De repente reparei como tudo ficou silencioso. Aki havia ido embora?
Na verdade, meu primeiro palpite é que ele foi contatar o responsável pelo dinheiro que sustenta a Divisão Cervo. De certo, ele saberia melhor como lidar com a situação, mas, mesmo assim, eu provavelmente não consigo nem andar do jeito que estou…e ainda fiquei sozinho.
- Senhor…- Kevin deu uma longa olhada no formulário que só possuía meu nome. - …Larck. Eu sou o doutor Roberts, psiquiatra do hospital. Mais cedo, a doutora Brown me falou sobre o seu caso. Certamente, é um milagre que tenha se recuperado tão rápido.
Erro meu achar que Emily era uma enfermeira. Só percebi que em seu crachá estavam as palavras “médica residente” quando o nomeado Kevin comentou.
Sinceramente eu estava ouvindo atentamente tudo o que ele falava mas, de certa forma, não queria acreditar no rumo que aquela conversa estava indo. Seria absurdo demais. Azar demais.
- Acontece que, nos exames, identificamos rastro de uma quantidade absurda de mercúrio no seu corpo. Não podemos descartar a possibilidade de que isso se trata de uma tentativa de suicídio.
“Mercúrio?”, eu pensei enquanto estalava a língua. Será que dá para piorar?
Nos últimos anos foi descoberta uma substância que adormece os poderes da maioria dos não-humanos. Dependendo da quantidade usada, pode até mesmo fazer com que o corpo fique dormente e ocorra algumas alucinações. Esta substância é o mercúrio. Algo tão banal e tóxico para humanos comuns e serve perfeitamente para nos neutralizar.
Provavelmente a substância que Bolt injetou em mim antes de me jogar no mar foi, justamente, o mercúrio. Agora, como eu poderia imaginar que isso faria um psiquiatra achar que eu sou um suicida?
- Além disso, suas cicatrizes indicam que o senhor praticou autoflagelo numa escala realmente preocupante nos braços e nas pernas. Por isso, gostaríamos que o senhor coopere. O doutor Roberts é um ótimo profissional–
- Não. - Eu suspirei, já sem paciência. Emily abaixou o olhar quando foi interrompida. - Não tentei suicídio. Essa conversa é uma perda de tempo.
- S-senhor Larck… - Emily hesitou em avançar um passo quando me viu puxar o acesso que havia no braço direito em uma mordida, já que meu braço esquerdo estava imobilizado.
- Senhor Larck, por favor, se acalme e escute o que temos a dizer– Kevin avançou um passo.
- Fique onde está. - Me virei para apoiar as pernas no chão, mesmo a com pinos. Eu sabia que faria mais estrago e arruinaria todo o trabalho que haviam feito, mas pouco me importa. Não sentirei dor mesmo.
- Não, isso vai acabar agravando seus ferimentos de novo! - Emily se aproximou. Desta vez a hesitação de presenciar uma situação tão incomum não foi suficiente para fazê-la paralisar. As mãos com dedos finos seguraram meus ombros para que eu não me levantasse. - Não posso permitir que faça isso! Por favor, escute o que o doutor tem a dizer! Queremos ajudar!
Por experiência própria, é quase impossível um humano comum aceitar como verdade o tipo de efeito que o mercúrio teria no meu corpo, muito menos o motivo pelo qual ele corria pelas minhas veias. Como poderiam me ajudar se não vão acreditar em mim?
- Não vou ficar nem mais um minuto neste hospital. - Virei-me na direção de Emily. Fazia tempo que não deixava a minha raiva emergir na frente de uma mulher. - Me solte.
- Senhor, se rejeitar receber o tratamento necessário para sua saúde de forma voluntária temos o direito de mantê-lo internado de forma involuntária. - Kevin disse, receoso. Talvez a ideia de eu ser, realmente, algum tipo de gangster tenha passado pela sua mente quando viu minha reação.
- Eu estou pouco me fodendo para isso, senhor psiquiatra. - Senti cada músculo do meu rosto se contorcer para demonstrar o nojo que adquiri por aquele ser humano comum.
- Senhor Larck, o doutor está certo. Não é certo liberarmos o senhor nessa atual circunstância. O senhor pode ser um risco para si mesmo e– Emily se assustou quando ouviu a porta abrir bruscamente.
Um homem se fez presente. Longos cabelos num tom azul-marinho com fios turquesa presos em um rabo de cavalo baixo. A raiz nascendo branca e franja escondendo seu olho direito mas não o suficiente para cobrir uma cicatriz que descia até sua bochecha. O olho a mostra dourado como ouro, a pele no tom de folhas de papel acompanhando cílios albinos. O óculos escuro na ponta do nariz bem desenhado complementava o conjunto com o sorriso de canto em seus lábios róseos.
A veste claramente de alto valor. O sobretudo apoiado nos ombros, a roupa social com botões abertos expondo o pescoço e clavículas tatuados. Tudo carregava o nome de uma empresa que vendia produtos caros, apesar da única logomarca que eu conheço ser a da bolsa feminina Louis Vuitton que carregava em uma das mãos.
Talvez pela expressão, vestes ou as tatuagens, Kevin e Emily ficaram boquiabertos. Com toda certeza o psiquiatra concluiu que fazíamos parte de alguma máfia ou algo do tipo. Só completava cada vez mais a história de ficção que se formava na cabeça daqueles dois humanos.
- O que estão fazendo com o meu filhote? - A voz grossa passou como uma rajada de vento.
Na atual situação eu também estava boquiaberto, mas por ter sido chamado de “filhote”.
- Senhor, não pode entrar aqui... - Kevin engoliu o medo que parecia sentir nascendo dentro de si e vazando em formato de gotas frias de suor que escorriam pelas têmporas. - Ainda não estamos no horário de visita–
O psiquiatra havia esticado as mãos para conduzir o albino para fora do quarto quando seu pulso foi subitamente agarrado pela mão livre do mais alto. Os dedos longos e pálidos com unhas stiletto apertaram o braço do humano comum.
- Vou perguntar só mais uma vez:... - O sorriso em momento algum sumiu. Sua expressão serena e o olhar doce sequer tremeram. Isso o fazia ser ainda mais assustador.
- O que fizeram com o meu filhote?
- N-Nós só…- Kevin recuou, recolhendo a mão sem tirar os olhos do homem que exalava perigo.
Emily finalmente saiu de perto de mim e se pôs ao lado do psiquiatra. Ela estava igualmente intimidada mas soube disfarçar melhor do que da última vez que se assustou.
- O senhor é pai do senhor Larck? - Os olhos da residente subiam e desciam. Ela provavelmente estava procurando semelhanças entre eu e aquele homem.
- Sou, sim. - Ele até endireitou a postura para responder, mas ele não é.
- Certo,... Somos os médicos responsáveis pelo tratamento do seu filho, senhor. Gostaríamos de fazer algumas perguntas–
- Ainda não me responderam. - A íris dourada abaixou, fitando Emily como se fosse uma mera formiga.
- N-Nós tratamos dele, senhor. Seu filho chegou à emergência trazido pelo amigo. Ele tinha duas fraturas expostas, uma no braço esquerdo e a outra na perna direita. Três costelas fraturadas no lado direito e uma no lado esquerdo, mas… - Ela engoliu em seco. Aos poucos sua cabeça ia abaixando. - Encontramos resquício mercúrio no sangue do seu filho. Isso se soma às cicatrizes que identificamos e temos motivos para acreditar que ele seja um perigo para si mesmo. Gostaríamos de avaliá-lo na ala psiquiátrica.
- Hm… - O homem pensou por um instante.
- Alister! - Eu tentei pará-lo antes que fizesse algo imprudente, mas já era tarde demais.
A mão albina se esticou até o rosto da residente humana. As pontas dos dedos encostando na pele trêmula.
- Este é o tipo de humano que eu mais detesto. - Mais uma vez, sem mudança na expressão.
Eu estava pronto para ir contra toda a razão e levantar para impedir que Alister, um demônio bestial, assassinasse dois humanos que só haviam sido idiotas. Por sorte, não precisei.
- Epa, epa. - Uma segunda pessoa entrou no quarto, fechando a porta em seguida: Noah. - Que bagunça é essa?
Alister olhou para Noah com o canto do olho. A mesma expressão em seu rosto. A mão parada no mesmo lugar.
Emily caiu de joelhos. Os olhos sem vida se enchendo de lágrimas. Ela provavelmente sentiu a morte muito mais próxima do que gostaria. Já Kevin, vi de relance no outro canto do quarto, encolhido embaixo de uma mesa com um vaso de plantas.
- Senhor Aramis, o chefe já disse mil vezes que não deve ameaçar humanos por motivos fúteis. - Noah suspirou enquanto andava na direção de Emily. Seu olhar esbarrou na minha direção por um instante e ele virou-se para mim, boquiaberto. - Cacete! O que fizeram contigo?!
Eu deixei escapar uma risada. Encostei as costas no travesseiro da cama e suspirei aliviado. “Agora está tudo bem”, eu pensei.
- O Akira não falou com você? - Alister falou enquanto colocava a mão livre apoiada na cintura. - Bolt jogou ele em umas pedras ou algo assim.
- No mar. - Eu o corrigi, mas de maneira bem mais calma. - Ele me jogou no mar.
Noah estremeceu.
- Céus… - Ele abaixou na altura de Emily. Os olhos vazios não pareciam ver mais nada. - Você tratou de um homem que sofreu um acidente de moto. Inclusive, você ficou tão encantada com a beleza dele que se esqueceu do nome completo, então só sabe que ele se chama Lu.
Os olhos de Noah brilharam. O quarto foi infestado por pequenas partículas brilhantes que flutuavam sobre a cabeça de Emily e de Kevin, que ainda estava escondido.
- Além disso, não tinha mercúrio nos exames.- Noah sorriu, olhando Kevin de relance. - Isso vale para os dois.
O brilho nos olhos de Emily lentamente voltou. As lágrimas pararam de correr pouco a pouco. Kevin também desfazia sua posição encolhida abaixo da mesa cuidadosamente.
- Agora vocês estão muito cansados e vão ser péssimos profissionais, pois vão dormir durante o trabalho. - Noah se levantou e foi como um ponto final em suas falas.
Emily e Kevin caíram para trás, num sono tão profundo que chegaram a roncar como tratores de imediato.
- É um poder muito útil. - Alister disse, ainda com a mesma expressão de sempre.
- Agora, vou ajeitar… - Noah olhou em minha direção e estalou os ossos das mãos. - …Todo o resto.
A manhã já estava quase chegando ao fim quando Noah gastou todas as energias para acelerar a minha recuperação. Não haviam mais pinos ou placas nos meus ossos e eu conseguia, finalmente, andar como antes.
O bruxo apoiou as mãos nos joelhos, ofegante e com gotas de suor brotando na testa pálida.
- Sinceramente, você deveria tomar mais cuidado, chefe… - Noah limpou o suor do rosto e endireitou a postura. Estava, realmente, esgotado após usar aquela habilidade. - …Se já foi cansativo acelerar sua recuperação, imagina o estrago que estava antes? Porra…
Eu dei alguns passos de um lado para o outro. Alister ao meu redor disposto a ajudar se eu caísse.
- Obrigado, Noah. - Eu sorri. Realmente estava tudo no lugar novamente. - Me ajudou muito.
Noah se virou para o mais velho ali presente.
- Ele acabou de me ignorar?
- Sim.
- Agora só preciso encontrar minha jaqueta. - Eu saí pela porta e me deparei com um corredor. No fim dele era possível ver a sala da recepção.
Lá estava Aki. Suas roupas ainda eram as da noite anterior, cobertas por um rastro do sangue dos meus ferimentos. Estava de pé, provavelmente inquieto como sempre.
Ele estava com algo em mãos. O tecido púrpura que é impossível eu não reconhecer.
- Ah, ele já… - Eu ia me virar na direção dos outros dois para confirmarem a teoria que estava prestes a elaborar.
- Sim. Akira nos chamou e disse que não queria vir falar com os médicos porque sabia que se irritaria com o que dissessem. - Alister apoiou a mão no meu ombro e voltou a andar até Aki. Noah logo atrás. - Apesar disso, ele não sossegou até recuperar sua jaqueta, por isso cheguei no seu quarto antes de Noah. Ele o ajudou.
Mesmo depois de tantos anos, é difícil acreditar.
Quando chegamos na recepção pude ver alguns seguranças e enfermeiros deitados pelos cantos. Dormindo temporariamente por conta de algum feitiço de Noah, aposto.
- Céu Azul! - A voz feminina adoçou o ar.
Me surpreendi tanto com Aki que não reparei na jovem que o acompanhava.
A mulher com pele pálida acompanhada de uma temperatura fria. Os longos cabelos esverdeados com pontas azuis na cor do mar sob a luz da lua. Esta que carregava tons frios até mesmo nas vestes típicas do Japão que destoavam das íris alaranjadas e brilhantes.
Ela veio em minha direção, passando na frente de Aki. O kimono estampado com flocos de neve certamente limitavam seus movimentos já que, em menos de três passos rápidos eu a vi prestes a cair sobre o piso da recepção.
- Frost! - O nome foi chamado por Aki e Noah que só puderam ver a cena e esticar uma das mãos, mas não a tempo de ajudá-la.
Por sorte ela já estava suficientemente próxima de mim e já estava familiarizado com este tipo de cenário. Eu a segurei por puro instinto.
Ela endireitou a postura mas não se desvencilhou de mim, agarrando com os dedos gélidos a roupa de hospital que eu não reparei que ainda estava usando.
- O que aconteceu? Aki me avisou que você tinha vindo parar no hospital! Você está bem? Está doendo em algum lugar? - Ela se afastou poucos centímetros. Os olhos fitaram várias partes aleatórias do meu corpo. Sua preocupação estava visível, como sempre.
- Estou bem, Frost. Bolt tentou trapacear em uma luta desta vez.
- O que? Trapaceou? - Ela falou, surpresa, mas talvez não tanto. - Isso é um absurdo!
Aki se aproximou após tudo. O calor de sua proximidade contrastava com a temperatura de Frost.
- Sua jaqueta. - Ele a estendeu em minha direção.
- Obrigado. - Eu a peguei.
Alister avançou um passo e falou com Frost, que respondeu. Em seguida Noah se pronunciou e Aki comentou alguma coisa de forma emburrada.
Eu não ouvi bem aquela conversa, mas senti um peso estranho se esvaindo.
Mesmo depois de tanto tempo, é difícil acreditar que as pessoas que conheci são reais. Não pensei que conseguiria isso.
Eu me lembrei da frase: Deve ter se sentido sozinho.
“Sozinho?”, eu pensei, rindo pela ironia.
Eu não estou sozinho.
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