Desde o dia em que fui arrancado do ventre de minha mãe, há três anos, venho sendo assombrado pela lembrança daquela tentativa fracassada de acabar com minha existência. Frequentemente me pego pensando sobre qual caminho seguir, e o que o futuro reserva para alguém como eu.
Nunca encontrei coragem o suficiente para repetir aquele ato. Não por consideração àqueles que me cercam nesta vida — no fim, isso não tem importância. Mas a morte... ela tem estado comigo, presente em cada suspiro, uma sombra constante. No entanto, o ímpeto de dar o passo final, o ato definitivo de encerrar tudo, sempre me escapa. Talvez, no fundo, eu tema as consequências. Aquela decisão sem retorno, sabe? Parece imprudente, precipitada. E assim, adio. Procrastino. Encontro desculpas para manter o fardo de continuar, quando poderia simplesmente... descansar.
"Seja sábio."
Foi o que aquela entidade me disse. E, de certo modo, aprendi muito ao longo dessas incontáveis vidas. Sobre a natureza e seus intrincados segredos, sim. Mas sobre a moral e a ética das sociedades sencientes? Muito pouco.
Carrego um vasto conhecimento dos mecanismos que regem o universo, mas isso não é suficiente para ser sábio, certo? A resposta, imagino, você já conhece, entidade.
Me intriga como essas criaturas conseguem sentir algo tão profundo quanto empatia — um conceito que ainda me escapa. Como é possível desenvolver um vínculo emocional com alguém que não seja eu? A ética dessas criaturas parece... alienígena. Eles aceitam situações onde não levam vantagem, e consideram isso um valor. Ter camaradas é importante para eles. Mas, em vidas passadas, eu os teria devorado se a situação se complicasse. Sim, existem relações simbióticas, mas isso não vem antes da sobrevivência individual, certo?
A existência de um pós-vida, a presença de uma entidade poderosa o suficiente para reviver almas, e a mecânica da reencarnação são questões que ainda me escapam. Quem fui no início de tudo? E quanto ao que me tornei? — Corrompido, assim como meus semelhantes. — Mas quem são eles, afinal? Existem outros como eu? Quais são suas naturezas, suas forças? E em que tipo de universo habitamos? Talvez essas respostas sejam inalcançáveis por enquanto, como fragmentos de um mistério maior que ainda não me permitiram desvendar. Mesmo assim, é essa busca que, de forma tênue, me mantém ligado a esta vida. Vou continuar acreditando na mentira de que, em algum momento, tudo fará sentido. Por ora, aceito sua orientação, entidade incompreensível e potente.
Meus pensamentos profundos foram interrompidos pelo som vibrante das risadas das crianças Néfos, uma espécie senciente nativa deste mundo. Elas estavam engajadas em um pega-pega agitado, embora seus corpos pequenos mal alcançassem uma velocidade de 2 km/h. Para elas, esse ritmo lento era o auge da emoção, como se estivessem explorando os limites de suas habilidades.
Os pequenos correm alegremente pela grama alpina, suas vozes vibrando no ar puro, indiferentes ao peso das trevas que permeiam o mundo dos adultos. Para eles, a vida é apenas uma aventura descomplicada, suas mentes inocentes ainda longe de entender a vastidão do caos e da malícia que espreitam nas sombras. Há algo quase mágico no olhar infantil sobre a realidade; eles são o reflexo de uma pureza que nós, os mais velhos, perdemos ao longo do caminho.
Uma das crianças, com sua cauda azulada balançando de maneira errática, deu um salto em direção à outra que corria à sua frente. Porém, a gravidade — essa força invisível e inevitável — a lembrou de sua presença. Ela tropeçou, caindo desajeitadamente ao lado de uma cerca de madeira, as risadas de seus companheiros soando como uma melodia de inocência.
Essas cercas, e grande parte das construções da vila, foram erguidas com a madeira das árvores antigas que dominam a região. As árvores são testemunhas silenciosas da passagem do tempo, seus troncos robustos fornecendo o material para as habitações dos Néfos, que preferem a simplicidade, mas não abrem mão da beleza. As casas, de arquitetura rústica, são esculpidas em madeira escura, formando arcos circulares tribais adornados com peles e tecidos trançados, frutos da caça e do cultivo local.
Uma única estrada de pedra, irregular e desgastada pelos séculos, atravessa a vila. Seu curso se alonga até as margens de um rio cristalino que serpenteia pelas montanhas. Ali, os Néfos pescam e recolhem água, em uma tradição que se perpetua geração após geração, como um ciclo de vida que ecoa a própria ordem natural.
No centro da vila, a vida pulsa na praça aberta, que serve como o coração da comunidade. O mercado é um espetáculo vibrante, com barracas coloridas enfeitando o espaço e oferecendo de tudo, desde frutas exóticas que parecem ter absorvido a luz do sol, até ferramentas rústicas habilmente talhadas à mão. As conversas entre os moradores misturam-se ao som da brisa que sopra suavemente entre as árvores.
Penduradas entre os galhos altos, lanternas feitas com lâmpadas elétricas piscam de forma suave ao cair da noite. Seus brilhos competem com as estrelas no céu, criando um espetáculo de luz que dança entre as folhas, como se a própria natureza se unisse à celebração. A noite aqui nunca é completamente escura; há sempre uma faísca de vida, somada as auroras gaseificadas, um sinal de que, apesar de tudo, a falta de estrelas não é suficiente para macular a noite.
Entre as construções simples e rústicas da vila, havia uma escola comunitária, um lugar onde a anciã Nina, a mais velha e sábia dos Néfos, compartilha a antiga sabedoria da espécie. As paredes de madeira da escola são adornadas com pinturas detalhadas e gravuras primitivas que narravam as lendas e a história dos Néfos — um legado que remontava séculos. As crianças, quando não estavam correndo livremente pela grama ou explorando a floresta, se reunem ali, sentadas em semicírculo ao redor da anciã, ouvindo suas histórias que sempre buscavam ensinar algo moralista. Esse é o problema: sempre tentando enaltecer a beleza de um mundo que é, por natureza, injusto. Algo que eu odeio profundamente, essa visão utópica que não se alinha com a realidade crua que eu conheço.
Ao lado da escola, um pequeno templo ergue-se em respeito à espiritualidade dos Néfos. Com paredes feitas de pedras suavemente polidas, o templo, um refúgio de paz, lugar onde os habitantes buscam conselhos ou se entregam à meditação. Apesar da simplicidade de sua aparência, ali habita uma fé que eu considero vazia. Os Néfos acreditam na harmonia com a natureza, o tempo e o espaço, reverenciando falsos deuses. Um idealismo sem sentido.
Esse ambiente bucólico contrasta drasticamente com a visão ao longe: uma colossal torre espiralada de cor negra, rasgando o céu, tão imponente que as nuvens pareciam se desfazer em seu caminho. Diferente de tudo naquela vila, a torre possuía uma tecnologia avançada e alienígena aos padrões dessa vila e talvez do mundo, embutida em sua estrutura metálica fria e escura. Seu brilho prateado negro emana uma sensação de poder distante, como se pertencesse a um mundo além do alcance dos habitantes. Eu fico fascinado pela sua presença. Se fosse outra vida, sem essas limitações físicas, eu exploraria seus segredos, desvendaria cada mistério por conta própria. Mas não posso. Não agora, pelo menos. Estou preso a este corpo limitado e a essas criaturas pensantes, que mal compreendem o que está além de suas necessidades primitivas.
Apesar de meu desgosto, havia certo conforto na simplicidade de minha rotina. Não precisar me preocupar com comida, simplesmente esperar que minha 'mãe' me trouxesse à noite. Mas, ultimamente, ela tem me deixado aqui, nesta vila, durante o dia inteiro, saindo para explorar o mundo junto com meu pai. Eles partem em suas aventuras, descobrindo segredos que eu sequer posso imaginar, enquanto fico aqui, cercado por crianças que me evitam. Sentado na grama, encostado em uma árvore, tudo o que me resta é observar aquela torre negra de longe. Monotonamente.
“Kiel! Vamos! A anciã Nina vai contar uma história! Venha!” A voz aguda de Nene cortou meus pensamentos. Ela é uma Néfo de olhos vermelhos brilhantes, pelagem azul macia e uma cauda longa que balança inquietamente enquanto fala comigo. Sua empolgação era quase palpável enquanto apontava para o maior edifício da vila, onde a história seria contada.
A Néfos têm marcas distintas pelo corpo, e as de Nene eram particularmente interessantes — padrões de linhas escuras que pareciam cicatrizes circulares, como se a própria pele fosse marcada por um ritual antigo. Ela era diferente. A única criança que não tinha medo de mim. Ao contrário dos outros, que me evitavam como se eu fosse uma ameaça, Nene sempre tentava me incluir nas brincadeiras. É uma pena que eu não tenha interesse nelas. Mesmo assim, às vezes, ela vencia por pura persistência.
"Vamos! O que está esperando? Você precisa aprender, não é?" Nene insistiu, caminhando até mim com uma determinação implacável.
Eu, no entanto, resolvi me manter firme dessa vez. "Queru não," respondi, cruzando os braços e fechando os olhos em uma demonstração de desaprovação infantil, pronunciando com dificuldade uma das poucas palavras que eu sabia.
Nene não aceitou a recusa. "Não? Não é você quem decide, Kiel Suiris!" ela trovejou, seus pequenos braços se estendendo em minha direção, prontos para me arrastar à força se fosse necessário.
Que raiva. Odeio ser impotente!
Com rapidez, peguei a corda de vinhas que eu havia amarrado na árvore, a mesma em que eu estava encostado. Com um movimento ágil, a passei por cima de minha cabeça, como se fosse um cinto de segurança improvisado. “Isso não vai te salvar!” gritou Nene, enquanto ela tentava puxar minhas pernas, sem sucesso. Seu rosto ficou visivelmente emburrado com cada tentativa fracassada.
"Agora você está em apuros!" falei, rindo maliciosamente. Minha vitória, no entanto, foi curta. Nene rapidamente mudou de estratégia, puxando a corda de vinhas para cima com força. Eu me esforcei ao máximo para segurar firme, mas estava claro que a batalha estava se intensificando.
"Você vem comigo, quer você queira ou não!" gritou ela, agora visivelmente frustrada. Usando seus quatro membros, ela se prendeu à árvore, puxando a corda com toda a sua força. Eu fiz o que pude para resistir, jogando todo o meu peso para baixo, mas sabia que não conseguiria segurar por muito mais tempo.
"Queru não! Queru não!" gritei, meu lábio inferior tremendo enquanto lágrimas falsas escorriam pelo meu rosto. Nene, no entanto, estava decidida a vencer.
Meus braços começaram a fraquejar. A sensação de cansaço tomou conta, e finalmente cedi. Nene conseguiu soltar a corda, me deixando completamente exposto. Tropecei e caí desajeitadamente para trás, esparramado no chão.
Com as costas doloridas e um machucado no cotovelo, não tive escolha. Estava derrotado. Sem alternativas, me rendi.
Quase perco a tarde toda ouvindo histórias infantis. O céu já está escuro.
Se alguém se pergunta por que sempre volto para o mesmo lugar, embaixo desta árvore, é porque aqui é onde me sinto mais confortável. "As histórias de uma velha decrépita não me agradam!" murmuro alto o suficiente para mim mesmo.
"Quem você chamou de velha decrépita?" ressoou uma voz familiar e irritada. "E onde você aprendeu a falar essas bobagens? Deve ter sido com seu pai., certeza"
O quê? Olhei para o lado e vi minha 'mãe' de braços cruzados, e, ao lado dela, a anciã Nina, apoiada em seu cajado — a quem chamei de velha decrépita.
IMPOSSÍVEL! Como ela me ouviu? Falei tão baixo!
Ela se ajoelhou e se sentou ao meu lado...
"Filho, você não pode falar assim das pessoas. Precisa respeitar os mais velhos também, eles tem mais sabedoria do que nós." Ela me puxou para um abraço, ainda que levemente irritada.
Quem você acha que é mais velho aqui? Em senhorita Ari? Eu sou seu bebê de Milhares de anos!
"Hum, jovenzinho, vou lembrar disso," resmungou a idosa, cujos olhos vermelhos parecem desgastados pelo tempo. Aqueles que outrora eram vívidos, agora são apagados, quase cinzentos, mostrando como a vida se esvai lentamente.
Assim que Nina terminou de falar, minha 'mãe' me encarou com calma, seus olhos azul-celeste brilhando suavemente. Ela abaixou a cabeça e disse: "Kiel, nós não devemos criar inimigos. Respeitar os outros é importante, mesmo que não gostemos deles. Não transforme ninguém em inimigo... Me perdoe pela desobediência do meu filho."
"Ari, para onde você vai? Não vai jantar?" perguntou a anciã, sua voz carregada de curiosidade e uma leve preocupação quando minha mãe me carrega em direção oposta ao centro da vila.
"Vou ser mãe," responde ela com leveza, me segurando nos braços, sem expressar nenhuma emoção evidente.
A anciã abaixa a cabeça em um gesto respeitoso, fazendo uma leve reverência antes de partir para o edifício onde todos estavam. Ela se afasta lentamente, com passos hesitantes, apoiando seu cajado na grama com dificuldade, cada movimento refletindo o peso da idade que carrega.
…
Ao atravessarmos a porta de casa, o silêncio entre nós era quase palpável. Ela me guiou até o quarto e me deitou na cama, de frente para a varanda. Lá fora, o céu era um mar escuro, sem estrelas, mas tingido por redemoinhos de gases brilhantes e auroras que dançavam em tons gelados. As luzes cintilavam suavemente, mas o vazio que preenchiam parecia sufocante.
Ela se inclinou sobre a bolsa que trouxe, mexendo em seu conteúdo, enquanto eu permanecia imóvel, observando o espetáculo distante no céu. O silêncio pesava.
"Mãe?" murmurei, sem me mexer, com os olhos ainda fixos nas cores lá fora.
"Espera um pouco," ela disse, sem sequer levantar a cabeça. Suas mãos se moviam com precisão, quase mecânicas, até que finalmente pararam. Com cuidado, ela retirou um livro. Grande, de capa escura, ele parecia absorver a luz das auroras que atravessavam a janela. O símbolo na capa era estranho, quase hipnótico. Algo nele me incomodava, como uma lembrança que eu não conseguia alcançar.
Ela não deu explicações. Apenas colocou o livro sobre a mesa ao lado da cama, o som da capa contra a madeira ecoando pelo quarto. Um frio repentino tomou conta de mim, mas não era físico. Parecia que o ar ao meu redor estava impregnado por algo que eu não entendia, algo que lentamente se infiltrava na minha mente.
De repente, uma onda de dor percorreu meu corpo, mas não vinha de fora – era de dentro, como se algo estivesse rompendo as barreiras da minha própria consciência. Uma enxurrada de imagens e sensações inundou minha mente, rápidas demais para serem compreendidas, mas poderosas o suficiente para me deixar sem fôlego.
Meu corpo tremia. Minha visão se embaralhou. O mundo ao meu redor parecia se fragmentar, e eu me sentia suspenso entre o que era real e o que não deveria existir. Estava acontecendo, minhas memórias estavam borbulhando e querendo invadir a consciência do meu novo corpo.
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