'Cause you know I love the players
And you love the game
Porque, você sabe, eu amo as jogadoras
E você ama o jogo
— Blank Space
Durante os primeiros trinta minutos do jogo contra o FC Porto, o Barça mantém a posse da bola com tranquilidade e o jogo fica concentrado na área do outro time. Eu observo do banco, esfregando as mãos nas pernas e com o corpo inclinado para a frente. Mas, não importa o quanto as jogadoras partam para a ofensiva, a bola não entra no gol.
Emily, ao meu lado, está com os braços cruzados sobre os joelhos e os lábios crispados em preocupação. Eu me aproximo para sussurrar perto do ouvido dela:
— Por que caralhos o Alvarez ainda não te colocou ali?
De todas as jogadoras do nosso time, Emily é a que mais tem sucesso nas finalizações, tanto nos treinos quanto nos jogos. Mas, quando chega a hora das partidas importantes, ela sempre começa no banco. O mesmo está começando a acontecer comigo.
Ela suspira de um jeito irritado.
— Ele diz que não dá para mostrar todo o nosso poder ofensivo assim logo de cara. — Pelo seu tom de voz, é óbvio que não está nada feliz com isso.
— Ou talvez ele não queira que uma brasileira chame mais atenção do que…
— Deixa pra lá, Becs — ela me interrompe. — Não vamos comprar essa briga.
Eu me endireito, voltando a prestar atenção no jogo. Era para ser uma partida fácil. Meu olhar vacila na direção do nosso técnico, que está assistindo ao jogo de braços cruzados. Ainda não sei se ele realmente quer deixar as jogadoras de outros países ofuscadas em comparação às espanholas, como comecei a dizer, ou se ainda está tentando entender o que fazer conosco.
Ember, Marge e Karin estão em campo, então não são todas as jogadoras internacionais que ele está “poupando”. Faço um muxoxo. Na mesma hora, ele olha na minha direção. Está com uma carranca impressionante e, quando não desvio o olhar, sua expressão se suaviza um pouco e ele gesticula com a mão para que eu me aproxime.
Faço isso, tirando o casaco e deixando-o no banco.
— Está pronta para entrar? — ele pergunta quando chego perto o bastante.
— Sempre.
Ele dá um sorriso mínimo, depois aponta para o campo, na direção de Ember.
— Quando o jogo parar, fala para a Ember que a gente vai fazer como combinamos no treino de ontem. Inversão e bola para você ou para Alba. Se vocês acharem que dá para arriscar mandar para o gol fora da área, tudo bem, uma hora essa bola vai entrar. Mas, se a Emily estiver na frente, é bola para ela.
— Emily?
— Achou mesmo que eu deixaria vocês duas no banco o jogo todo? — Ele suspira. — Me dê um pouco mais de confiança, Rebeca.
Ele se vira para o banco e gesticula para Emily vir na nossa direção. Ela levanta rápido, abrindo um sorriso aliviado.
Com a adrenalina começando a correr no sangue, nós duas começamos a nos aquecer. Fico tentando não sorrir como uma idiota, porque Alvarez falando “vocês duas”, como se Emily e eu fôssemos uma dupla, sem poder separar uma da outra, me pegou de surpresa. Era assim que nosso técnico do Santos se referia a nós, sempre “vocês duas aí” ou “a duplinha” e é algo que faz com que eu me sinta como uma adolescente de novo. Não só como se estivesse prestes a jogar com o meu time, mas, mais importante, prestes a jogar com a minha melhor amiga.
No primeiro minuto dos acréscimos, nós duas entramos.
A reação do público é um pouco confusa. Há vaias e aplausos, e não entendo se algo disso é direcionado a mim ou se apenas estão se manifestando quanto à substituição de Marge e Pilar. Me concentro na partida, mantendo o rosto impassível, mas as vaias parecem penetrar na minha pele e mexem com a minha cabeça.
Tem que ser para mim, não há outra explicação possível, porque com certeza não estariam vaiando Emily. Troco um olhar com ela, que só balança a cabeça, e assumimos nossas posições. Não importa. Estou aqui para jogar e é isso o que farei.
No finalzinho dos acréscimos do primeiro tempo, Ember faz a inversão da bola através do campo, direcionada para mim, e domino-a contra o peito. Depois paro com a bola no pé e sorrio para Emily. Ela dá uma piscadinha, e eu faço o passe para ela numa posição perfeita para marcar, com apenas uma zagueira e a goleira entre ela e o gol.
Emily bate, e eu sugo o ar com força.
A bola entra de cantinho, o gol perfeito.
Corro na direção de Emily, pulando no colo dela, minhas pernas ao redor da sua cintura, meus braços em torno do seu pescoço. Ela me segura firme, gritando:
— É isso aí, porra!
A torcida comemora conosco. Mais uma vez, ouço vaias, mas agora já é óbvio que, considerando que a maioria aqui é torcedora do FC Porto, as vaias não passam de ego ferido. Podem ir vaiando até o fim, vamos destruir esse time.
Olho para Emily, ainda no colo dela e com um sorriso triunfante.
— Não tem como te esconder, nem se tentarem.
Antes que ela possa responder, Ember, Karin e Alba nos alcançam, nos abraçando também. Emily me solta e eu vou cambaleando para fora dos abraços, ainda sorrindo como uma idiota, mas tentando recuperar o foco para voltar a jogar.
O apito encerrando o primeiro tempo soa alguns segundos depois, e nós caminhamos pelo campo na direção do corredor que leva aos vestiários. Ember anda até mim e passa um braço pelos meus ombros, me puxando para perto.
— Bom trabalho — ela diz, e é injusto como o meu corpo reage a isso, o peito inflando de orgulho e as bochechas esquentando. — Você e a Emily são uma dupla infalível.
Olho para ela, inclinando o queixo para cima enquanto caminhamos devagar.
— Você e eu também.
Ela encosta a testa na minha, fechando os olhos brevemente. Estamos as duas suadas, mas o cheiro que emana da pele dela é suave e limpo. Inspiro fundo. Tem cheiro de algo que deveria ser meu.
Mas nós nos afastamos, o momento parecendo não ser nada além de camaradagem, e continuamos a ir em direção aos vestiários. Ela não é sua, lembro a mim mesma. E nunca vai ser.
Bebemos água e nos alongamos enquanto Alvarez passa mais instruções, falando rápido e dizendo a cada uma de nós o que precisamos fazer. De uns tempos para cá, a postura do time em relação a ele começou a amenizar. Ele sabe do que todas já passaram e, por causa da demissão do último técnico, os olhos do mundo estão sobre ele, esperando que seja diferente. Talvez seja mesmo.
De volta ao campo, a atitude do time parece ter mudado.
Não importa se a partida supostamente deveria ser fácil, com um oponente mais fraco, não vamos pegar leve. Precisamos ser velozes e precisas, é o que nossos torcedores esperam de nós e não vamos decepcionar.
Mantemos uma troca de passes rápida, sem dar a chance de a marcação do outro time fazer muita coisa. Em menos de dez minutos, Emily consegue pressionar a goleira do FC Porto o bastante para ela errar o passe, e Alba se aproveita da confusão na zaga para marcar o nosso segundo gol.
Isso dita o ritmo do restante da partida.
A cada vacilo do outro time, nós marcamos. Emily faz o terceiro gol, chutando forte de fora da área, e dessa vez ela é quem pula no meu colo para comemorar.
As nossas adversárias começam a ficar agressivas depois disso, gritando ordens umas para as outras e marcando faltas perigosas. De onde está, Alvarez grita para desacelerarmos e tomarmos cuidado. Mesmo assim, quando um erro de passe coloca a bola direto no meu pé, eu disparo em uma corrida, acenando para Emily e Alba me acompanharem.
É aí que uma jogadora surge, escorregando na grama e indo direto para a minha perna. Pelo visto, se não dá para tirar a bola de mim, ela quer é me tirar da bola. Ou desta vida.
O choque da chuteira dela com o meu tornozelo me faz gritar. Eu caio, agarrando a perna e girando o corpo para amenizar o impacto contra o chão. Uma pontada de dor agonizante se alastra por toda a minha perna esquerda e, no calor do momento, um pensamento sombrio toma conta:
E se for mais grave do que parece?
E outro:
E se eu não conseguir levantar?
É um medo antigo, que existe em cada jogo e que ignoramos porque, do contrário, como vamos entrar em campo? Mas o risco de não sair do campo de pé sempre existe.
Eu fecho os olhos, distantemente ouvindo o apito marcando a falta, e logo tem alguém ali, se abaixando para segurar o meu ombro.
— Consegue levantar? — ouço a voz de Ember.
Abro os olhos para encará-la e assinto, mesmo sem ter certeza disso. A árbitra se aproxima de nós e repete essa mesma pergunta, terminando de guardar o cartão amarelo que deve ter mostrado para a outra jogadora.
— Consigo — digo, firme, depois trinco o maxilar enquanto tento fazer justamente isso.
A mão de Ember aparece na minha linha de visão e seguro com força, aceitando a ajuda para ficar de pé. Quando apoio o tornozelo no chão, uma dor volta a percorrer a minha perna, mas já é mais suave.
— Precisa dos paramédicos? — Ember pergunta, e acho que nunca a vi tão séria.
— Não, eu dou conta. — Olho para as nossas mãos e, suspirando, solto-a. — Me deixa marcar a falta.
Ela assente, ainda me observando com preocupação. A árbitra se afasta para fazer um risco de espuma branca na grama, depois vai repassar instruções para as outras jogadoras. Estamos perto o bastante do gol para essa marcação ser perigosa para o outro time.
Ember continua ao meu lado, deixando em aberto a possibilidade de eu tocar a bola para ela em vez de bater direto para o gol.
— Se eu tocar para você, acha que consegue levantar a bola o bastante para a Emily ou a Alba cabecearem lá na frente? — pergunto, chegando perto dela para não precisar erguer a voz.
Ela segura meu ombro, seu aperto firme, e dá um sorriso pequeno.
— Você não quer bater direto para o gol?
Testo o meu peso no tornozelo machucado. Não vou arriscar chutar com ele, vai ter que ser com a perna direita. O ângulo não é muito favorável.
— Se você acertar, vai ser o gol mais bonito da temporada até agora — Ember incentiva.
— Por que você não tenta, então?
— Não dê para trás, Rebeca. Foi você quem pediu para marcar essa.
— E se eu errar?
— Aí ninguém vai se lembrar disso amanhã. Vamos ganhar o jogo de qualquer forma.
É uma decisão fácil assim. Ou faço um gol memorável, ou erro e isso é esquecido.
Quero que se lembrem de mim.
E, como não posso enfiar essa bola no cu da filha da puta que marcou aquela falta, que seja no cu do time dela.
Quando o apito soa, eu bato para o gol. A bola faz um arco perfeito, alta demais para as jogadoras que partem em direção à área cabecearem. A goleira salta, esticando a mão, mas não chega a tocar a bola. Ela entra, fazendo aquele carinho gostoso na rede.
Uma euforia preenche meu peito e eu rio, gritando:
— Puta que pariu!
Ember me encara com um sorriso enorme, com direito a covinhas e tudo. No calor do momento, eu me aproximo dela, seguro seu rosto e fico na ponta dos pés. Meu coração está galopando no peito, a torcida ainda está urrando em comemoração ao gol, e os olhos verdes de Ember se tornam o mundo inteiro para mim.
Me aproximo e deposito um único beijo na sua testa.
Quando me afasto, ela não está mais sorrindo.
— Por que isso? — pergunta, não exatamente irritada, apenas confusa.
É uma boa pergunta. Não tenho uma resposta.
Ou melhor, tenho várias, nenhuma delas apropriada. Porque eu precisava tocá-la, precisava comunicar que ela é genial, e que jogar com ela me dá forças. Porque, se eu sou a pessoa que garante que Emily sempre vai ter uma bola para chutar direto para o gol, Ember é essa pessoa para mim.
— Porque você é a minha! — exclamo, ainda meio bêbada com aquela euforia toda.
O que quero dizer é exatamente isso, que ela é a minha jogadora, a pessoa que vai fazer por mim o que eu faço pelas outras em campo, mas o problema é que “você é a minha” e “você é minha” soam da mesma forma em inglês. E eu não disse “jogadora”.
— O quê? — Ember arqueia as sobrancelhas. Enquanto isso, meu cérebro percebe, com alguns segundos de atraso, o que acabei de dizer.
Você é minha.
— Quer dizer… — Mas não há tempo de me explicar, as outras jogadoras nos alcançam, Alba bagunça o meu cabelo e Emily me abraça.
Depois disso, precisamos retomar as nossas posições. Eu procuro por Ember com o olhar, mas ela já está muito longe. Perco a chance de me corrigir, de dizer que ela não é minha, pelo amor de Deus, que foi só um erro de tradução da minha cabeça.
O jogo continua e não posso me dar ao luxo de ficar fritando meus neurônios e me preocupando com isso.
Nós vencemos por 4x1, porque nos últimos minutos o FC Porto consegue fazer um gol e diminuir um pouco a vantagem. Mesmo assim, quando o apito final soa, a torcida é toda nossa, com vaias e tudo.
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