Na manhã seguinte me encontrei perambulando pelas ruas em busca de algo para comer. Não estou com fome, mas tenho sede. Quando acordei, nutrientes preciosos voltaram numa onda de vômito, esvaziando meu estômago e desidratando meu corpo. Não estou tão fraca, mas adoraria poupar minhas energias se pudesse.
Cheguei a pensar em passar numa das casas de apostas, mas Norrah provavelmente calculou meus passos até lá.
Pode ser que não me entreguem, os proprietários, já que eu lhes beneficiei com dinheiro muito mais do que Norrah fazendo as cobranças, mas não estou disposta a arriscar.
De qualquer forma preciso encontrar um lugar para me abrigar logo! Estar nas ruas da Base ou da Crista se tornava mais perigoso a cada momento que se passava. A praça já acumulava uma pilha de corpos ao redor de um mastro, como um lembrete e um aviso. Não teríamos nem o direito de ganhar nossa própria fogueira.
Afastei os pensamentos que me direcionaram para aquela praça.
O que preciso está nas barracas que enriquecem a Base, mas a segurança extremista estava rigorosa demais. As pessoas não podiam se aglomerar, a cada venda havia um homem armado de olho em tudo. Mulheres só podiam cobrir o cabelo, o rosto de forma nenhuma. Não estava em total silêncio, mas ainda assim, o centro comercial da Base lembrava muito mais uma saudação no Templo do que um dia de feira.
Não sinto confiança em tentar levar nem uma das frutas da barraca que passei em frente, então segui caminho até o poço comunitário. Tinham dois guardas armados mantendo a fila, percebi ao me aproximar.
Não conheço nenhum deles.
Mesmo assim, não foram eles que me fizeram dar meia volta dali, e sim, uma bandeira em frente a um beco entre o boticário e a padaria.
Apertei o véu em meu cabelo e caminhei até lá, cobrindo os olhos contra a luz intensa do sol.
Obviamente eu reconheceria aquela bandeira, que na verdade era um tapete.
Meu tapete, com meu bordado.
O toquei como se o fosse comprar de alguém e a dupla de extremistas que guardava o boticário e a padaria não perderam tempo comigo, felizmente, enquanto fingia observar os pontos coloridos que eu mesma tinha feito meses atrás.
Norrah pode ter colocado aquilo ali para me atrair. Aquilo pode muito bem ser um aviso de que está por perto. Soltei o tecido de meus dedos, olhando para o lado como se procurasse o vendedor. Não...Norrah é das ruas mas para ele a única coisa que sei fazer é roubar (e mentir, pelo visto), sem contar que é péssimo em estratagemas, ele jamais seria capaz de montar uma armadilha dessas. E, se fosse, usaria algo que lembrasse nossa infância juntos e não seria nada discreto também, ele tem mania de grandeza e por isso acabou onde acabou.
Pensar que vinte e quatro horas atrás eu estava trocando beijos e promessas com ele pesou um lado da minha consciência, sinto como se meu brinquedo preferido tivesse sido tomado de mim a força.
A sensação não é agradável, mas é suportável quando penso que para ele deva ser parecido — mesmo que todos os sinais indicam que não. Norrah deve ter se desapegado desse "brinquedo" muito antes de eu perceber e continuou me manipulando e explorando enquanto eu brincava de "casinha" com ele.
Um ranço me subiu à garganta.
Fui ingênua em permitir, é claro, mas tenho minha parcela de culpa também já que eu o usava como meu consolo.
Isso foi o que Norrah significou para mim a vida inteira: um consolo. O porto-seguro que na verdade era meu naufrágio particular.
Respirei fundo, cruzando os braços, exalando o ar que meus pulmões comprimiam com aquelas lembranças.
Grillo e Povan podem ter colocado aquilo ali.
Eles entendem o significado, eu acho, ou pelo menos, sabem que eu sou a dona daquele bordado, podem ter previsto que fosse chamar minha atenção hora ou outra. Foi inteligente colocar num lugar movimentado, mas como conseguiram aquilo? Bem, com certeza não voltaram para buscar, são inteligentes demais para abusar da sorte e voltar a subir a Crista sendo perseguidos.
Seja onde estiverem, estão bem escondidos, espero.
"— ...Tive que me proteger das ruas de alguma forma.
— Se misturando entre seus agressores...inteligente."
Talvez não seja uma notícia tão ruim assim.
Mas por que querem me contatar?
Ainda precisam de mim? Por que?
Eu quero ajudar?
Essa história já me deu trabalho demais, estou sumida, eles não podem mais exigir nada de mim. Não tenho mais o abrigo que prometi, não tenho mais comida, mal posso cuidar de mim mesma.
Afundei as unhas na palma das mãos, mas as unhas afiadas não existiam mais. A dor dos dedos feridos foi suficiente para me despertar, olhei rapidamente para o beco e não notei movimentação alguma.
Não sei se minha recompensa é motivo suficiente para me afundar em ainda mais problemas, provavelmente não...mas ainda assim...
— Perdão...— me aproximei do guarda que cobria a padaria. Era baixo e bem magro, não passava de um adolescente estúpido segurando uma arma. Ele usava no rosto uma daquelas bandanas e era a única coisa que lhe cabia já que o restante do uniforme era frouxo demais — O senhor viu meu marido? — tentei evitar o contato visual — Ele estava tentando vender nossa tapeçaria — indiquei o bordado — mas não consigo o encontrar em lugar nenhum?
O extremista não se deixou intimidar, apesar do tamanho. Pude perceber sua impaciência quando inclinou a cabeça num ângulo torto, como que me analisando. Não de maneira nojenta, como Sinamon, mas como um alvo que valesse a pena ser atingido.
Me senti como uma das criaturas do deserto durante as caçadas.
O pior, foi que ele permaneceu em silêncio, me obrigando a completar:
— Ele pode estar acompanhado por meu cunhado, que é manco. — A chance de ser atacada quando se é casada é ligeiramente menor.
O guarda olhou para mim e para o bordado atrás de mim então assentiu discretamente com a cabeça e indicou o beco ao lado com a ponta da besta.
Meus instintos começaram a sinalizar perigo.
— Eu já olhei, acredito que não estão lá. — Juntei as mãos em frente ao corpo para parecer o mais inocente possível — Talvez eu esteja me confundindo, devem estar me esperando em outro lugar. — Meu sorriso não denunciou o nervosismo na voz.
Foi uma péssima ideia.
Me preparei para sair dali, mas o extremista se pôs na minha frente, apontando a besta na minha direção.
Engoli em seco, tentando não fazer movimentos bruscos.
As pessoas que transitavam fingiam que não estava acontecendo nada, não me serviriam nem como ganho de tempo. Outros extremistas poderiam ser atraídos por qualquer movimentação estranha, então sair correndo também não daria certo. Eu poderia tentar escalar e fugir pelos telhados de novo, mas não tenho nenhum apoio útil por aqui.
Merda.
— Meu senhor, por favor — odeio dizer isso —, preciso mesmo encontrar meu marido. — Sou uma péssima vítima pelo visto, já que meu lamento só provocou a besta sendo engatilhada na minha direção.
Ele se aproximou um passo, me forçando a recuar outro em direção ao beco.
— Não me toca. — Ameacei. Já estou na merda mesmo.
Ele mirou a besta na direção da minha testa com uma agilidade impressionante.
Eu teria reagido contra se não fosse pelo outro extremista que surgiu atrás do qual me apontava.
Muito maior, mais largo, armado com uma daquelas lâminas curvas e longas e mantendo outra de reserva nas costas. Ao contrário do companheiro, o uniforme não conseguia esconder os músculos, apesar de ser esguio.
Tenho um problemão agora.
— Anda. — Ele ordenou, a voz grossa abafada pela bandana. O baixinho permanecia mirando na minha cabeça.
Eu encarei o mais alto profundamente, o ameaçando apenas com autoridade subliminar no meu olhar. Ele recebeu a mensagem e suas pupilas dilataram nas írises esverdeadas.
Dei as costas um pouco depois, seguindo a passos lentos em direção ao beco. Minha mente ficou planejando uma rota a cada passo, e no fim acho que consigo fugir do baixinho armado com algumas sequelas mas daquele alto seria impossível, principalmente se ele estiver montando guarda para a tortura que querem me aplicar.
Talvez se eu fingisse participar consiga escapar escalando, pesado como parece ser ele não me pegaria, então meu último obstáculo seria as flechas daquela besta. Me recuso a cair sem lutar.
Sinto os dois a alguns passos de distância, me guiando para a sombra bem-vinda do beco. Há um muro delimitando o fim e era para lá que eu estava sendo forçada a ir, onde só um amontoado de lixo e restos me aguardava.
Não, não era lixo.
Conforme fui chegando ao muro, notei, largados e despidos, uma dupla de homens com os pescoços estranhamente soltos.
Parei no lugar quando enxerguei os característicos bigodes curvos dos extremistas.
Mal tive tempo de reagir quando senti, no meio das costas, o metal morno da ponta daquela lâmina.
Não precisei me virar, a presença dele emanava calor, e estava tão perto que nossas sombras se fundiram no chão.
Na minha frente, o guarda magro abaixou a bandana e revelou o rosto de traços finos e olhar severo tão fatal quanto a besta que apontava para mim.
Nas minhas costas, o perigo do deserto encarnado num homem, dizia:
— Finalmente conseguimos encontrar você.
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