Capítulo 02 - “A coroa está no cervo”
03 de Março.
Passei pelo cercado de madeira que faz o cenário parecer mais uma fazenda do que uma “cidadela”. A sensação de passar pelos pequenos portões de madeira era como a mudança de um território para o outro. Isso se dá pela barreira que cerca a região.
Fui dirigindo cuidadosamente pela estrada por entre pequenas casinhas com as luzes apagadas e, então, estacionei a moto em frente à construção principal. As paredes descascadas e cheias de pichações deixam cada vez menos convidativo. O cheiro de coisa velha também.
Este se chama Alexyas, o prédio de um antigo shopping de dez andares abandonado no interior do Canadá, escondido em uma pequena área que criei dentro de uma das florestas. Lá temos algumas pequenas construções humildes onde abrigamos os não-humanos que não tem para onde retornar.
Aqui criamos uma pequena sociedade e lutamos para fazê-la funcionar tranquilamente nos últimos anos. Isso inclui um feitiço de proteção antigo.
- Boa noite, chefe. - A voz doce se fez presente soando por entre os galhos de uma das grandes árvores espalhadas pela área. - Espero que não tenha se esquecido de seus afazeres.
O homem que desceu da árvore possui curtos cabelos dourados com uma leve ondulação. Seus olhos com íris num tom gélido azulado e um sorriso de canto em seus lábios.
- Boa noite, Noah. Sei que terei que revisar alguns papéis, mas sinto que você está falando sobre algo em específico. - Eu disse enquanto descia da moto e retirava meu capacete.
- Você tem uma reunião marcada com Bolt às 22:00. Ele quer falar com você sobre o desafio da subdivisão…Na verdade, acredito que ele vai mandar aquele “Big Brian” no lugar dele novamente.
Noah sempre foi muito direto e sempre se precavia já que eu costumo me esquecer de algumas pequenas coisas. Este jeito metódico veio de sua herança como bruxo.
- Entendi, e que horas são?
- 21:50, chefe.
Ele não precisou nem dizer nada. Seu olhar já me deu um sermão por si só.
De qualquer forma, o desafio da subdivisão do Bolt sempre foi uma idiotice para mim. Esta não é a primeira vez que ele me desafia e não será a última.
Por fim, decidi me abster e só entrar no prédio.
Apesar de todos os pontos negativos na aparência daquele lugar, eu sempre me sinto acolhido ao passar pelo salão principal, onde jaz a estátua do cervo azul de chifres rosa. Nosso símbolo.
É claro, não podia faltar um quadro com as leis absolutas da organização e a assinatura com os nomes inefáveis dos fundadores e membros do conselho.
Dásos. Esta que é a palavra grega para “Floresta” e nome da organização especializada em rastrear e proteger não-humanos. Fundada pela família Leones que fez com que tudo funcionasse perfeitamente.
As divisões da organização Dásos ganham nomes de animais e, independente de qual for, sempre obedecerão aos Três Leões: os três irmãos Leones que compõem o conselho da organização.
Faço parte da Dásos desde meus 13 anos de idade e nunca tive problema algum com as regras que eles impõem, mas, agora que sou líder de divisão, tenho tido mais dores de cabeça.
A Dásos tem suas maiores e mais confiáveis divisões, sendo a Divisão Cervo em primeiro lugar, a Divisão Lobo em segundo e a Divisão Águia em terceiro.
Quando recebi a liderança da Divisão Cervo seis anos atrás, foi doloroso manter tudo em ordem, mas me acostumei com certas coisas depois de um tempo.
Apesar do prédio estar caindo aos pedaços por fora, por dentro ele se mantém perfeito e, inclusive, com um elevador que também funciona!
- Deveria largar aquele emprego no restaurante, chefe. Está atrapalhando suas tarefas como líder. - Disse Noah, entrando no elevador junto comigo. - Como irá se preparar para o desafio contra Bolt em menos de 10 minutos? Impossível. Peça demissão e passe a morar aqui conosco, chefe.
- Não vou pedir demissão. Você sabe que é mais perigoso para vocês se eu ficar por aqui. - Eu respirei fundo e encostei as costas na parede do elevador logo após apertar o botão do último andar. - E não vou aceitar o desafio do Bolt.
- Certo, entendo. Mas– Noah se interrompeu depois de alguns segundos digerindo o que eu havia acabado de dizer. Ele virou em minha direção, completamente indignado. - Não vai aceitar?! Que história é essa, chefe?!
- Bem, não existe uma regra que fala que eu preciso aceitar todos os desafios que me propuserem, não é? Acho uma perda de tempo e energia ficar dando atenção à um idiota que nem ele.
Na Dásos, existem as subdivisões. Elas são pequenos grupos que obedecem às divisões oficiais como se fossem uma espécie de “reforço”. Os líderes das divisões geralmente escolhem um representante para a subdivisão que trabalha para ele e, no meu caso, escolhi o Bolt já faz dois anos. Apesar disso, ele não é dos mais fortes, então, sempre que tem vontade de me desafiar, ele manda seu “subordinado mais forte”, o tal do Big Brian.
Contudo, existe uma regra que, se um integrante da subdivisão vencer uma luta contra o líder da divisão que o comanda, ele poderá tomar o seu lugar. Bolt vem tentando vencer nos últimos anos, mas o resultado é sempre o mesmo: ele, ou quem quer que ele tenha mandado, fracassa. Eu permaneço.
Apesar de tudo isso, não há nada dizendo que eu preciso aceitar sempre que ele quiser me desafiar.
- Mas, chefe, você é o líder da Divisão Cervo! E se pensarem que você está com medo de perder e por isso não aceitou o desafio? - Disse Noah parecendo mais preocupado do que eu.
- Eles não pensarão isso de mim, não precisa se preocupar.
O elevador finalmente abriu as portas e eu estava no andar da equipe principal.
No andar mais alto do prédio Alexyas jaz meu escritório, oito quartos onde os meus membros de maior confiança dormem e uma pequenas áreas para serem nossa sala de estar, cozinha, e tudo o mais. É quase uma casa onde vivem todos que compõem a cabeça do cervo.
- Mas, chefe…! - Noah balançou as mãos indo e voltando enquanto suspirava de forma desacreditada. - O que devo dizer quando o Bolt aparecer aqui, então?
Eu atravessei a sala de estar e entrei no meu escritório, deixando aberta as grandes portas de vidro. Me sentei na minha cadeira atrás da mesa coberta de papéis e coloquei os pés apoiados em uma pilha qualquer de livros antigos que guardávamos por ali.
- Fala que eu estou ocupado com coisas mais importantes do que ele e seu complexo de superioridade.
Noah franziu as sobrancelhas por alguns instantes e caminhou silenciosamente até mim antes de pronunciar qualquer palavra. As costas de uma de suas mãos encostava em uma parte nua do meu braço esquerdo.
- Hm? - Eu o olhei. Já sei bem o que ele está fazendo.
- Está de bom humor, chefe. - Disse Noah enquanto sorria graciosamente. - Há poucos dias em que você está assim. Fico feliz.
Noah possui poderes especiais herdados do clã de bruxos de onde veio. Um destes poderes é a compreensão de sentimentos pelo toque. Apesar de ter sofrido por não ser um poder que consegue desativar, ele torna quase impossível mentir para ele.
- Falarei com Bolt.
Noah voltou ao elevador de forma determinada, me deixando para trás.
“Bom humor?”, eu pensei. Ajeitei um pouco minha postura na cadeira e pensei por alguns minutos.
A Divisão Cervo sempre tem algum problema para me dar dor de cabeça mas, sinceramente, se passo um dia sem ver as pessoas daqui, me sinto incompleto.
Na verdade, sinto que tem algo mais que me faz sentir bem quando estou aqui…mas o que?
Um tempo depois, quando decidi começar a organizar a bagunça do escritório, o telefone da mesa coberta de papéis tocou repentinamente, me dando um susto. Quase dei um pulo da cadeira, mas logo me recompus e o atendi de forma meio rabugenta.
- O que é?!
- Lu!
A voz aveludada porém nervosa era Daiyu, minha secretária. Agora, parando para pensar, não a vi no salão principal. Ela deveria estar em outro lugar quando subi para o primeiro andar.
- Daiyu? O que foi?
Prontamente me pus a olhar pela grande janela que há no meu escritório. Vi alguns motoqueiros chegando e parando seus veículos desajeitadamente em qualquer canto ao redor do prédio. Alguns moradores das casas ao redor acordaram com a confusão já que eu pude ver os curiosos saindo de suas casas para ver a situação..
Pelo símbolo mal-feito de uma hiena estampada em cada colete que aqueles motoqueiros vestiam, já sei que é coisa do Bolt.
- Big Brian apareceu com a subdivisão de Bolt e está exigindo sua presença aqui! - A voz de Daiyu tremeu. Ela claramente está com medo.
Olhei rapidamente o relógio na parede do recinto. 22:05
“Ele não deixa passar nada”, pensei.
- Noah desceu para falar com o Bolt. Ele está aí?
- N-não, ele–
A voz de Daiyu foi afastada. Apenas ouvi o baque de seu telefone sendo puxado para longe e um grito em protesto vindo da própria.
- Ei, líder dos viadinhos, é melhor você descer logo, ou eu vou começar a arrebentar a garota também!
A voz grotesca e rouca era impossível de não se reconhecer. Big Brian não falava. Ele cuspia palavras.
Eu já deveria ter imaginado, Noah não costuma lutar com qualquer um e Daiyu, sente medo de pessoas intimidadoras. Eles não são da categoria que resolvem qualquer tipo de situação violenta facilmente.
Desliguei sem ouvir o que mais ele tinha a dizer.
Até Big Brian tem seus princípios apesar de tudo. Ele não iria ferir uma mulher…ou ia?
Enfim, fui para o elevador.
No caminho para o salão principal, me dei conta do porquê estava de bom humor. Já faz um tempo que não me encontro com um grande amigo que compõe minha equipe principal. Ele faz aulas de música e, por conta disso, às vezes passa alguns dias no centro da cidade. Amanhã de manhã ele voltará depois de três dias afastado da Divisão Cervo.
Ademais, qualquer sentimento bom em relação a isso já desapareceu. Bolt e sua subdivisão me irritam profundamente às vezes…Ainda mais quando o próprio que foi nomeado líder não dá as caras já faz meses, com medo da derrota iminente em relação aos desafios que ele mesmo propõe.
Sinceramente, o único fator que contribui para que eu não elimine as hienas é o fato de que eles fazem um bom trabalho quando não estão sendo completos imbecis.
- Uma pena…Eu realmente estava de bom humor.
Quando as portas do elevador abriram eu me deparei com aquela multidão de homens sujos com roupas de couro desonrando o piso do meu território.
Big Brian à frente deles. Em seu punho direito um soco inglês coberto de sangue e cambaleando um pouco atrás, Noah com uma das mãos sobre o nariz quebrado.
O braço direito do brutamontes da subdivisão estava ao redor do ombro da jovem chinesa de óculos de lentes redondas. Daiyu estava tremendo e seus olhos castanhos cruzaram com os meus conforme me aproximei da cena.
Ultrapassei a estátua do cervo e, sem tremer um músculo sequer, me pronunciei.
- Saiam.
Noah olhou em minha direção e tentou avançar um passo mas foi chutado na dobra dos joelhos por um outro vestido com o símbolo da hiena. Ele caiu enquanto outros riam.
Big Brian abandonou Daiyu e andou de forma pesada até a minha direção. O homem calvo com cicatriz na cabeça curvou seu pescoço para baixo, me encarando. Nossa diferença de altura é óbvia e clara.
- Já cansei da sua postura, seu merdinha. - As palavras cuspidas por Big Brian cheiravam a cigarro e cerveja. - Você acha que é o rei, não é? Mas se esqueceu que cervos são presas! Nunca estará no topo da cadeia alimentar.
- Saiam. Não direi outra vez.
As risadas ecoaram pelo salão começando pela voz rouca de Big Brian, que logo puxou uma sinfonia desafinada junto dos outros homens que o acompanhavam gargalhando.
- Se não o que?! - Ele riu mais uma vez e puxou do coldre uma glock tão medíocre quanto ele. - Sabe, tem algumas coisas sobre você que me deixam bem curioso…
O cano frio da arma encostou no meu pescoço enquanto eu ouvia o som de seu dedo desativando a trava.
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