Capítulo I
Dama de ferro
As gotas da chuva percorriam o cabelo branco de uma criança à sua frente. Olhou para as mãos dele, que estavam roxas e enrugadas. O peito dela ainda ardia, quando o som de um pulo sobre uma poça de água fez a garota de cabelos escuros olhar rapidamente para trás.
Em meio a lama, que escorria entre as pedras da estreita estrada, avistou uma criatura carmesim, peluda e com o final da cauda em formato de meia lua. Encarou os olhos verdes e azuis do bicho, e ele pareceu encara de volta, antes de pular em uma lata de lixo e tomar impulso para os telhados baixos das casas. Deixou um suspiro escapar e se voltou para a criança.
— Você está sozinho? — Ela perguntou, mas a figura cabisbaixa não respondeu.
A jovem se curvou um pouco para ver melhor o rosto da criança, recuou um passo ao ver listras negras de cada lado de suas bochechas. Levou a mão até o ombro, olhou novamente para trás, visivelmente preocupada, levou alguns segundos até mover a mão e retirar o manto negro que usava.
Ela voltou a atenção para a criança novamente. Com cautela, para não tocá-la, colocou seu manto sobre ela. Quando a criança moveu os braços para agarrar o manto, a moça se afastou.
— Sabe como voltar pra casa? A vila dos deumianos tigres é aqui perto, vá para casa, aqui não é lugar para você.
— Não sei como voltar — sussurrou.
Deu um passo na direção do garotinho, mas recuou o braço antes de estendê-lo para ele, enquanto se atentava a cada movimento diferente ao seu redor.
— Me desculpe, eu o ajudaria, mas agora eu não posso — disse, deixando aquela figura pequena para trás.
Ela correu sem saber para onde deveria ir. A sua frente, as rochas, algumas pontiagudas, pairavam sobre sua cabeça, a chuva deixou de ser um problema, mas não havia onde se esconder, todas as casas rebaixadas, presas entre as rochas da imensa caverna, estavam fora de sua cogitação. Continuou correndo pela estrada dividida em duas partes por um esgoto.
Viu um corredor estreito, as casas entre ele estavam agitadas, havia latas jogadas na frente e restos de lixo. Chegou a considerar entrar ali, respirou endurecendo o rosto.
“Merda de lugar imundo,” pensou e continuou seguindo pelo caminho do esgoto.
Ouviu o som de passos rápidos se aproximarem. O som agudo de saltos mais altos em seu ouvido. Correu o mais rápido que conseguiu.
Pequenos pedregulhos chegaram perto de seus pés, parou subitamente, escorregando e levando uma das mãos ao chão para se apoiar.
Saltando das rochas da caverna, uma mulher pousou na sua frente, fazendo o som de seu salto estalar.
— Me desculpe pela demora — disse de forma suave — tive que parar no meio do caminho.
A jovem se levantou, erguendo seu corpo o quanto podia, dobrando levemente os braços e cerrando os punhos.
— Sério? — perguntou, contorcendo a boca. — Não percebi. Não presto atenção em coisas sem importância.
A mulher deixou a respiração escapar pelo nariz, deu alguns passos em direção ao esgoto. Olhou de canto para a jovem na sua frente, levou as mãos até a orelha semelhante a de um gato no topo de sua cabeça.
— Como aquele garoto? — perguntou, alisando a orelha.
A jovem franziu as sobrancelhas ao lembrar do menino na chuva, deu um passo à frente e caiu com tudo contra o chão. Quando olhou para seus tornozelos, viu imagens negras saírem do chão, agarradas as suas pernas. Sentiu algo fino do lado de sua cabeça, que a empurrava para o chão. Resistiu, apoiando seus braços e exercendo força para cima.
— Tire seu pé imundo de mim, deumiana!
Os lábios vermelhos da mulher se contorceu em um sorriso de canto. Ergueu o pé sobre a cabeça da garota e se preparou para chutá-la com o mesmo. A menina no chão agarrou seu pé, mas a deumiana, sem se desequilibrar, retirou o outro pé no chão e acertou o topo da cabeça da garota, o salto da bota chegou a entrar superficialmente em sua testa.
— Meu nome é Gane, não que se importe, você é esse tipo de pessoa.
☆☆☆
Seus pés e pulsos doíam, algo os apertavam fortemente, esse era o único pensamento que lhe vinha em mente. Abriu os olhos lentamente e encarou rochas pontudas abaixo de si, estava pendurada de ponta cabeça, assustada começou a se debater.
— Se eu fosse você… Bem, eu já teria me matado. Mas, felizmente, eu não sou você. Então, se você não quiser acabar empalada nessas rochas, sugiro que pare de se debater.
A garota pendurada olhou ao redor e encontrou a dona da voz, a deumiana que a nocauteou. Percebeu também que estava em um lugar alto, bem mais adentro da grande caverna, pois entre várias rochas e frestas na sua frente, enxergava partes da cidade.
Haviam corredores do seus dois lados, e não existia nada entre ela e os dois corredores, além de um abismo de rochas pontiagudas.
— Tire-me daqui! — Gritou irada para a deumiana.
— Não, você foi muito má — ela falava manso, como se estivesse ensinando uma criança. No entanto, havia desdém na sua forma de falar.
Chegando naquele lugar, dois rapazes caminhavam tranquilos. Eles tinham os cabelos e os olhos de um vermelho intenso e escuro, vestiam roupas idênticas, destacando lenços que traziam consigo. Um usava ao redor da cintura e o outro no braço direito. Ao redor de seus pescoços, uma peça dourada era usada como um grande colar, talhada no centro com uma esfera, e uma linha curva de um lado.
O de cabelo espetado, que levava o lenço na cintura, apontou em uma direção.
—Ei! Ridem, olha isso…
O outro voltou para a direção que o irmão apontava, havia uma garota amarrada, gritando algumas coisas. Se aproximou das grandes janelas e observou a situação.
A garota, mesmo com o alerta de Gane, continuou a se debater, enquanto exigia que ela a tirasse dali, só parou quando a corda arrebentou.
— Devemos fazer alguma coisa?
— Sim — respondeu Ridem, que subiu na janela, tomou impulso e saltou. Conseguiu pegar a garota no ar, e caiu junto a ela no corredor do outro lado.
A garota olhou para o rapaz e depois para o outro corredor, de onde este havia partido para salvá-la, a distância entre os dois era consideravelmente grande.
— Você está bem? — Perguntou o rapaz, chamando a atenção dela.
— Estou.
Ajudou a garota a se livrar das amarras, não deixou de observar sua aparência familiar, tinha olhos e longos cabelos negros. Ela se vestia de forma muito conservadora e simples, shorts que alcançava o joelho e uma blusa curta com quadrados brancos nas mangas e ombros.
— Essa foi por pouco. — Era o outro gêmeo de cocas na janela, que também saltou para chegar ali.
— O que fazem aqui? — A deumiana se aproximou dos dois.
— Eu é que pergunto, Gane, o que está acontecendo aqui? — Ridem perguntou, tomando a frente.
— Ela tentou invadir a propriedade de Malri. — Se explicou de forma rápida.
— Isso não é motivo suficiente para tentar matar ela.
— Mas eu não tentei, avisei que ficasse quieta — disse, cruzando os braços.
— Você não sabe mesmo a burrada que estava fazendo?
— Que exagero, Ridem! — A deumiana descruzou os braços, os balançando na frente do corpo. — Ela é só uma pirralha do vento.
— E também uma das filhas de Malri.
— O quê? — Gane e o outro gêmeo perguntaram em unisom.
— Mirla ou Moni? — Ridem perguntou para a garota, que parecia ter quatorze ou quinze anos.
— Mirla.
— O que faz aqui, Mirla?
— Onde está Blaste? — perguntou, se afastando dos três.
— Blaste? — Gane estalou os dedos, piscando o olho. _ Ah, é mesmo, ele estava aqui.
— Estava?
— Sim, ele acabou de deixar Má — disse Ridem.
— Deixar? _ Perguntou, franzindo ainda mais as sobrancelhas. — Ele não foi sequestrado?
— Sequestrado? — Era o rapaz que se pronunciou poucas vezes, diferente do irmão, esse tinha um olhar esnobe. — Blaste veio por livre e espontânea vontade. Deixa eu adivinhar, — um meio sorriso surgiu nos seus lábios — o famoso rei tirano, como sempre, faz tudo o que quer, sem comunicar ninguém, e não tem a mínima consideração pelos outros. — O rapaz se divertia com os olhares irados da garota de cabelos negros em sua direção.
— Como ousa? Você não sabe de nada, escória. — Respondeu alto, fechando os punhos.
— Me chamou de escória?! Hahaha, isso soa tão ridículo. — O rapaz levou a mão até o queixo, pensativo. — Acho que é você quem não sabe. — Lançou um olhar sério na direção da menina. Parou quando viu um olhar de repreensão do irmão, virando o rosto.
— Pelo menos sou a que manda — provocou Mirla, deformando o rosto em um sorriso medonho.
O rapaz a encarou da mesma forma, porém sem o sorriso.
— Parem, crianças! — Ridem se intrometeu na frente dos dois, que estavam prontos para avançar.
Os olhares assustadores dessa vez foram direcionados para Ridem, não havia nada mais ofensivo, no Segundo mundo, que chamar alguém de criança ou de infantil.
— Acho melhor você voltar para casa — aconselhou Ridem, ignorando os olhares — Eu posso acompanhá-la, se assim desejar.
Mirla concordou, não tinha o que temer, pois ao que tudo indicava, aqueles três não podiam fazer mal para ela. E não havia mais o que fazer ali, pois conhecendo Blaste, o que a contaram era condizente com as ações do rei.
Seu rosto estava vermelho, mas não era só pela vergonha de ter sido feita de idiota. Suas veias saltavam de raiva, alguém sentiria toda fúria, um tal príncipe incompetente.
☆☆☆
《 Reino Kozt Capital 》
Triângulos de variadas cores giravam entrelaçados entre si, às vezes se interceptando e outras mostrando formas que lembravam desenhos de estrelas. Uma criança de cabelos pretos e presilhas em forma de meia-lua dos dois lados da cabeça, não deixava os braços quietos. Até que outra criança apareceu no portal, ela tinha longos cabelos cacheados e também usava uma presilha, apenas de um lado. O que chamava atenção, no entanto, era uma cicatriz abaixo do seu olho direito.
— Ei! Brisa! — A menina inquieta pulou, lhe estendendo a mão.
— Tenar, como é bom está aqui.
O portal se fechou. Brisa olhou ao redor, só viu as costas de sua aidm, os longos cabelos negros dela balançando com os passos pesados.
“ Sem explicações,” pensou.
— Você está bem? — Tenar só então notou os olhos inchados da menina que acabou de chegar. — É porque não veio ontem para o Segundo Mundo?
— Mirla nem sequer me explicou porque não abriu o portal ontem. — Segurou uma mecha dos cabelos. —Tive que ficar á noite na Terra.
— Acho que não ficou sabendo, Mirla desapareceu — explicou Tenar, que continuou: — E o rei Blaste fez um alvoroço, dizendo que Malri tinha sequestrado ela.
— E então?
— Não foi ele. Mirla reapareceu e disse que tinha ido procurar ele, porque ouviu o príncipe Dragon dizendo que Malri havia sequestrado Blaste. — A criança contava enquanto ria, chegando até a levar uma mão até a barriga. — Foi muito bom!
— Tenar, não foi engraçado. Foi irresponsável da parte de Mirla ir até Má, lá só tem coisas que não prestam. — Falava como se fosse uma pequena adulta.
Tenar não pareceu ter escutado uma palavra, enquanto focava em alguma coisa atrás de Brisa.
— Senhora Venel! — Tenar gritou, agitando a mão na frente de Brisa.
Antes de Brisa se virar, foi erguida pelas mãos da mulher que chegou, a balançou de um lado para outro antes de a pôr no colo.
— Feliz aniversário atrasado, querida. — A abraçou forte. — Sete anos, não é? Preparamos um bolo ontem, uma pena não ter aparecido.
— Vamos comer! — Tenar gritou, erguendo as mãos para o alto. — Vamos, senhora Venel.
— Bom, não acho que estragou, só por um dia.
— Lá na Terra dizemos que o que não nos mata só nos torna mais fortes. — Tenar defendeu o bolo.
— Ou nos fazem morrer mais cedo — completou Brisa, com um sorriso genuíno no rosto.
— Então vamos! — Decidiu, vendo em seguida as duas crianças comemorarem.
A senhora Venel colocou Brisa no chão, segurou a mão de cada uma das meninas, que acompanharam inquietas pelo corredor de rochas cinzentas. Desceram um lance de escadas e saíram em outro corredor circular, onde havia várias portas enormes de madeira no lado esquerdo, e janelas enormes no lado direito; alguns adolescentes estavam sentados nas beiradas.
— Está cheio hoje — Brisa reparou.
— Os LDTs estão voltando de férias, devem ter muitos novos também. — A mulher explicou. — Logo vocês duas irão ter aulas aqui na torre também, irei garantir que possam.
— Mas somos da Terra.
— Não é um problema, Brisa. Se vocês têm uma aidm, também são renis, não deixem nunca que digam o contrário. E como um reni, é seu dever estudar em uma torre, para um dia poder servir nosso reino ou nosso mundo. Se você se esforçar muito, pode ser alguém verdadeiramente grande.
— Por isso que Mirla me esquece? _ Brisa perguntou cabisbaixa.
— Mirla tem grandes ambições, ouvi que quer ser comandante. — A senhora Venel explicou. — Não há dúvidas que o príncipe Dragon é mais provável a ser escolhido, mas Mirla está disposta a tudo, não é atoa que a chamam de Dama de Ferro. Acho que ela pode ter uma chance. — Falou com sinceridade.
A senhora viu Brisa levantar o rosto, porém, diferente do que imaginava, ouvir aquilo não pareceu a deixar feliz. Sorriu para a menina, espantando pensamentos incongruentes.
☆☆☆
《 Reino Kozt - Má 》
O gêmeo de cabelo espetado bateu em uma pequena porta velha, cujas paredes pequenas da casa estavam sujas e desgastadas. A porta foi aberta pela deumiana gato, Gane. O rapaz pode ver um garoto sentado em um banquinho, perto de uma mesa de madeira.
— Ele ainda está aqui?
— Não sabia que era cego.
— Nossa, Gane. — O rapaz caminhou até o garoto de cabelos brancos, que construía um castelo de cartas — Eae! projeto de psicopata?
Ele se aproximou do garoto, soprando as cartas. O garoto não esboçou reação, ficou imóvel segurando o az de copas, que estava prestes a colocar no castelo. Depois de alguns segundos voltou a construir o castelo do zero.
— Qual o problema dele?
— O único problema aqui é você, Rid! — Gane queria puxá-lo para fora, mas ela sabia seu lugar. — Diga logo o que quer.
— Por que está tão brava?
— Diga logo!
— Certo... — Ergueu as mãos em rendição. — Malri pediu para você convidar Mirla e Moni, para visitá-lo.
— E porque ele mesmo não vai?!
— Por que ele tem pessoas que podem fazer isso por ele, e eu irei com você!
— Não sei como isso poderia ficar pior.
Gane viu um sorriso acompanhar aquele olhar malicioso no rosto do rapaz.
— Vai ficar pior sim, mas não para nós.
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Aidm- São os guardiões das portas do universo, são seis portas: Arominy (porta do inferno), Lumi (porta da vida), Yng (porta da morte), Omagaro (porta dos deuses), Kemaru (porta do Paraíso) e a porta que liga a terra ao segundo mundo.
Reni- Pessoas nascidas no segundo mundo.
Deumiano- Renis que tem poderes de um deumi (animal), que nasceram em suas vilas referentes e tem a capacidade de modificar seu corpo.
“ Em um mundo onde somente as histórias dos mais fortes serão lembradas nos livros; Onde a força vale mais que o dinheiro; Aceitar um nome odiado para conseguir poder não machuca os orgulhosos.”
No próximo capítulo: Só os fortes sobrevivem
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