Despertei, ainda entorpecido após mais uma morte. Novamente, naquele lugar sombrio para onde sempre retorno ao perecer. As silhuetas das luzes vagueavam nos horizontes de um vazio perene e escuro, como estrelas que me mostravam 'lembranças' fugindo de mim.
Sempre esse maldito lugar.
Penso, mergulho, adentro nas profundezas turvas de minhas memórias que se desfazem diante de mim por séculos, perdendo identidade a cada morte. É como se fosse uma cruel peça do destino, uma sensação de impotência que me consome, uma criatura à mercê das marés do tempo, sem poder de decisão sobre a própria vida — ou vidas. Em meio à névoa de lembranças fragmentadas, me encontro em uma espiral de frustração absoluta.
Sinto que nunca estive vivo de verdade durante todo esse tempo, reflito sobre toda vez que volto até aqui, vejo que essas vidas não possuem sentido... são apenas um abatedouro que corrói minha sanidade a cada abate.
A sensação de leveza cobre todo o meu corpo inexistente neste local... minhas mãos, pés, asas, qualquer membro que pude um dia ter foi substituído por líquido preto ou invisível.
Nada tem lógica nesse lugar.
Me sentei naquele abismo angustiante e gritei: “Eu quero sair, eu não aguento mais! Acabe com isso, por favor, me deixe morrer de vez.” porém, só saiu zumbidos incompreensíveis.
Tentei extravasar, bater e sacudir o chão sombrio.
“Eu não quero mais Existir! me lance à inexistência universo abominável! Chega de agonia!”
Em vão;
Nenhuma lei, absolutamente nenhuma rege o ambiente pós vida, este corredor vazio e infinito poderia ser o sonho de alguém, um lugar lúdico que representa qualquer que seja o estado do seu subconsciente... porém, para mim é um ciclo infernal, o qual se tornou meu pesadelo a cada despertar.
Olhei para cima, atrás de mim, quando um barulho inaudível, uma sensação de queimação encrustou nas trevas que são minha forma.
Um tímido gotejar começou chamando minha atenção com um tilintar veloz. Um fluido de luz dourada que desafiava a noção mundana de gravidade, subindo ao invés de cair, saia do chão de um absoluto azul escuro, confundível com preto, parando no meio do 'ar'.
O líquido destoava de tudo nesse lugar: dando uma espécie de vida em cor de ouro, para um ambiente outrora morto, escuro e frio. Esses eram substituídos tenuemente por uma luminosa orbe, bem na minha frente, aumentando conforme as gotas se juntavam em sua forma brilhante, ganhando corpo e força.
Apesar de ser algo inédito, fiquei cético quanto à presença da primeira luz que banhou todo esse vazio desolado.
As gotas pararam, aquilo que parecia crescer cada vez mais cessou. Cresceu até um ponto limite: O tamanho de uma bola de 'boliche'. Sua forma laçava luz fraca a todo o ambiente, porém calorosa.
“Criança, ouça o que tenho a dizer” ecoou por todo o ambiente uma voz feminina calma e serena preenchendo minha solidão com uma estranha calma, com certeza sintética.
A esfera que estava a meio metro de distância flutuando no ar aterrizou no líquido preto que passou a refletir sua singularidade e contraste.
Tentei pronunciar qualquer palavra ou frase, mas nenhum som saiu. Eu queria falar, eu queria que minha voz fosse ouvida — como uma criança querendo atenção — qualquer resposta, qualquer uma para aliviar minha sensação agonizante e sua desolação.
“Não permiti que falasse, quero que me ouça” novamente a voz tingiu o ambiente penetrando não meus sentidos, mas minha mente. Então ela continuou me deixando calmo e apreensivo ao mesmo tempo: “Não lembra como chegou aqui, porém, garanto que isso era necessário. Esta é sua punição, meu ideal de justiça”, parou por um instante, “Cada vida, cada alma, cada ser que ceifou, deixou uma amarga cicatriz na existência. Você era um herói, amado por todos, um exemplo entre seus semelhantes. No entanto, corrompeu-se em vingança e ódio, abusou de seu poder, de sua força, de tudo que te dei, para causar o mal. Aquilo que era na sua primeira vida, antes de chegar aqui, nasceu para criar, guiar, valorizar, amar e salvar. Contudo, como muitos dos seus, perderam essas metas objetivas... Mas, você... Fez pior, virou uma arma de destruição e aniquilação. Não me preocupei com todas as matanças e perdas de propósitos de seus semelhantes para com os 'menores'.” continuou, “Você Ceifou milhões: eu te dei uma chance, o caminho da luz. Minhas crianças te tiraram do Vazio Eterno, aceitei-vos de bom grado, para que tua vida fosse algo além desse véu de ignorância e desse esperança aos que ficaram descrentes em mim. Mas você não fez por merecer, sucumbiu ao ódio.”
Tentei falar, dessa vez minha voz saiu baixa e fraca. Eu não tinha, não conseguia, era impossível contrapor, eu só posso aceitar o que essa entidade disse... no fundo, eu sabia que era a verdade pura e crua.
“Me perdoe, por favor, eu tentei... Eu errei...” respondi trêmulo e abatido de joelhos diante da entidade com minha mais profunda sinceridade. Sua benevolência era a única coisa que me salvaria desse ciclo.
A esfera tremeluziu como agua formando ondas, mantendo o silêncio. Nos instantes seguintes, o orbe etéreo começou a descer e afundar no rio preto e morto com seu brilho que desaparecia até a escuridão absoluta voltar.
Minhas esperanças começaram a se desfazer em uma profunda sensação de desespero, eu tentei chorar, tentei espernear, tentei efundir qualquer coisa que ainda tinha dentro de mim. Apesar disso, nada saiu, eu não tinha corpo para desafogar minhas sensações, por isso o desvaneio crescente não transbordava.
Parecia que isso tudo iria continuar, que eu iria novamente ir para o corpo de mais um animal qualquer em um planeta específico e persistir nessa desgraça de vai e vem.
Um alívio me atingiu quando vi algo crescendo de onde a esfera desapareceu, uma espécie de solo brotou do líquido preto e passou a crescer devagar enquanto tudo ao meu redor se transformava: raízes saiam de todos os lugares, crescendo em um ritmo lento e tomando forma de árvores negras. O mais impressionante foi aquele toco de terra sendo envolvido por raízes que começaram a brilhar em azul no interior do mar negro.
Gradualmente, um tronco começou a emergir, torcendo-se e envolvendo-se em torno de sua própria ramificação antes de se ramificar em múltiplos galhos. Destes, cresceram folhas que irradiavam um brilho dourado, conferindo à árvore uma aura de incomparável beleza. Enquanto isso, no fundo da cena, os pontinhos brancos, que antes pontilhavam o cenário como estrelas distantes, desvaneceram-se, cedendo lugar a uma luz amarela. Esta luz agora iluminava intensamente um corredor em meio a um pantanal de árvores desfolhadas.
Faíscas de ouro começaram a cintilar ao redor da árvore, tecendo um anel dourado ao seu redor. Em um instante, as faíscas se condensaram e dispararam em minha direção como um vento forte e suave, envolvendo-me em uma aura de calor e luz celestial.
A sensação era como se um calor capaz de me purgar em qualquer momento, sem demandar tempo, no sentido dele ser abstrato, pudesse ser exercido.
Talvez uma ameaça? Não, parecia mais um teste. Um genuíno medo de ser destruído por uma luz que eu não conseguiria suportar me tomou quando aquele brilho circulou meu corpo formado por escuridão. A fagulha parecia o suficiente para me iluminar e acabar com minha existência naquele estado sem demandar tempo.
Aquela voz que havia me deixado retornou: “ Isso já foi o suficiente; puerilidade, um estado transitório que se esvai diante da iminência da morte. A vida, um enigma a ser decifrado, impulsionando a busca por um sentido que ultrapasse a mera existência. A hora de romper com as ilusões e construir um futuro autêntico se aproxima, exigindo coragem e determinação."
Eu não conseguia usar palavras diante do cedro brilhante ou a entidade que ele representa.
A voz feminina disse “diga algo, quero ouvir seus desejos, apesar de sabê-los”.
Com as pontadas de esperança tentando quebrar minha casca rígida, ergui-me diante da incerteza e murmurei:“Quero descansar, quero morrer de uma vez, atingir o nirvana e deixar de existir... me desculpe por tudo”.
“Querido, apesar de tudo, eu te perdoo, lembre disso acima de tudo. Mas muitos não, muitos ainda te odeiam. Te reencarnarei mais uma vez, uma última”. Ela parou por um momento, e nesse instante percebi todo o espaço ao nosso redor se dobrando, aproximando-me da árvore como uma forma absoluta de poder sobre o tempo, espaço e a realidade imaterial.
“Porque tenho que continuar? Porque mais uma?” questionei.
A árvore permanecia majestosa, sua forma inabalada e sem qualquer perturbação, ela respondeu: “ainda há muito ódio, desprezo, angústia e desespero escondidos em sua alma. Tente ser diferente, tente mudar nessa ultima chance. Além disso, a escolha é sua, decida se vai continuar a trilhar a vida ou desfalecer — não será difícil morrer, mas sobreviver vai ser um grande desafio na sua jornada. O livre arbítrio é seu, se mate quando renascer ou viva até o fim de verdade”.
Com cada palavra em mente perguntei: “Como posso mudar? Este ciclo incessante me transformou em uma casca fria, quase sem emoções, um ser afogado em traumas e cicatrizes. Nem mesmo minhas próprias memórias me pertencem. Estou perdido em um labirinto depressivo, sem saber por onde começar a encontrar o meu caminho afora.”
O brilho que emanava das folhas da entidade se intensificou ainda mais quando ela voltou a falar queimando minha alma: “Você esqueceu o valor da vida, já não vê mais a beleza nela. Contudo, ainda sente o medo da morte e no futuro, o medo de deixar aqueles que ama para trás.”
“Como posso mudar? Já não sinto mais apreço pela vida. Será que a simples existência de uma criatura irracional pode realmente me fazer sentir verdadeiramente vivo?” questionei confuso quanto a afirmação dela.
Ela me contrapôs: “As vidas que viveste são diferentes desta que vais viver agora. Tantas vidas superficiais não podem te garantir um sentido, mas, desta vez, você vai ter algo que nem na sua primeira vida teve. No fim será você quem decidirá o que fazer na sua Última vida, então seja sábio quando decidir o que é melhor. Tem alguma outra pergunta? Sei que você tem”.
Eram muitas, a possibilidade de sanar minhas dúvidas acumuladas: saber tudo que me levou até aqui em detalhes, quem é essa entidade e para qual vida vou agora. Porém, antes que eu dissesse qualquer coisa, ela intercedeu. “Esqueça o passado, ele não existe, só o agora. Minha identidade em algum momento saberá. Sobre a vida, isso você só descobrirá quando por um sentido na própria vida, não sou quem vai te guiar a um singnificado, você é responsável pelas suas escolhas.”
Prosseguiu: "Não há muito o que te dizer agora, talvez no futuro quando nos reencontrar-mos. É hora de ir, lembre-se, viver não é fácil, mas também recompensador. Sentir-se vivo e satisfeito não tem preço. No entanto, você vai encontrar muitos desafios até lá: lute, mate, ame, chore, proteja, lide com as perdas, levante-se e persista. O chão não é seu lugar, então resista. Ninguem disse que seria fácil, após tudo, veja a sua existencia com outros olhos e encontre a felicidade."
Tudo ao meu redor começou a brilhar, as árvores regressaram a sua majestosa vida e, no final, atrás do brilhante cedro, a intensa luz amarela começou a se distorcer e preencher todo o corredor. Os galhos da árvore se achataram, como se o mundo estivesse sendo engolido por um buraco negro dourado. Tentei falar uma última vez, tentei gritar, mas foi em vão: "Calma! eu ainda não..."Por todos os lados, minha consciência ouviu ecoar: "ALINHE-SE, VIVA".
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Abri os olhos em um completo breu, apenas escutando vozes, grunhidos e barulhos de um corpo... Estou dentro de um...
De um Ser vivo.
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