Grillo fez uma pequena e elegante reverência para mim, provavelmente percebendo meu espanto em relação ao pequeno milagre que o próprio havia acabado de executar bem embaixo do meu nariz.
— Como você...? — me peguei perguntando, dividindo o olhar entre a fechadura esfumaçando levemente e as mãos dele, poluídas de cincino.
A admiração durou pouco e não demorei a me levantar com pressa em direção a saída, mas o enorme homem me barrou com o peito nu indicando, com o queixo, seu companheiro moribundo no canto da cela.
Certo.
Era uma troca. Entendi.
Suspirei e acordei com a cabeça num gesto rápido, tentando colocar a mente para funcionar sob toda a adrenalina que estava sentindo agora e isso fez minha vista turvar levemente. Certo, certo, sem forçar. Merda.
Primeiro, como raios ele fez aquilo?
Segundo, por que não temos um vigia? Será que Sinamon não queria que soubessem que eu lhe quebrei o braço? Não faz sentido. Eu já deveria ter sido espancada até a inconsciência, no mínimo, por ferir uma autoridade e mesmo assim nada. Tem algo de muito estranho acontecendo e talvez essa fosse a justificativa para eu estar viva, sem vigilante e, pior, sem água.
Grillo me puxou pelo pulso até a abertura da cela e fez um sinal para que eu esperasse e ficasse de olho caso fosse aparecer alguém enquanto ele dava um jeito de deixar seu companheiro de pé. Era doloroso assistir aquilo apesar de o homem estar com um aspecto bem menos mórbido do que algumas poucas horas antes.
Ele não reclamou muito durante as manobras para ficar apoiado em Grillo e seguro apenas com o braço sobre os ombros do parceiro. Eles eram praticamente da mesma altura e dividiam alguns traços parecidos como cabelo e tom de pele, mas decidi deixar para analisar minhas companhias melhor em outro momento.
Voltei minha atenção para o corredor escuro e vazio que nos aguardava mais a frente. Minhas frequentes visitas à cadeia me garantiram um bom senso de localização, então conseguiria sair com certa facilidade do prédio que os extremistas mantinham como a prisão popular. Ficava na periferia da cidade e era cercado por uma planície de areia movediça quase pantanosa, por isso era tão frio nas celas mais baixas, que era mais ou menos próximo de onde estamos agora.
Respirei fundo, ouvindo apenas o fluxo sanguíneo intenso nos ouvidos. Aquele lugar não era feito para manter pessoas por muito tempo. O cadafalso montado bem na frente do prédio para as execuções públicas era prova suficiente para me convencer plenamente de que..
O cadafalso! É isso!
Hoje é dia de execução.
Ou foi.
Por isso as celas estão vazias. Por isso não tem ninguém aqui além dos dois e eu.
Por enquanto.
Não conheço a escala de trabalho desses carcereiros, mas tenho plena certeza que logo eles retornam ou junto com o comboio que vem me buscar ou antes do fim do dia, justamente para receber meus transportadores.
Para minha sorte deixaram um dos mais inúteis guardas de vigilante.
Para meu completo azar logo se dariam conta dessa besteira.
Merda.
— Eu sei como sair daqui. — Sussurrei, não confiando no silêncio absurdo daquelas paredes.
— Pode ir... frente... — disse o homem machucado em resposta. Não sei se ele falou baixo imitando minha precaução ou porque realmente não tinha forças para mais do que aquilo. Era nítido que estava desconfortável e se forçando a ficar acordado.
— Vamos.
A cadeia era dividida em quatro câmaras e dois andares, sendo dois embaixo e dois em cima todo de pedra de cincino e poucas janelas. Uma única entrada que também era a única saída. Mas eu não abusaria do favor que o destino vinha me prestando, então só precisava encontrar uma janela grande o suficiente para passar e longe o suficiente do Pântano porque duvido muito que, como eu, meus dois acompanhantes queiram virar comida de aligátores de areia.
Conseguimos passar pelos corredores do primeiro quadrante com sucesso e o único ruído produzido era pelo moribundo quando a perna incapaz topava contra alguma irregularidade no chão, mas mesmo assim continuamos até nos depararmos com uma bifurcação.
Não lembrava dela, mas a reconheço e sei que um dos corredores guiava para os dois quadrantes superiores onde ficavam as sentinelas externas da prisão, e o outro nos guiaria diretamente até as masmorras e de lá direto para o fundo do cadafalso que nesse momento era sinônimo de liberdade.
Que trocadilho grotesco do destino.
— Esquerda. — O homem ferido gemeu, mais consciente do que imaginei.
Como não tinha escolha, segui por essa direção no mesmo instante e os dois vieram atrás de mim quase ambos no mesmo ritmo que o meu. Mas eu estava apressada tanto pela sensação de liberdade quanto pela claustrofobia que ameaçava retirar o restante das minhas forças.
Ouvi Sinamon e outros guardas contarem, numa roda de cartas, que antigamente aquele prédio era um tipo de necrotério para os acidentes constantes que aconteciam nas minas. O ambiente passa mesmo essa impressão. É aterrorizante.
— Espera, espera, por favor. — pediu o ferido, não para mim, percebi no escuro do corredor, mas para Grillo, que imediatamente o prendeu contra a parede.
Eu estava a uma distância bem generosa da dupla e naquela escuridão toda eu conseguiria fugir sem que sequer tentassem impedir. Mas não me permiti. E me aproximei com passos suficientes para sentir o cheiro de sangue fresco.
— Estamos quase saindo, não podemos parar agora.
— Eu sei — ele resmungou — só preciso de um minuto.
Decidi que gostava mais de Grillo.
— Não temos um minuto. — Resmunguei de volta, me ajoelhando em frente a ele a procura do laço do torniquete.
Minhas mãos ficaram escorregadias com o sangue dele, mas consegui apertar ainda mais o nó com espasmos de reclamação do paciente estressado. Amenizar o fluxo talvez aliviasse o desconforto dele mesmo que o irritadinho não merecesse essa gentileza.
— Não está tão ruim assim, pode aguentar. — Menti sem hesitação. Percebi que ele queria voltar a inconsciência, mas nas nossas circunstâncias atuais esse não era um bom sinal.
— Ei, ei, olha pra mim. — Segurei o rosto dele entre as mãos, forçando a me encarar. Estava escuro, mas sentia a batalha entre o peso que sua cabeça fazia para cair e o esforço que ele tinha de a manter rígida. — Preciso que guarde isso para mim. — Apertei os últimos metros de tecido limpo contra o peito dele — Não perca. Vai salvar nossas vidas. É mágico. — Tentei soar o mais convincente possível.
Não demorou até eu sentir as mãos quentes dele apertando o tecido também.
Às vezes só precisamos focar em algo para permanecer conscientes.
Com um suspiro de alívio, fiquei de pé e me afastei deles.
Eu necessito sair daqui.
Não vou permitir que esses dois estranhos atrasem esse desejo mais do que já o fazem.
A mentira pareceu surtir efeito porque o homem ferido tentou dar o primeiro passo sozinho e se desequilibrou, apoiando-se em Grillo para podermos continuar nosso trajeto, então seguimos pelo túnel até o ponto de não conseguir enxergar um palmo à minha frente.
Meus olhos em toda aquela escuridão só serviam como acúmulo de poeira e cincino, lagrimei um pouco enquanto caminhava, mas deixei que o fluido lubrificasse minha pele e, com sorte, os lábios rachados. Comecei a sentir o suor nas minhas costas quando certa claridade voltou a iluminar alguns poucos metros do chão de pedra. A umidade deu lugar ao cheiro de mofo e precisei conter a vontade de tossir quando ouvi passos e risadas vindos de todas as direções.
Meu sangue gelou no corpo.
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