. As histórias que conta, tudo é tão mágico e misterioso. Você é… tão linda.”
O soldado, completamente encantado, fala devagar e por entre os dentes, parado no meio do caminho. A jovem para de cantar e olha com um sorriso, levando as mãos para trás, ainda segurando a garrafa na mão.
“Eu o que Fred? Não o ouvi, perdoe-me.”
Sarcástica, Emma ouviu perfeitamente o que ele disse, mas ainda assim, não se cansava de provocar o pobre rapaz que claramente ficava cada vez mais apaixonado por ela.
“E-e-eu… n-não não! Eu disse que esse festival é mágico, de-deve ser tudo tão lindo!!”
Por pouco, o jovem quase deixa as caixas caírem, tirando de Emma novas risadas. Ela se aproxima dele, fazendo sinal para continuarem a caminhar.
"Obrigado! Sim, é muito bonito. Há muitas histórias e mistérios que se escondem nas areias vermelhas. O povo é muito receptivo com viajantes também. Muitas outras culturas influenciaram na forma que vemos o mundo. Mas infelizmente a guerra fez com que o povo visse tudo em uma visão um pouco diferente, mais desconfiada… pior."
A jovem fica cabisbaixa por um instante, mas logo recupera seu sorriso e olhos amendoados brilhantes.
"Mas eu tenho fé que isso tudo irá acabar o quanto antes!"
O soldado aperta o passo e balança a cabeça de forma positiva, concordando com as palavras de Emma.
"Sim! Eu também quero muito que isso aconteça… quero um dia poder ver seu país e participar dessas festividades. Em circunstâncias melhores, é claro."
Frederick escolhe bem as palavras ao falar com Emma, sabendo que uma guerra divide os dois países. No atual momento, ir até lá seria uma sentença de morte, para ele ou para quem o encontrasse.
"Obrigado. Você não sabe o quanto fico agradecida por ver uma pessoa na sua posição ter esse pensamento. De coração, lhe agradeço muito."
A jovem encara Frederick com um olhar tão iluminado, que seria capaz de derreter seu coração mesmo que estivesse coberto por uma armadura dentro da outra. O rapaz também a olha com um olhar amoroso sincero, sabendo que ela é uma estrangeira de uma nação rival e que com certeza já deve ter sofrido por isso.
A caminhada dura mais alguns minutos, e não demora muito até finalmente verem a frente do forte militar. Enquanto se aproximavam, a imponente construção militar se erguia diante deles. Suas paredes maciças, construídas com blocos de pedra cinza, alcançavam alturas que quase pareciam tocar o céu noturno. Longas torres de vigilância se destacavam acima da muralha, revelando uma defesa sólida. Cada torre ostentava chamas altas que lançavam um brilho ameaçador sobre o terreno.
As tochas ao longo do caminho de acesso iluminavam a entrada principal, mas também lançavam sombras que dançavam de maneira sinistra no chão de pedra.
O portão maciço se erguia, flanqueado por estátuas de guerreiros em posição de alerta. Uma sensação de dominação e poder preenchia o ar, uma lembrança constante da força militar deste país. Emma observava a cena com um olhar determinado e focado, pois estava no lugar que tanto almejava, o centro das operações inimigas. Pouco antes de continuarem, Frederick chama por Emma, que está logo à sua frente. Com um tom um pouco mais sério, fora de costume.
"Emma, por favor, não se afaste de mim. Um civil não pode entrar no forte, principalmente durante a noite. Além disso, nem todos os soldados compartilham da… da mesma visão que tenho a respeito de seu povo. Mas não vou deixar nada acontecer com você, eu prometo."
Emma acena positivamente com a cabeça, mas em sua mente sabe que pode se proteger mesmo que estivesse completamente sozinha. Ainda assim, sustenta a imagem indefesa sem levantar qualquer suspeita.
Ao se aproximarem dos portões, dois soldados montavam guarda um ao lado do outro. Assim que percebem a presença de Frederick, começam a brincar entre si:
"Olá, Frederick! Finalmente chegou o jantar?"
Disse o soldado mais baixo à direita, cuja voz soava mais grave.
"Estávamos quase morrendo de fome aqui!"
O outro soldado um pouco mais magro e alto, à esquerda, riu e acrescentou ao primeiro.
"Aqui está! Sim, comeremos bem essa noite, senhores."
Frederick respondeu com uma risada curta, enquanto ainda caminhava ao encontro deles.
“Boa noite, senhorita. Obrigado por salvar nossas vidas esta noite.”
Diz o soldado da esquerda, fazendo uma reverência com a cabeça, inclinando o corpo. Seu comportamento é repreendido pelo soldado que o acompanhava ao seu lado, que lhe cutuca com o ombro, fazendo um som metálico em sua armadura. Emma sorri gentilmente e faz um aceno suave com as mãos, acompanhando o gesto do homem.
Os dois soldados usavam elmos fechados, impossibilitando distinguir suas feições. Porém, a diferença entre eles era notável: o soldado à direita tinha uma estatura menor, mas ainda assim robusta e uma voz mais grave, enquanto o soldado à esquerda era um pouco mais ágil em suas palavras e gesticulava mais com as mãos. Ambos, no entanto, não pareciam ser tão mais velhos que ela ou Frederick.
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