— Kristal?
— Oi, Li. — Seu semblante é triste, e parece carregar uma culpa que ela nunca percebera antes.
— Como… Como isso aconteceu?
— Eu, hum, fiz algo ruim e agora preciso pagar por isso.
— Mas outras fadas tiveram que pagar por seus erros também? Meio injusto.
— Não deveriam ter perdas. Não era para acontecer, mas suas almas foram salvas e estão pela natureza — Kristal abaixa a cabeça e volta a falar: — Desculpa por tudo. Eu não sei como parar isso.
— Você se lembra de toda noite?
— Antes, no início, eu não lembrava. Passei a lembrar de tudo quando Moonie apareceu para mim — olhava para o unicórnio que agora bebia água da cachoeira.
— Esse é o nome dele?
Após concordar. As duas decidem voltar para a vila para seus afazeres. Já sabendo da localização da fera, ela decide fazer outra coisa nas horas que usava para procurá-la.
Lily foi até a fada anciã. Era a fada mais velha da vila, e por não ter mais disposição para fazer algumas atividades ela cuidava da história delas e de ensinar as crianças junto de algumas outras fadas. Lily acreditava que ela poderia ter alguma resposta, afinal, Kristal obviamente não era primeira fada a fazer algo errado, e mesmo sem saber o que era que ela fizera, deveria ter um jeito de isso parar.
Quando entrou na cabana cheia de livros e mesas, a anciã a recebeu com um sorriso grande e perguntou se poderia ajudar e, depois dela perguntar sobre fadas com contato com unicórnios e magias ruins, a mais velha respirou fundo e deu início a mais uma história:
— Há muito tempo, uma fada machucou muitas outras com uma ventania que virou um furacão. Depois disso, ela perdeu parte de seu poder, ficou extremamente fraca e, durante as noites, perdia-o por completo. — A fada fez uma pausa e suspirou: — ela também virava uma criatura que todos diziam ser o mais feio de todos. Uns anos depois um majestoso unicórnio apareceu para essa fada e disse apenas seu nome. Ele não deixava de a vigiar e sempre que a fada estava na floresta ele estava junto dela. Ela só voltou ao normal após provar merecer aquilo.
— Então o unicórnio estava ali só para protegê-la?
A anciã sorriu concordando.
Na cachoeira, Lily acha Kristal no mesmo lugar com a mesma companhia. Elas ficam um tempo em silêncio. Prestando atenção aos sons e cheiros do lugar. Aquilo que as mantêm a calmo, seu lar.
— Sempre vem aqui antes de se transformar?
— Hum, sim. Me ajuda a manter a calma.
Faltando uma hora e meia para o pôr do sol, as duas voltam a vila. Kristal comenta que o tempo nublado pode fazer alguns esquecerem do pôr do sol e pede para ela prestar mais atenção. Com o horário do toque de recolher ela entende o que a fada disse. Ela escuta conversas e voa para avisar da hora, mas não há mais tempo a fera já corre em direção as fadas. Lily joga uma pedrinha no monstro pedindo desculpas em um tom baixo e voa para a floresta. Com papéis trocados dessa vez, a fera corre a poucos centímetros da fada que voa lutando contra a ventania que se forma pelo mau tempo. Elas estão longe da vila, entre as árvores, quando a fera acerta a fada a jogando contra uma dessas arvores. A fada grita por Kristal, achando ter algum resquício de sua amiga ali, mas de nada adianta e ela continua avançando em sua direção. Qualquer coisa que seja dito, o monstro a sua frente parece não entender, sua amiga não tem consciência nenhuma ali. Lily fecha forte os olhos esperando o pior, mesmo que ainda suplique para que Kristal não faça nada. Um barulho alto de relincho chama atenção das duas e antes que a fera chegue em Lily, o unicórnio a afasta dali, deixando uma fadinha aliviada para trás.
Quando de manhã, Kristal volta correndo para a vila a procura de Lily e a acha saindo de sua casa. Ela implora pelo perdão da outra, mas ela diz não precisar disso tudo, afinal de contas ela não tinha culpa, não tinha controle dos próprios atos. Kristal demora para aceitar isso, mas com toda a paciência da outra para fazê-la entender isso, as duas voltam aos seus afazeres juntas, com uma Kristal mais aliviada de a amiga não estar com raiva ou chateada consigo.
Os dias passam e as duas estão mais próximas. Uma ajudando a outra a manter aquele segredo assim. Quando a líder das guerreiras pergunta se ela já achou o local da fera, ela nega e inventa uma desculpa qualquer sobre ela ter possivelmente usado magia para se manter escondida. Afinal, elas não sabem de nada sobre o ser que as assombra. Ela acredita que manter isso em segredo vai ajudar elas a descobrirem o que fazer, afinal quanto menos fadas souberem, melhor. Assim ninguém mais sai machucado disso tudo e nem mesmo Kristal, que já parece machucada de mais.
— Foi aqui que aconteceu. — As duas estão na cachoeira, faltam algumas poucas horas para o toque de recolher e como todo dia Kristal vai para seu refujo. Lily tem sua atenção voltada para outra, curiosa para saber o que aconteceu. — Sabe que nunca entramos na cachoeira, a força da água nos empurraria para baixo e seria impossível voltar, ainda mais com as asas molhadas. Estávamos brincando ao redor. Não havia flores ali. Usei força demais e ela caiu na cachoeira. Tentei pular, mas com não sei nadar, não tive coragem e ela não conseguiu voltar. Ela se foi e a culpa foi minha e todos pensam que ela fez isso sozinha.
— Espera, está falando da Aurora? — Um balançar de cabeça responde sua pergunta. — Você queria isso? Foi intencional?
— Claro que não! — Sua resposta é rápida.
— Kristal, não foi sua culpa. Foi um acidente, você sabe disso, não sabe?
— Se não fosse por mim, ela ainda estaria aqui e vivendo. Eu sou um monstro.
A última parte, mesmo que sussurrada, ainda pode ser ouvida por Lily, que olha para Moonie e um estalo soa em sua mente. Ela era um monstro porque se sentia assim. Ela não foi amaldiçoada por algo externo, vinha dela mesma, de sua própria magia. Assim como na história da anciã, Moonie estava ali para proteger Kristal, e as outras fadas como fizera consigo dias atrás. Ainda assim, a fada queria ter certeza, e ela sabia quem poderia responder.
— Isso é o que acontece com fadas que fazem algo ruim, não é, mesmo que sem querer? — Seu olhar está direcionado ao unicórnio e ele concorda baixando sua cabeça levemente. — Farei você pensar de outra forma de si mesma. Farei você entender que não há um monstro nessa história.
É o que ela faz. Ao chegarem de volta a vila, antes do toque de recolher, Lily mostra a Kristal tudo que ela já havia feito pelos outros. Durante um mês inteiro, a fada não saiu de perto da outra, sempre pontuando quando ela provava que não era um monstro, tentando convencer que ela não era culpada. Durante as noites a programação era a mesma de sempre e Lily sempre estava lá quando Kristal voltava a ser ela mesma. Ao longo do mês, Kristal foi gradualmente entendendo o que ela sempre dizia e mostrava. Naquele mês não só uma fada foi deixando de se odiar, como também foi lentamente se amando e entendendo que ela poderia ser amada e amar de volta.
Após trinta dias juntas, faltando duas horas para o pôr do sol, Lily decide que já é hora da conversa e ter certeza que a fadinha entendera tudo.
— Mesmo que você vire um monstro durante a noite e mesmo que tenha acontecido aquilo, espero que entenda que você não é um de verdade. Foi um acidente, e sei que se pudesse mudar, você mudaria. Além disso, uma fada que ama e é amada não é um monstro. E podemos cometer alguns erros, só não podemos permanecer nele por mais tempo. Entende isso?
A fada não diz nada, mas ela entende. Não só sobre nunca mais machucar alguém, mas também, sobre não se ferir nunca mais. Toda a culpa que carregava só servia para corroer a fada e a transformar naquilo que ela se via, naquilo que ela acreditava ser. Acreditava. Ela não acredita mais, ela entende que mesmo que tenha sido ela a empurrar, não tinha como ela saber o que aconteceria, nem mesmo que com apenas um pouco de força, todo um desastre ocorreria.
Quando as duas horas passam, o silêncio permanece, e enquanto o sol se põe, Kristal fecha os olhos apertados. Ela sabe que não é um monstro, mas o medo ainda está ali. Quando nada acontece e ela sente um leve toque em seu ombro, ela abre os olhos e solta um suspiro, ela não é mais um monstro. Ela pode ser ela mesma durante as noites também. A fada fica tão feliz que abraça a outra, apertado, e deixa um beijo sobre seus lábios, um beijo que é correspondido.
Com o passar dos dias, a fera não aparece mais na vila, progressivamente as fadas entendem que ela se foi. Lentamente vão voltando a como era há três anos. Durante todas essas noites as duas fadas que mantinham a história em segredo, passavam juntas a beira da cachoeira até sentirem sono e voltarem para casa. Todas as noites elas estavam nos braços uma da outra, aproveitando da companhia e do amor.
Comments (0)
See all