28 de Fevereiro.
Era doloroso para o jovem asiático se manter de pé. Sentia como se houvesse, em seu ombro, houvessem toneladas de concreto e isso, consequentemente, o puxava para baixo com toda a força. Ele caiu.
Estranhamente, na situação péssima em que estava, lutando para normalizar sua respiração desregulada, sentindo cada fibra do próprio corpo lutar para não sucumbir ao cansaço extremo, ele sentiu alívio. Estava exausto, irritado, humilhado, mas ao menos ainda estava vivo.
Arrastou-se pelo asfalto sujo e molhado pela chuva que fazia seu corpo pesar ainda mais. Os cabelos negros grudando na nuca e na testa. O cheiro de terra o fazia sentir saudades da sua antiga casa.
Tomando a distância de, ao menos, cinco metros do cassino The Stars, finalmente sentiu que estava livre.
Apesar da vontade de se levantar e retornar para obter vingança pelo que havia passado no que seriam as últimas horas, ele não teria forças para fazê-lo.
- Arisu… - A voz fraca clamou pelo nome da pessoa que mais amava. O único motivo pelo qual o fez lutar tanto para sobreviver mais um dia.
O corpo finalmente deslizou sobre a calçada. O som do impacto das roupas encharcadas caindo sobre uma poça de água da chuva ecoou pela rua vazia na noite fria.
Uma das mãos deslizou sobre o próprio peito. O coração ainda batendo. “Estou bem”, ele pensou.
Uma figura tomou forma saindo das sombras. Era humano, mas ao mesmo tempo não.
- Ei! Onde você estava?! O que aconteceu?! - A voz preocupada se aproximou, mas os olhos vermelhos já não estavam mais abertos para que ele notasse que seu chamado foi atendido.
Kazami não desmaiou, ele apenas dormiu.
02 de Março.
Quando abriu os olhos, o coração disparou mais uma vez. A sensação era a mesma de acordar depois de um pesadelo.
A janela com uma pequena fresta entre as cortinas, deixando um tímido feixe de luz iluminar o quarto simplório com cama coberta por lençóis brancos e macios, um tapete felpudo cor creme e algumas roupas dobradas sobre a cômoda acinzentada.
Olhando ao redor Kazami notou que provavelmente estava em um hotel, já que tudo estava estranhamente arrumado e limpo, assim como ele mesmo.
- Finalmente acordou.
A voz soou ao lado repentinamente de forma que qualquer um se assustaria, mas não Kazami.
Sentado sobre uma cadeira ao lado da cama estava um jovem rapaz. Longos cabelos que comportam tamanha grandiosidade do tom vermelho mais vivo do que o sangue de qualquer ser de veias pulsantes. O entrelaçar sanguíneo preso em uma trança longa que arrastava no chão quando se sentava.
A pele pálida como a de um morto destacando as cores vivas que acompanham os detalhes das íris esverdeadas como duas pedras de jade.
Kazami mordeu os lábios admirando o demônio a sua frente por longos segundos. Sentiu tanta falta de sua presença que poderia passar o dia inteiro ali, desperdiçando tempo para guardar em sua memória todos os detalhes que já conhecia muito bem. Principalmente, o de olhos vermelhos sentiu falta de marcar com seu amor aquela pele delicada como seda. Naqueles segundos em que o admirava, excitou-se com a ideia de sentir que finalmente estava livre para tocar a pessoa que amava novamente.
Contudo, a falta de humanidade se destacava a cada detalhe que era notado no ruivo. Orelhas pontiagudas, presas afiadas e uma longa cauda negra com uma seta na ponta.
Os segundos se passaram, e o demônio exigiu uma resposta, tremendo a sobrancelha em irritação.
- Está se sentindo melhor agora?
A voz soava deleitante mesmo que próxima de iniciar uma briga com Kazami. Ele apenas suspirou e relaxou todos os músculos novamente, sentindo o peso do corpo sobre a cama macia e o travesseiro extremamente confortável.
- Estou bem, obrigado por me ajudar,... - Um sorriso malicioso surgiu no canto dos lábios. Os olhos formando uma meia lua. - …meu príncipe, Arisu.
A sobrancelha tremeu mais uma vez. Arisu revirou os olhos em seguida.
- Me parece que a missão falhou. Me conte o que aconteceu.
Kazami inclinou levemente o rosto para o lado oposto. Não sabia ao certo que reação o demônio teria quando ouvisse sobre o que não sabia o que lhe aconteceu ou quanto tempo ficou preso onde estava. Ele queria evitar qualquer conflito naquele primeiro momento de paz que teve mas, mesmo assim, não perdeu a compostura.
- Esse assunto vai ser chato. Por que não conversamos sobre você? O que fez nesse tempinho em que eu estive fora?
Kazami sempre gostou de brincar com fogo, ainda mais quando se tratava de Arisu, um demônio elemental.
- Fale. Agora.
A voz do demônio engrossou enquanto ele cruzava os braços. As veias começando a saltar, sem paciência para brincadeiras.
- Você simplesmente voltou para o mundo humano sem mais nem menos. Não falou comigo sobre isso. Não avisou nada. - A voz do demônio falhou no final. - Você me abandonou…
Kazami virou quase que de imediato na direção de Arisu. Presenciou um olhar cabisbaixo e marejado. Ambas as mãos fechadas em punhos apertados sobre as pernas. A angústia preenchia o ar ao redor do ruivo quase como se sua dor fosse palpável.
- Arisu… - Kazami se moveu.O corpo leve novamente, como se nada de ruim jamais tivesse acontecido. Mal fez qualquer som até estar frente a frente com o demônio de cabelos vermelhos. - Me perdoe, não queria que se sentisse assim. Eu…não pensei direito.
A família Kazami é orgulhosa. Dificilmente cometem erros e, se cometem, jamais ouviriam uma retratação. Sua família não pede desculpas mas, naquela situação… era diferente.
- Você sumiu por dois meses! - Arisu finalmente permitiu que a voz se libertasse. Ele se levantou de forma brusca, derrubando a cadeira para trás e afastando uma das mãos de Kazami, que se aproximava tentando acalmá-lo em vão. - O que esperava que eu sentisse?! Alegria?! Por que ainda me trata assim?!
O asiático ficou estático por alguns instantes. Cada palavra cortava um pedaço de seu coração. Achou que protegeria o amado o mantendo longe dos problemas que arrumou para si, mas lhe pareceu uma ideia ruim quando se colocou no lugar dele naquele momento. O que Kazami pensaria se fosse Arisu a sair em uma missão perigosa sem lhe informar nada? Ainda mais por dois meses?
Mas espere… dois meses?
- Você sempre faz isso! Esquece que eu sou forte, que sou o neto do Rei do Inferno! - A voz embargada acompanhava as íris de jade refletindo a luz nas lágrimas que lutavam para não escorrer. - Sou forte, por isso todos me odeiam! Tem medo de mim por causa disso! Você foi o único maldito que fez eu me sentir amado e tudo para partir em missões sozinho?! Sumir durante meses?! Aparecer quase morto na frente de um cassino?!
Era certo que Kazami não sabia lidar com discussões daquele tipo. Ele queria falar. Queria se ajoelhar e pedir perdão por todos os sentimentos ruins que fez Arisu sentir naqueles meses mas, a cada vez que sua boca se abria para falar, o demônio gritava mais alto.
Kazami mal teve tempo de digerir a informação de que ficou preso por dois meses, quando achava que eram algumas horas. Na verdade, naquele momento, essa informação não importava.
- Você é inacreditável, Chiyo… Não mudou nem mesmo por mim… - Enfim, a voz do demônio diminuiu, quase sumindo. As duas mãos sobre o rosto tentando cobrir a dor que sentia latejar no fundo do seu coração. Outro detalhe se destacava: garras negras afiadas.
- Arisu… - Kazami se aproximou quando o demônio tremeu em um suspiro que iniciou o choro. - Perdoe esta pobre alma.
As mãos humanas entrelaçaram ambos os pulsos pálidos, abaixando as mãos que carregavam garras negras. Ambas as íris se perdendo uma na outra. Arisu parece só ter notado agora: Kazami estava vivo e bem, na sua frente. Mesmo ainda estando triste, ele sentiu alívio.
- Achei que seria a decisão certa cumprir a missão do Rei do Céu sozinho. - As mãos humanas desceram e seguraram as do demônio. - Não quis colocá-lo em perigo. Eu o amo muito. Você é meu coração. - Um selar gentil foi deixado sobre as mãos trêmulas do ruivo. - Mas está certo quando diz que você é forte. Foi erro meu achar que você correria perigo sendo um alvo nesta missão. Mas eu sou humano, eu erro todos os dias.
O olhar de Kazami, outrora cabisbaixo e culpado, se ergueu para encarar Arisu novamente. Sério e determinado, para mostrar que não havia mentiras nas palavras que diria a seguir.
- Mas aprendo com os meus erros e não costumo cometê-los de novo. Não esconderei mais nada de você.
As lágrimas pararam de correr. Arisu congelou naquele instante.
Não costumava ver o asiático tão sério com frequência, aquela expressão o fez recolher as mãos e recuar um passo. O demônio sentiu o rubor nas próprias bochechas que ficavam quentes.
Kazami raramente criava vínculos. Não tinha amigos, não tinha mais seus pais. Todos com quem tinha um laço estavam iguais: mortos.
O único que permaneceu foi Arisu. A única parte viva de seu coração. O único que conseguia extrair tais sentimentos do membro da família mais inteligente do mundo.
- Vou acreditar em você… Só desta vez. - Arisu suspirou, limpando as lágrimas com as costas das mãos. Mesmo explodindo de raiva em momentos como este, não conseguia mantê-la por muito tempo depois do asiático se explicar.
Kazami soltou uma risada anasalada e deixou seus instintos tomarem conta. Uma das mãos segurou o queixo do demônio, o virando em sua direção. Desta vez o selar fora deixado sobre os lábios aveludados do ruivo, que corou ainda mais, tornando suas bochechas quase da mesma cor de seu cabelo. Ele iria recuar mas, tal como o de olhos vermelhos, Arisu também sentiu saudades.
Os lábios se separaram. Kazami sentia uma vontade crescente de prosseguir até alcançar o que queria, mas Arisu permaneceu com uma expressão emburrada. Ele também queria continuar, mas não antes de uma explicação.
- Fale.
- Como você é insistente… - Kazami suspirou em uma risada, mas cumpriria com sua promessa. Ele se sentou na cama e começou a falar: - O Rei do Céu me enviou para o mundo humano para matar um dos filhos dele.
- O que? - Arisu sentou-se ao lado. - Um dos Nove Menores? Quem?
- O filho mais velho, o representante da morte… Mas teve um problema. - Kazami suspirou e passou uma das mãos sobre a testa. - Sena me enviou uma mensagem no caminho…
Os olhos de Arisu se arregalaram.
- O Guardião do Futuro?
- Sim. - Kazami ajeitou a postura. A história seria longa. - Ele falou algo sobre uma profecia antiga. Disse que o próximo apocalipse estaria previsto para algum ano entre 2040 e 2042. Um ser desconhecido viria de um lugar que não conhecemos e ameaçaria o nosso futuro.
- Por que o Guardião do Futuro falaria com você sobre uma profecia dessas? Até onde sei, ele deveria proteger a ordem e evitar o fim do mundo sozinho. - Arisu falou de forma irritada.
- Me parece que é algo mais complicado do que isso. Pelo que entendi, existe um grupo de pessoas que completarão entre 15 a 18 anos no período de tempo entre 2040 e 2042. Estas pessoas impedirão esse inimigo desconhecido de acabar com o mundo em que vivemos.
A ideia é que deve ser garantido que estas crianças nasçam, mas é aí que está o problema…
- Infernos… - Arisu estalou a língua enquanto jogava o corpo para trás, se deitando. - …Uma das crianças é filho do representante da morte?
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