Capítulo 05 - “Não gosto de tempestades”
O lugar é frio e molhado. Senti o vento viajar pela minha pele como um lençol gélido e fantasmagórico repousando sobre meu corpo. Meus olhos estão abertos, mas não consigo ver nada.
- Como está sendo? - A voz ecoa ao redor. Eu já a ouvi antes…mas onde? - Está indo bem sem mim?
Uma enchente de memórias distorcidas fizeram o nível da água fria ao redor aumentar. Eu fiquei submerso. Não conseguia respirar mais.
Ouvi gritos. As palavras desesperadas lançadas ao vento perguntando para onde iria agora que não há mais uma casa para onde voltar. Esta voz era minha.
- Você ainda se culpa?
04 de Março.
Eu abri os olhos em um susto que fez com que eu me sentasse na mesma hora. Minha mão direita repousou sobre meu coração disparado para confirmar que ele ainda permanecia batendo. Era só um sonho.
- Só um sonho, só um sonho… - Eu murmurei baixinho. Minha respiração normalizou lentamente enquanto eu encostava as costas no sofá onde estava.
Pensando bem… Agora que percebi. Eu dormi na sala.
Olhei em volta através da porta de vidro do escritório. Pelo menos consegui arrumar as coisas antes de cair no sono. Não estava mais a bagunça toda da noite passada.
Aquela voz que ouvi em meu sonho… Eu sabia de quem era.
Coloquei um dos braços sobre a cabeça e fechei os olhos mais uma vez.
Não importa quanto tempo passe, eu não consigo me esquecer.
- Bom dia, chefe.
A porta de um dos quartos se abriu repentinamente, Noah acaba de acordar.
O bruxo se fez presente vestindo um roupão e segurando um pente cujo usava para deslizar entre as mechas loiras cuidadosamente.
- O dia não está bom. - Eu disse enquanto me virava para o lado e colocava uma almofada sobre a cabeça. Queria dormir mais…
- Aki mandou uma mensagem dizendo que tem que resolver algumas coisas, então vai chegar tarde. Vamos esperá-lo para receber Jeffrey?
Noah andou até a cozinha americana e largou o pente sobre o balcão enquanto virava-se para preparar seu chá.
- Tanto faz–
Eu me interrompi quando notei que estava respondendo no modo automático. Logo levantei a cabeça em um movimento brusco que fez a almofada cair sobre o tapete felpudo.
- Jeffrey? Ele está vindo para cá?
Tirei parte do cabelo bagunçado que caía sobre meu rosto e nem sequer me preocupei em disfarçar a surpresa com aquela informação.
- Sim. Daiyu te ligou ontem de manhã para avisar sobre isso, mas acho que você estava ocupado com o restaurante. Enfim, Jeffrey disse que tem uma informação importante de nosso interesse. - Noah soou calmo como sempre, vez ou outra assoprando a caneca com o líquido quente.
Grunhi deprimidamente. Meu dia mal começou e já está sendo ruim.
Jeffrey Davies é um informante e dono da rede de cassinos Stars, em Nova York. Encontrei com ele algumas vezes quando eu era mais jovem e, de certa forma, não foram situações boas.
Nos últimos anos ele parece achar que tem algum tipo de poder sobre mim e, sinceramente, isso me irrita.
Mesmo que seja para me dar uma informação importante, não tenho a mínima vontade de me encontrar com aquele homem.
- Noah. - Eu me sentei no sofá. Já aceitei que não vou conseguir voltar a dormir.
- Sim? - Ele me olhou enquanto tomava um gole do chá.
- Avise para o Bolt que eu aceito oficialmente o desafio e que ele pode escolher um local para lutarmos.
Noah se engasgou com o chá.
- É o que?! Por acaso ficou louco, chefe?!
- Você se curou do soco que levou, não é? Só fique mais atento dessa vez porque o Bolt e Brian não batem bem da cabeça.
Levantei do sofá e alonguei os braços. Hoje é minha folga do restaurante, então meu plano é dar uma volta e ver como os abrigados estão antes de voltar ao trabalho.
- Chefe, vai negligenciar o encontro com Jeffrey Davies para dar atenção a um membro de uma subdivisão?! Isso é loucura!
O bruxo soltou a caneca sobre o balcão e encarou-me indignado apoiando ambas as mãos na cintura.
- Jeffrey não é isso tudo. A informação dele pode nem ser tão valiosa assim. Ah, e diga que minha única condição é que Bolt participe da luta. Já cansei de brigar com as outras hienas.
Eu bocejei e me dirigi ao banheiro. Ouvi os passos de Noah vindo logo atrás mas não me dei o trabalho de virar.
- Mas, chefe, e se for algo importante? Ele sabe sobre quase tudo que corre pelos grupos que são contra a Dásos! O que falamos para ele? Que ele deve esperar e falar com você outro dia?!
Noah parou na minha frente e abriu os braços ainda desacreditado. Como sempre, obstinado a receber uma resposta imediata.
- Noah, me escute, eu não vou mandar Jeffrey de volta para casa. Só vou resolver outra questão antes de falar com ele.
O bruxo cruzou os braços e me encarou ainda sem fé.
- Ele vai me esperar. Ele sempre espera. - Eu disse.
Por sorte, Noah assentiu, desistindo da discussão e aceitando minha decisão antes que meu rosto transparecesse minha repulsa pelo dito informante que deseja tanto me encontrar.
O loiro abriu caminho e eu adentrei o banheiro, trancando a porta logo atrás de mim.
Me movi no modo automático para ligar a torneira que enchia a banheira com água quente. Me peguei assistindo a água se acumulando e senti algumas lembranças emergindo.
O par de mãos ásperas e brutas segurando minha nuca mantendo minha cabeça embaixo d’água. O calor que eu considerava amigável vinha acompanhado da voz masculina que dizia “você não pode escapar de mim”.
A memória é distorcida. Talvez nem fosse algo real, mas foi algo que implantou-se na minha mente de forma que ainda me assombra só de ouvir o som da água.
Quando me dei conta, já havia desligado a torneira.
“Talvez um chuveiro seja melhor”, pensei.
Antes que a manhã chegasse ao fim, eu saí do prédio para visitar as casas ao redor. É uma sensação estranha porém acolhedora passar uns dias nesta pequena civilização. Na verdade, me parece uma fortaleza. Talvez chamar esse lugar de “cidadela” seja mais apropriado.
De qualquer forma, todos aqui me conhecem e eu conheço todos. Funcionamos como uma grande família.
- Senhor, você voltou!
A voz adolescente soou animada vindo na minha direção.
- Ah, bom dia, Damon. - Eu disse, sorrindo.
O jovem rapaz com um curto cabelo rosado se aproximou com um sorriso de orelha a orelha. Suas vestes um pouco bagunçadas e sujas de terra. Ao fundo, o senhor Robert, acenando.
Já faz um tempo que eles vêm trabalhando juntos nas plantações por aqui.
- Senhor, é verdade que venceu o Big Brian sozinho ontem a noite? Vimos as hienas chegando com armas!
- Bem, sim. Eu dei um jeito nele. Não precisam temer as hienas. Está tudo sob controle.
O olhar de Damon se iluminou ainda mais.
- Senhor, quando eu ficar mais velho, quero ser forte assim!
Damon foi o mais recente não-humano resgatado e acolhido pela Divisão Cervo. Três meses atrás, quando o resgatamos, não imaginaríamos que ele ficaria tão bem e tão rápido. Bem, exceto pelo seu olho direito, que não enxerga mais por conta de um “acidente”.
- Você ficará, Damon.
Enquanto conversávamos, o senhor Robert se aproximou. Uma das mãos nas costas e a outra sempre alisando bigode.
- Jovem Lu, você está de volta. - A voz rouca e arrastada era acompanhada de um sorriso gentil vindo do ancião. - A senhorita Mallory estava esperando o seu retorno. Ela sente saudades.
- Ah, é verdade. A senhora Mallory. - Damon disse enquanto colocava uma das mãos no queixo, o sujando de terra também. - Se me lembro bem, Lilly também tem ficado triste por não ver o senhor.
- Céus, é verdade…
Uma certa culpa me corroeu profundamente neste instante. Eu praticamente me preparei para correr para a casa onde encontraria os citados, mas voltei aos dois com quem conversava antes de ir.
- Vejo vocês depois.
- Claro. Se divirta, senhor! - Disse Damon.
O senhor Robert apenas acenou, ainda sorrindo.
Eu, de fato, corri em disparada ladeira abaixo enquanto torcia para não tropeçar.
Mallory é uma senhora de 60 anos e é, de longe, a pessoa resgatada que mais se aproximou de mim e dos outros membros principais da divisão.
Ao contrário da maioria dos não-humanos que resgatamos, Mallory não é do tipo que possui poderes ou algum tipo de habilidade fora da compreensão humana.
Ela é o que chamamos de “hospedeiro”.
Esta “condição” que a faz ser uma não-humana foi descoberta recentemente pela Divisão Cervo. Até então, não encontramos mais nenhum hospedeiro além dela.
Ela foi uma das que acolhemos no mesmo ano em que me tornei líder. Ela havia sido internada em um hospital psiquiátrico para tratar transtorno dissociativo de identidade e uma série de outros. Porém, sua realidade se tratava do resquício de um demônio que ela carregava dentro de si desde sua infância.
A história da antiga ruiva é inundada de perturbações e situações extremamente dolorosas, mas isso não a impediu de encontrar a paz por aqui, muito menos de cuidar de todos do jeito dela.
Ademais, a casa dela não é longe de onde eu estava, então cheguei lá rapidamente depois de comprimentar meia dúzia de mais alguns pelo caminho
Não posso negar que subi os degraus de madeira na frente da casa de forma animada. Toda a decoração de Mallory parecia ter saído de um filme de fantasia antiga.
De qualquer forma, antes de bater na porta eu me revistei. Queria garantir que não estava carregando nada considerado perigoso comigo já que Mallory não morava sozinha. Por sorte, nem com meu celular eu estou.
Por fim, fechei o punho para dar leves batidas na porta de madeira, mas minha pele nem chegou a sentir sua temperatura, já que ela foi aberta antes do toque.
É a anciã que vim encontrar. A velha senhora usando um vestido rosa claro e um xale florido sobre os ombros cerrou os olhos esverdeados e ajeitou no rosto os óculos para olhar em minha direção. Segundos depois, ela sorri.
- Lulu.
As mãos revestidas de rugas se esticando em minha direção. Mallory me recebeu de braços abertos, literalmente. Como sempre, me abraçou.
- Desculpe não ter voltado antes, tia Mallory.
- Ora, não se preocupe com isso! Sei que você é uma pessoa ocupada, Lulu.- Ela disse, logo em seguida segurando uma de minhas mãos, guiando-me para adentrar a casa. - Venha, vamos fazer um lanche e conversar. Você sempre está tão magrinho.
Eu ri. Mallory é uma das duas pessoas sempre tiveram uma questão sobre minha alimentação.
- Ah, tia Mallory, Lilly está?
- Infelizmente não, Lulu. Ele está na escola, mas deve voltar no fim da tarde.
Sentei-me na cadeira à mesa na cozinha com papel de parede florido enquanto a grisalha pegava algumas coisas em um de seus armários.
- Entendo. Ele está indo bem na escola? Tive medo dele não se adaptar–
Eu me assustei com o tamanho do pote de vidro cheio de biscoitos caseiros que foi posto sob a mesa de forma levemente desajeitada. Mallory certamente é uma senhora muito forte.
- Ah, Lilly está bem! Ele tem sido bem mais controlado ultimamente.
Lilly é, sem sombra de dúvidas, uma das coisas mais importantes que tenho em minha vida. Um não-humano extremamente poderoso e de raça desconhecida que vive comigo desde antes de eu me tornar líder. O tenho como um irmão mais novo desde que o conheci.
Sempre fomos inseparáveis mas, com o cargo de líder, eu acabei com um alvo muito grande em minhas costas, então decidi que manteria Lilly longe desse tipo de perigo.
Apesar de ele não ter saído das cercas da minha divisão, é mais seguro e mais justo que ele viva tranquilo com Mallory do que uma vida dupla comigo, que viajo para lá e pra cá com pessoas me caçando a todo momento. Enfim, a ideia sempre foi mantê-lo longe, mas perto.
- Fico feliz em saber. Não achei que fosse ser fácil.
- Ah, e não foi. Lilly é muito temperamental e tem uma quantidade infinita de teimosia. - Disse Mallory enquanto balançava a cabeça negativamente e colocava um pouco de chá em uma das duas xícaras que pôs sobre a mesa. - Sabe, quando eu era jovem…
Eu sorri de canto. Quando Mallory começa a frase com “quando eu era jovem”, sempre vem uma longa história em seguida. De qualquer forma, eu sempre gostei de ouvir.
-...havia um rapaz muito carismático chamado Chiyo. Ele ia para todos os lugares com o melhor amigo, um queridinho de cabelo vermelho. E, juro, eu vejo muito do Chiyo no Lilly! Talvez uma versão menos sarcástica e ácida, mas Lilly é muito parecido com ele. Então,... - Ela sorriu de forma entristecida enquanto olha uma das xícaras que serviu - …eu já sei bem como lidar com ele.
- Tia Mallory… - Eu me aproximei um pouco. Talvez de forma mais curiosa do que eu gostaria. -...É a primeira vez que fala deste Chiyo. Era um amigo seu?
Há ocasiões em que relembrar o passado só torna as coisas mais dolorosas mas, com Mallory sempre foi o oposto. O rosto da anciã se iluminou ao ouvir minha pergunta e ver meu interesse.
Isso se estendeu em uma longa conversa sobre um menino de olhos vermelhos.
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