Capítulo 08 - “Só curiosidade”
06 de Março.
Eu estava em uma sala com pouca iluminação. Depois de olhar em volta, percebi que aquele não era um cenário que eu conhecia, apesar de parecer familiar de alguma forma.
Atrás de uma mesa rústica havia uma janela que mostrava um reino estranho com o céu em uma tonalidade lilás. Nenhum vestígio de eletricidade iluminava aquele lugar. Tudo ao redor parecia coisa do passado.
Na sala, haviam estantes de livros antigos. Um pouco ao canto, entre uma estante e outra, havia um espelho oval que parecia ter a minha altura.
“O que é tudo isso?”, eu pensei enquanto olhava ao redor repetidas vezes, procurando algum sinal de algo ou alguém que eu conhecia.
- Ei, deixe-me entrar.
Uma voz grave soou vinda de trás da porta que jazia fechada. Eu me virei em direção ao som e senti as camadas de tecidos negros que eu vestia se moverem. Além de tudo, eu vestia uma roupa estranha.
A porta se abriu sem que eu lhe desse uma resposta. Não vi o rosto do homem que entrou naquela sala, afinal, estava tudo muito escuro e nem a iluminação daquele céu de cor anormal entrando pela janela conseguia iluminar todos os pontos daquela sala desconhecida.
Tudo o que pude notar foram as vestes antigas e minimalistas, como as de um plebeu ou um servo de uma família rica da antiguidade.
- Escute, não é o que você está pensando. A culpa não foi sua.
Eu franzi as sobrancelhas. A pessoa que falava parecia angustiada.
Naquela hora, também pude reparar longos cabelos prateados caindo sobre seus ombros.
- É que… eu tenho medo que você não goste do que verá. Por favor, acredite em mim. - Ele pausou e passou uma das mãos pela cabeça, de forma nervosa. - Eu amo você!
“Quem é ele? Do que ele está falando?”, eu pensei. Instintivamente recuei alguns passos, ficando rente ao espelho oval que havia avistado antes.
Com a visão periférica, pude notar que meu reflexo também estava diferente. Aquilo me chocou de tal maneira que virei-me lentamente na direção da imagem mostrada no espelho.
Eu estava com o mesmo rosto, os mesmos olhos e até a mesma cor de cabelo com a qual eu nasci… mas havia uma coisa diferente. A cada músculo facial que eu movia as aberturas em cada bochecha se contorciam mais. Como se tivessem sido rasgadas de forma totalmente desigual, deixando à mostra a arcada de presas afiadas e assustadoras.
Abaixei o olhar, com medo do que mais poderia perceber. As pontas dos meus dedos carregavam garras afiadas e a pele de minhas mãos estava manchada de uma tonalidade negra como se fossem respingos de tinta com veias azuis saltadas pelos antebraços. Minhas cicatrizes também estavam lá.
Era o meu próprio rosto. Meu próprio corpo. Diferente e desfigurado.
Não era difícil concluir que aquilo era um sonho, no entanto, ainda tinha um último questionamento: “Como ele poderia amar algo assim?”
E, então, mais um domingo em que eu amanheci na cadeira do meu escritório. Acabei dormindo por lá depois de limpar e limpar para fazer o cheiro de cigarro desaparecer. Comecei a achar que aquilo estava só na minha cabeça mas, depois de algumas horas, realmente estava com um cheiro mais agradável. Isto é, até Jeffrey reaparecer no meu escritório para me entregar o relatório que o mandei fazer. Depois disso, o cheiro voltou.
- Merda de John Larck… - Eu resmunguei enquanto bocejava, olhando os papéis do relatório jogados sobre minha mesa. - Uma grande pilha de nada…
Antes de pegar no sono, li o relatório com as informações de Jeffrey. John Larck foi libertado após ser inocentado com a ajuda de um advogado contratado pela família Wild. Aparentemente foram eles quem abriram o caminho para John vir para Ottawa, onde seus últimos rastros desapareceram.
É o tipo de informação que nem ao menos se pode pensar na possibilidade de ser uma mentira já que, falando na família Wild, todos me odeiam e fariam de tudo para me prejudicar.
De qualquer forma, são informações que não me ajudaram tanto em relação a saber sobre o paradeiro de John Larck. Não consegui tirar dos meus ombros o peso da sensação de que acabei colocando uma fruta podre na minha cesta em troca de algumas migalhas.
Eu repousei a cabeça sobre a mesa novamente. À noite eu teria que voltar para o apartamento que divido com Ed e voltar com toda a encenação de novo. Aquilo já estava me cansando.
Ouvi a porta do elevador abrir e levantei minha cabeça para olhar em direção às portas de vidro. Olhei rapidamente sobre a mesa e peguei em mãos uma tesoura que estava usando na noite passada. Pensei comigo mesmo que, se Jeffrey subir no andar da equipe principal sem permissão de novo, eu arrancaria um dos olhos dele.
Os passos se aproximaram de forma pesada. Jeffrey provavelmente não andaria de forma tão descuidada assim…
- Lúcifer. - Aki disse, no lado de fora do escritório, olhando em minha direção através da porta de vidro. - Posso entrar?
- Ah,... - Eu congelei por um instante. Olhei Aki de cima abaixo várias vezes.
Normalmente sempre o vejo vestindo o mesmo tipo de roupa. Camiseta, jaqueta de couro. Coisas que, na minha mente, já faziam personalidade de Aki.
Agora meus olhos presenciaram Aki vestindo um suéter cinza com gola alta. Normalmente a primeira justificativa para ele usar algo tão fora do comum seria o frio que faz nesta região mas, Aki não sente frio. Ainda mais, por que um suéter com uma abertura na clavícula? Se bem que era uma abertura bem grande. Dava para ver o ínicio do seu peitoral enorme e coberto de sardas.
Um pensamento intrusivo brotou em minha mente naquele instante, enquanto o olhava. “Posso aproveitar que estou com uma tesoura e cortar aquele suéter?”, pensei, mas não por ter detestado a roupa incomum, mas por querer desesperadamente ver o que havia embaixo com mais clareza.
- Lúcifer! - Ele me chamou novamente, impaciente.
- P-Pode entrar. - Eu fui puxado de volta para a realidade em um susto. Soltei a tesoura que estava segurando em mãos e escondi meu rosto por alguns instantes, envergonhado com os meus próprios pensamentos.
“Por que usar uma roupa assim? Não queria ter esse tipo de pensamento sobre você, Aki…”, eu pensei. No fim, a roupa fora do comum lhe caiu muito bem. Era só isso que eu tinha que achar.
O mais alto adentrou meu escritório, fechando a porta logo atrás. Ele andou até a minha mesa e sentou-se na cadeira à frente.
- Quero te pedir uma coisa. - Aki falou, direto como sempre.
- Ah, o que seria?
Era comum ouvir pedidos vindo dos demais membros e cidadãos mas, mesmo me esforçando, não consigo me lembrar de nenhuma vez em que Aki tenha me pedido algo.
- Quero que me veja tocando. - Direto de novo mas, dessa vez, foi rápido demais para eu entender.
- Tocando…? - Eu cerrei os olhos. Senti que estava vendo o sentido errado naquelas falas, então, esperei Aki completar a frase para que eu sanasse a pergunta “Tocando o que?” que a minha mente fazia.
- Tocando guitarra. Hoje à noite, às 19:00, vai ter um festival japonês na cidade e eu e alguns alunos do curso de música fomos chamados para tocar. - Aki cruzou os braços e desviou o olhar em seguida. - Mas não precisa ir se não quiser. - A última frase foi resmungada.
- Ah, claro. - Tudo fez sentido para mim naquele momento. Por um instante eu havia esquecido que Aki estudava música. - Claro que eu irei!
Me lembrando bem agora, sei que Aki sempre gostou muito de tocar e foi uma grande realização começar a investir neste tipo de estudo. Porém como ele é reservado, nunca fala sobre as aulas. Mas agora, Aki não só me fez um pedido como me convidou para algo importante assim… como eu poderia recusar?
O mais alto voltou os olhos em minha direção ao ouvir minha resposta. Seus lábios avermelhados ensaiaram um sorriso mas ele logo se conteve, forçando a expressão indiferente de sempre.
- Certo. - Ele se levantou. De certa forma, parecia aliviado por eu ter aceitado o convite. Ele já ia sair pela porta quando se lembrou de algo, e voltou um passo. - Ah, e mais uma coisa…
- Hm? - Voltei minha atenção à ele novamente.
- Hoje mais cedo, Noah sentiu que duas pessoas desconhecidas tentaram forçar a entrada na barreira. Quando saímos para procurar, não encontramos nada mas, tendo em vista o problema com John Larck… - Ele pareceu não saber como concluir a frase, e isso o fez irritar a si mesmo. Aki estalou a língua e concluiu. - Estou te avisando caso tenhamos que nos preparar para alguma invasão.
- Okay, obrigado por avisar. - Eu encostei as costas na cadeira e suspirei, cansado. - Que tipo de pessoas eram?
- Um demônio elemental e um humano comum. - Aki disse, ainda de braços cruzados.
- Entendi…
Coloquei uma das mãos sobre o queixo. Isso me fazia lembrar de uma certa dupla que conheci quando era mais jovem mas, as chances de serem as mesmas pessoas é quase nula.
- Tenho que ir. Preciso ensaiar para fazer as coisas darem certo hoje.
- Ah, certo. Boa sorte–
Aki mal ouviu minha resposta e já havia saído do escritório. Não havia cogitado a possibilidade antes mas, provavelmente Aki estava nervoso com esta apresentação.
Olhei a hora de relance em um relógio pendurado na parede ao canto da sala. 10:00. Ainda iria demorar para o tal festival começar, então, eu tinha tempo de fazer mais uma coisa que precisava.
Quando me levantei, olhei para o canto do meu escritório, entre a parede e uma prateleira de arquivos… desde quando havia um espelho ali?
Antes de sair do prédio, encontrei Noah e tivemos uma breve conversa.
- Quero que reúna uma equipe para este caso. - Entreguei a ele o arquivo de Vanessa, sobre o demônio bestial.
- Então, era este o caso que ela queria resolver com a nossa ajuda? - O bruxo olhou os papéis depois de tirá-los do envelope. - Reunirei a equipe. Devo tratar isso como prioridade já que foi a líder dos lobos quem nos pediu ajuda?
- Não podemos. Nossa prioridade agora é encontrar John Larck. Sobre o resgate do demônio bestial, só enviaremos auxílio para ela. - Eu disse, já andando em direção a saída do prédio.
- Ah, chefe, tem mais uma coisa! - Noah me seguiu para concluir o assunto. - Eu localizei Bolt. Devo chamá-lo para uma reunião ou algo assim?
- Sim. Mande-o voltar para a cidadela e esperar o meu retorno o quanto antes.
John Larck, Jeffrey Davies, Bolt… Quantos problemas posso gerenciar ao mesmo tempo?
Enfim, havia mais uma coisa que precisava resolver antes de lidar com essas coisas.
Fui, mais uma vez, à casa de Mallory, dessa vez com a certeza de que encontraria Lilly.
Quando a anciã abriu a porta de madeira, ela sorriu já abrindo passagem para o garotinho que surgiu logo atrás, correndo em disparada na minha direção.
- Lu!
Os braços finos me envolveram em um abraço quase que desesperado, aumentando o aberto quando eu me equilibrei novamente para não cair com o impacto.
- Há quanto tempo, Lilly. - Eu sorri, acariciando os cabelos cor de fogo.
- Achei que tinha se esquecido de mim. - Os olhos castanhos claros ergueram-se em minha direção, me olhando de baixo sem me soltar. - Já ia fazer duas semanas que você não aparecia por aqui.
Eu sabia que fazia um tempo que não voltava, mas não fazia ideia de que Lilly estava contando.
- Me desculpe, é que eu fiquei ocupado com alguns assuntos. Mas agora estou aqui. - Olhei Mallory de relance, ela indicava que eu deveria entrar.
Lilly finalmente me soltou, mas foi apenas para segurar minha mão e me puxar para dentro de casa.
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