Capítulo 06 - “Deve ter se sentido sozinho”
O lençol de água fria empurrada pelo vento projetava ondas que me faziam afundar mais e mais.
A princípio meu corpo ainda conseguia se mover. Eu me debati desleixadamente, mas não sabia nadar e, mesmo que conseguisse, como o faria em meio a uma tempestade?
Além de tudo, quando caí no mar, senti que bati em algo, talvez uma pedra. Sentia um estalo estranho em uma das minhas pernas a cada vez que eu as mexia sem coordenação em busca de ar na superfície.
Nos poucos segundos em que eu emergia antes de ser soterrado por mais uma onda, tentei buscar algo que pudesse me ajudar, mas tudo que vi foi uma enorme tela azul furiosa com trovões ecoando pelos céus.
Meu coração acelerou. Uma das hipóteses paranóicas que mais gritaram sobre minha insegurança foi a possibilidade de cair na água. “Eu sabia, eu sabia!”, eu pensei enquanto afundava mais uma vez.
Minha visão ficou turva. Senti a água salgada me abraçando e entrando pela minha garganta que ansiava tão desesperadamente por oxigênio.
Movi minhas mãos até meu pescoço e o arranhei em meio ao desespero. Eu precisava respirar.
Antes de desmaiar eu vi a água ao redor em um tom vermelho. Foi quando reparei, de relance, que meu úmero estava rasgando minha pele, tingindo o mar com sangue ao meu redor. Talvez não só ele, já que eu provavelmente estava cheio de fraturas pela queda.
Isso me lembrou… meus poderes permitem que eu crie armas e alguns objetos a partir de material de origem humana. Ossos, sangue.
Mas não importava mais. Eu já estava afundando.
Foi quando eu decidi parar de lutar.
Subitamente eu abri meus olhos, ofegante como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo.
Olhei ao redor e vi uma mesa de jantar vazia. Algumas cadeiras ao redor, mas ninguém por perto. Uma televisão ligada passando um filme qualquer. Aquilo tudo era familiar.
A porta ao lado se abriu. Um homem de cabelos platinados e desgrenhados entrou segurando algumas sacolas
- Oi, Lotto! Voltamos com a comida! - Ele falou de forma totalmente energética.
- Demoramos porque Yuha sempre fica indeciso no que quer. - Um outro homem disse, entrando logo em seguida. Este com cabelos castanhos claros e um sorriso gentil. Ele também carregava bolsas.
- O que? Jin quem ficou indeciso, Baek! - O desgrenhado retrucou, colocando as sacolas sobre a mesa antes vazia.
- Eu? - Um terceiro entrou com uma carranca irritada carregando mais sacolas. Este com cabelos lilás com a raís negra. - Foi o C4 quem demorou porque não encontrava a carteira!
Uma quarta pessoa surgiu.
Um homem com cabelos negros com pontas brancas que batiam em seus ombros. Alguns piercings acompanhavam a fisionomia serena seguida de olhos castanhos avermelhados. Ele ignorou a confusão causada pelos outros e olhou em minha direção.
- Desculpe te fazer esperar, Lu. - Ele se aproximou e puxou uma cadeira para sentar ao meu lado. - Deve ter se sentido sozinho.
Sozinho…?
Senti se formar um nó em minha garganta. “Não pode ser real”, eu pensei.
Para eles estarem na minha frente de novo só pode significar duas coisas: tudo o que aconteceu nos últimos anos foi apenas um sonho, ou…
…eu estou morto assim como eles.
Estranhamente senti como se algo me distanciasse cada vez mais das pessoas presentes naquela sala. Como se eu fosse puxado lentamente para longe. Aquilo fez com que eu me levantasse, derrubando a cadeira atrás de mim.
“O que é isso? Eu não posso ficar…”, eu pensei. Apesar disso, senti que não era nula a vontade de contrariar minha razão.
Senti uma pressão incomum sendo feita em meu peito, como uma ressuscitação. Isso se repetiu algumas vezes enquanto eu me afastava mais e mais.
- Ainda não está na hora. - O de cabelo preto e branco falou. - Mas foi bom vê-lo de novo.
- Espere…! - Eu disse, mas minha voz saiu em um sussurro. - Por favor, me perdoem!
Queria ser ouvido, mas a voz já não saía mais.
Lentamente o cenário aconchegante estava se desfazendo. Um sumia, em seguida o outro, e mais um… e, então, o último.
Nada não passou de um sonho. “Mas o que é isso?”, eu me perguntei.
Antes de abrir os olhos eu senti algo macio e quente sendo pressionado sobre meus lábios junto de um aperto em meu nariz de forma nada gentil.
Quando recuperei a consciência completamente eu usei as poucas energias que me restavam para me virar para o lado e tossir, expelindo toda água do mar que estava dentro de mim.
Senti uma mão quente apoiada nas minhas costas e, quando recuperei o fôlego, me virei.
- Porra, você quer me matar de susto?! Achei que você estava morto! - Aki passou uma das mãos sobre a testa jogando para trás a franja molhada de água do mar.
Quando olhei um pouco melhor, vi que Aki estava inteiramente encharcado. Coloquei uma das mãos sobre o peito.
- Estou vivo. Não brigue comigo. - Eu sorri. - Mas ainda estou meio tonto…
Foi quando direcionei meu olhar para minha própria condição. Vi que, de fato havia uma fratura exposta em meu braço esquerdo. Meu úmero ainda estava saudando o mundo fora das minhas entranhas, mas não só ele. Minha tíbia direita também estava para fora, quebrada com uma ponta afiada rasgando minha pele.
- Noah não vai conseguir curar isso completamente e sua amiga com poderes não está perto no momento. Precisamos te levar para um hospital. - Aki foi curto e grosso já se posicionando para me carregar como uma mochila para o hospital mais próximo.
- O que? Não preciso disso! Um feitiço de cura leve do Noah deve dar conta desses ferimentos. - Eu falei enquanto tentava me levantar. Com a visão periférica vi o rastro de sangue que fiz na areia da praia.
Fiquei de pé por menos de cinco segundos. Não sei se caí depois de ouvir o som da fratura da minha perna se agravando ou pela perda de sangue que havia ocorrido. Por sorte, Aki estava ali para me segurar. Tentei apoiar nele com o braço quebrado, mas senti a firmeza dele indo embora. Quando o estiquei para ver seu estado oficialmente acabei deixando escapar uma risada pelo fato de que ele simplesmente não tinha estrutura para levantar mais.
- Você é irresponsável. Não sabe se cuidar sozinho. - Aki puxou meu braço que ainda estava inteiro e me posicionou em suas costas. Apesar de ser um brutamonte, ele andou com cuidado para o movimento não agravar os meus ferimentos.
- Tem razão… Acabei rasgando minha jaqueta e minha calça favorita… - Eu suspirei, oficialmente derrotado. - Estou muito triste, Akira. Você me compraria uma calça nova?
- Por que, raios, eu compraria uma calça nova para você? Não fui eu que dirigi até uma armadilha sozinho. - Aki bufou andando até a moto estacionada na estrada perto da praia um pouco longe do farol.
- Bom, você me beijou, não é? Poderia me comprar uma calça nova por isso! - Eu sorri balançando levemente as pernas, mas parando ao me lembrar que uma delas está quebrada.
- Eu não te beijei. Aquilo foi uma reanimação padrão. - Ele estalou a língua, estava ficando cada vez mais irritado.
Apoiei a cabeça em um de seus ombros. Mesmo tendo saído da mesma água fria que eu, o corpo de Aki estava quente. Na verdade, sempre foi assim.
- Obrigado por me salvar, Aki. - Eu disse enquanto fechava os olhos. A sensação acolhedora fez com que eu estivesse tão confortável que nem notei que a tempestade havia passado. O céu estrelado já estava aparecendo.
Eu dormi.
Abri os olhos quando ouvi uma confusão ao redor de mim.
05 de março.
Eu estava deitado sobre uma maca. As luzes nauseantes do teto hospitalar fizeram meus olhos doerem. Havia uma máscara de oxigênio em mim e senti alguns eletrodos pelo meu corpo mas, no geral, tudo parecia muito confuso.
- Já liberaram a sala de cirurgia? - Uma voz masculina falou próxima de mim.
- Já está tudo pronto, senhor. - Uma voz feminina falou. Mas havia mais pessoas ali.
Não me importei muito com de quem eram aqueles rostos cobertos por máscaras e roupas descartáveis, apenas movi meu braço ainda inteiro e abaixei levemente a máscara para que não impedisse minha voz de sair.
- Aki… - Só consegui falar isso. A visão escurecendo de novo.
Aquilo me fez pensar que, talvez, houvessem mais danos do que parecia. Alguma de minhas costelas provavelmente quebrou e fez mais estrago do que era possível ver por fora.
Enquanto me arrastavam por um corredor eu ouvi uma confusão.
- Aquele homem ainda não se acalmou…?! Temos que chamar um segurança! - A mulher de antes falou. Acredito que seja uma enfermeira.
Olhei de relance, a visão ainda estava turva mas vi Aki. Não ouvi bem o que ele esbravejava, mas sabia que queria me alcançar. É provável que não tenham dado a ele informações suficientes para que esperasse pacientemente o meu retorno.
- Sim, acho melhor chamar um segurança…! - Outra enfermeira disse.
Não seria bom. Aki não sabia controlar a força, muito menos lidar com a raiva. Aproveitei que estava no campo de visão dele e usei meu último suspiro de forças para erguer a mão que ainda movia. Levantei o dedão e sorri.
“Vou ficar bem, não se preocupe”, eu pensei.
Aki pareceu compreender. Seu olhar mudou e não parecia mais querer passar por cima dos enfermeiros que tentavam barrar a sua passagem. Ele até mesmo recuou e se curvou um pouco. Provavelmente se desculpou em seguida.
- Sem seguranças... - E coloquei a máscara novamente.
Por fim, ouvi as portas da tal sala de cirurgia se fechando e adormeci novamente.
Acho que essa confusão toda me fez dormir demais.
Senti o calor de alguns raios de Sol ainda não muito quentes. A luz também me incomodou. Provavelmente está amanhecendo.
- Você viu que aquele cara ainda não foi embora? - A mesma voz feminina de antes.
- Vi. Ele já fez escândalo de novo na recepção. Acha que devemos chamar a polícia? Ele é suspeito. Parece ser de uma gangue. - Uma nova voz soou. Masculina. - É totalmente válido que esse daí esteja envolvido com algo criminoso, por isso estava naquele estado.
- Ai, sei lá… esse não parece ser de uma gangue.
“Estão falando de mim?”, eu pensei enquanto permanecia de olhos fechados.
- Verdade, não parece mesmo. Parece só um gay chamativo.
“Eu mereço isso”, pensei ironizando.
Ouvi o estrondo de algo se quebrando em seguida.
Antes da voz masculina se afastar, ele disse mais uma coisa.
- Só espero que eles tenham dinheiro para pagar todo o tratamento que esse daí teve e não arrumem problema com a psiquiatria…
Com essa última fala eu abri os olhos. A primeira pessoa que vi foi uma enfermeira de cabelos castanhos claros com uma pinta no maxilar. No crachá há o nome “Emily Brown”, e ela estava tão distraída vendo o amigo sair pela porta que mal notou que eu havia acordado.
- Por que não me deixam ver ele logo?! - A voz de Aki quebrou o silêncio do hospital e ecoava pelos corredores.
- Senhor, são normas do hospital. Por favor, se acalme. - A segunda voz parecia ser de um homem mais velho. Provavelmente um segurança do hospital. Surpreendente, já que na noite passada ele foi barrado por enfermeiros.
- Normas do hospital? - Eu perguntei enquanto me virava para Emily Brown.
A mulher se assustou, agarrando-se mais ao formulário que carregava em uma prancheta. Estava tão imersa na confusão no lado de fora que podia ter tido um ataque do coração se eu fosse um pouco mais escandaloso.
- S-senhor, parece que você acordou. - Ela respirou fundo, se recuperando do susto.
- Por que as normas do hospital o impedem de vir me ver? - Eu perguntei, erguendo uma sobrancelha. Me perguntava que tipo de regra humana estúpida ela iria usar para justificar isso.
- Senhor, não permitimos a entrada de ninguém fora do horário de visita. Além disso, as visitas são permitidas somente para membros da família. - Ela disse enquanto forçava um sorriso. A falsa simpatia me irritou um pouco, mas nada que não fosse plausível já que era o trabalho dela. - Se não estou enganada, o homem lá fora disse que trabalha com você, então…
- …Então, ele não pode entrar, não é? - Eu suspirei. Foi uma péssima ideia vir em um hospital.
- Sim… - Ela pareceu ter receio em confirmar minha pergunta. - Bem, senhor, eu gostaria de te fazer algumas perguntas para preencher um formulário.
Emily pegou uma caneta e posicionou a prancheta para começar a anotar. Eu assenti. Não tive muita escolha.
Olhei ao redor. O tratamento neste hospital com certeza deve ser caro. Posso confirmar isso só pela quantidade de coisas que compõem a arrumação desta quarto e a modernidade dos aparelhos ligados. Apesar disso, ironicamente eles ainda usam pranchetas. Mas dinheiro não é a questão aqui.
Fitei os pinos prateados presos à minha perna e meu braço que antes estavam se recuperando dos danos da noite passada. Nenhum osso à mostra, mas com certeza eu demoraria para me recuperar de maneira tradicional.
- Senhor? - Emily tirou minha concentração.
- Hm? - Eu ergui o olhar na direção dela novamente.
- Perguntei qual seu nome, senhor.
“E lá vamos nós de novo”, eu pensei.
- Lúcifer Larck. - Eu disse e sorri em seguida.
A enfermeira franziu as sobrancelhas e hesitou na hora de escrever.
- Lúcifer…? - Ela não tirou os olhos de mim. Sua expressão cada vez mais torcida em confusão. - Este é seu nome real, mesmo?
Eu inclinei levemente a cabeça, esperando que ela mesma percebesse que estava ultrapassando qualquer limite sagrado que aquele hospital deveria impor sobre os profissionais e o paciente.
- P-perdão. - Ela balançou a cabeça como que para espantar pensamentos intrusivos e, rapidamente, começou a escrever. - Larck com C e K no final…?
No momento em que eu iria responder a porta do quarto se abriu.
- Bom dia, senhor. Vejo que acordou. - O dono da voz masculina de antes.
- Err, eu estava preenchendo o formulário de internação…
- Ah, claro.. - O homem avançou na direção da enfermeira inclinou-se para ler a prancheta em suas mãos.
O homem vestia um jaleco branco com um estetoscópio apoiado em seu pescoço junto de um crachá com o nome “Kevin Roberts”, abaixo escrito “psiquiatra”.
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