A Universidade de Magia havia mergulhado no caos naquela madrugada.
Ao amanhecer, o guarda noturno encontrou vários corpos do necrotério dispersos nos corredores do prédio Miasma. Como se aquele espetáculo macabro não bastasse, o guarda acabou contaminado por um miasma sinistro já que uma presença sobrenatural parecia pairar no ar.
Se não fosse pelo outro guarda chamar a polícia mágica para equalizá-lo as pressas, talvez aquele guarda noturno já não estaria entre o mundo dos vivos. Porém, a polícia mágica se deparou com um problema a mais: corpos andando pelos corredores como se zumbis letárgicos fossem. Apesar da cena horripilante, os tais “zumbis” não atacavam se não provocados – ou seja, só atacavam quando algo encostasse neles, já que os receptores de estímulos de longa distância estavam degradados. Assim, Sr. Soleil, Abannak, Shire e Ajal foram chamados às pressas para lidarem com a crise que levou ao fechamento temporário de todos os departamentos vizinhos do prédio de Miasma, para que as energias do caos não infectassem mais ninguém.
A origem da energia? Ninguém sabia. Na verdade, eram justamente isso que estavam tentando investigar naquela manhã. Mas isso não nos interessa, já que nosso foco vai para os desafortunados que não viram as mensagens do celular antes de sair de casa.
Addai estava enfrentando seu segundo trem para ir para a Universidade, ao lado de pessoas umas fedorentas e outras podres de perfume – atacando a rinite do pobre rapaz. Além disso, parecia que o ar-condicionado principal estava quebrado, o que tornou aquela lata de sardinha ambulante em um forno.
O jovem rapaz já não sabia mais o que sentir, já que foi culpa sua por não ter visto o celular mais cedo. Ele queria muito voltar para casa, mas a próxima viagem para a estação do seu bairro viria daqui a uma hora. Então, ele teria que esperar e se contentar com a manhã desperdiçada.
Ele desceu do metrô e sentou-se no primeiro banco que achou. Resmungando, ele ajeitou sua roupa e retirou o casaco que o identificava como professor da universidade, o colocando na bolsa que ele acabara de perceber o presentinho que Umbra deixou dentro (uma barata esturricada).
“Umbra...” Addai suspirou, depois do susto ao ver a barata esturricada.
Sua gata apareceu bem do seu lado e posou orgulhosa, como se esperasse que ele a agradecesse. Porém, Addai não parecia satisfeito enquanto tentava tirar a barata seca da bolsa sem tremer tanto e esfarelar o que sobrou do pobre – e asqueroso – inseto.
“Miau?” Umbra miou, observando Addai se desesperar lentamente quando sua mão encostou na barata que conseguiu retirar da bolsa com a ajuda de um pedaço de folheto que ganhou mais cedo.
“Quantas vezes eu já te falei para não colocar nenhuma surpresa na minha bolsa?!” Addai protestou, com a voz um pouco trêmula.
“Miau,” Umbra miou e mordeu a mão de seu dono, desaprovando a atitude de jogar fora um de seus presentes.
“Também não é para me morder!” Addai asseverou e a gata sentou-se em seu colo. “Ah... acabei vindo por nada, Umbra...” ele suspirou, acariciando as orelhas e costas da gata que já ronronava.
A estação não estava nem muito escura nem muito clara, iluminada pelos raios de sol amenos da manhã que teimavam em entrar pelo teto de vidro. Apesar do desperdício, era uma manhã que merecia ser apreciada e Addai não pôde deixar de suspirar ao sentir alguns raios de sol morno encostar em sua pele.
Umbra saiu de seu colo ao ver que seu dono parou de fazer carinho nela e tentou pegar um caderno preto texturizado da bolsa de Addai, que acariciou sua cabeça ao ver que ela estava se esforçando. É claro que ela deixou buracos no pobre caderno, mas seu dono não se importou – na verdade, ele estava acostumado a ter seus livros e cadernos mordiscados por ela.
“Boa ideia, Umbra,” Addai sorriu para a gata, que ronronou e esfregou a cabeça em sua mão. Ele riu ao ver a gata posando orgulhosamente, preparando o melhor miado que ela pudesse soltar.
“Miau~” Umbra miou orgulhosamente.
“Você tem algo em mente? Lembra que a gente fazia isso muito?” Addai acariciou as orelhas da gata. “Quer ser a minha modelo?”
“Miau miau,” Umbra decidiu apenas se deitar bem encostadinha em seu dono, ronronando enquanto aproveitava os raios de sol exclusivos daquela manhã agradabilíssima.
“Tudo bem, na próxima você será a modelo,” Addai riu.
Tirando um lápis de ponta um pouco grossa – nada mais que 4B e nada menos do que 2B – a página branca ansiava por ter novas cores em si, mesmo que fossem as variações de preto, cinza e branco que as páginas anteriores desfrutavam. Era o suficiente por enquanto, então não dava para ser tão ganancioso com as cores.
Addai arrumou o lápis em um de seus calos dos dedos e mirou-o na página, já com a paisagem em mente. O item corria na página antes branca, esboçando as cores monótonas sob a superfície granulada e branca. Polegar para cima, polegar para baixo, ele imaginou a perspectiva da paisagem que estava reproduzindo. Desde os bancos, texturas e as pouquíssimas pessoas distraídas com suas próprias vidas, a estação ganhava uma versão a lápis naquela página daquele caderno em seu colo. Uma linha aqui, uma linha ali, algumas linhas tortas e outras retas o suficiente, formavam a composição em construção.
A estação estava silenciosa como sempre. As poucas pessoas já haviam pegado seus respectivos trens, deixando o jovem rapaz praticamente sozinho naquela estação... se não fosse por uma mulher alta aparecer e sentar bem onde ele estava começando a preencher os espaços em branco e as linhas bagunçadas.
Addai decidiu adicioná-la ao desenho, mas era muito difícil de fazer os primeiros rabiscos de seu rosto, então ele apenas esboçou o que achou que tivesse enxergado. Enquanto ele tentava distinguir as linhas, feições e detalhes, Umbra começou a se arrepiar e assumiu uma postura defensiva e já rosnando baixinho.
“O que foi?” Addai acariciou a cabeça de sua gata.
Antes que Addai pudesse verificar as feições da mulher novamente, ela já havia desaparecido. As pessoas têm coisas para fazer, então, talvez ela tenha desistido de pegar o metrô e ido a outro lugar, quem sabe? Mas um fato curioso era que Umbra havia parado de rosnar e passou a encarar seu dono.
“Miau...” Umbra tocou na coxa de Addai com a pata.
“Já cansou?” Addai acariciou o queixo de Umbra. “Ok, você pode voltar para minha sombra,” ele sorriu e Umbra deu uma ronronada e esfregou a cabeça na mão de seu dono antes de se incorporar à sombra de Addai.
Decidindo finalizar o desenho mais tarde com alguns lápis de cor, Addai colocou o caderno novamente em sua bolsa. Mais um trem havia parado ali e seus passageiros já encontravam seu rumo e rota a serem seguidos. No meio deles, uma pessoa vinha a passos largos e desviava dos mais lentos.
Quando essa pessoa conseguiu sair da “lata de sardinha motorizada”, seu celular havia caído dos bolsos e ele rapidamente o pegou. Passou alguns segundos e a pressa daquela pessoa havia se esvaído e, o que antes era desespero, virou frustração e revolta.
“Eu não acredito!!” A pessoa fumegou, finalmente deixando sua raiva extravasar.
Addai riu baixinho, fitando a pessoa. “Quem diria que enfiar o celular na bunda seria uma má ideia?” Ele provocou e a pessoa o fitou com visível irritação.
“Você também veio pra nada?”
“Muito bem, Sherlock,” Addai cruzou os braços e se acomodou no banco como se estivesse dando espaço. “Senta aí e, ah, Bom dia, Mine.”
“Mau dia,” Mine resmungou, sentando-se ao lado de Addai no espaço oferecido. “Ai que azar...” Ele bocejou.
“Não vou te carregar pra casa não, princesa,” Addai provocou.
“Como se eu fosse precisar da sua ajuda,” Mine retrucou.
“Esperando qual trem?” Addai perguntou, tentando enxergar a tabela de horários da estação.
“Coincidentemente estou esperando o qual vai para o seu bairro,” Mine bocejou novamente. “Não me diga que estamos esperando o mesmo trem...” Ele fitou Addai, desconfiado de seu próprio azar.
“Acertou, Sherlock,” Addai assentiu e Mine resmungou mais ainda.
Dez minutos depois... e nada.
Trinta minutos depois... e nada.
Quarenta minutos depois... e um trem finalmente havia parado na estação! Mas não era a linha que ia para o bairro de Addai.
Uma hora depois... e ainda nada.
Mine e Addai compartilharam os lanches que trouxeram para comer durante a manhã – vulgo café da manhã que não foi tomado em casa. A estação estava silenciosa novamente e o único som que dava para ouvir – além das vozes dos dois jovens – era o farfalhar ocasional de folhas com a brisa morna. Esse clima pacato era terrivelmente propenso para uma soneca... e isso já começava a afetar a ambos.
“Tá tão quieto que estou com mais sono ainda...” Mine bocejou, já cansado de bocejar.
“Pare de me contaminar com seus bocejos,” Addai resmunou e bocejou.
“Ah! Tive uma ideia,” Mine começou a vasculhar a sua mochila e pegou a caixinha de seus fones de ouvido sem fio. “Aqui, pegue um,” ele entregou um dos lados para Addai, que o pegou depois de bocejar novamente.
Uma música suave começou a tocar, deixando-os ainda mais sonolentos. Bocejo. Uma má escolha. Bocejo.
Mine escolheu outra música mais agitada e melodiosa. Uma boa escolha!
Após um breve momento ouvindo a playlist super aleatória que ambos fizeram, Mine fitou Addai, com um olhar de quem queria dizer algo empolgante.
“Eu escolhi o lugar,” Mine sorriu.
“Que lugar?” Addai perguntou, um tanto confuso.
“O do passeio, duh!” Mine animou-se. “É melhor você melhorar suas habilidades de dança porque iremos à feira da Deusa da Primavera!”
Addai demorou exatos cinco segundos para processar algumas coisas antes de perguntar algo importante. “E o que isso tem a ver com minhas habilidades de dança?”
“Porque você vai dançar, oras,” Mine respondeu com entusiasmo. “Lá sempre tem música boa e às vezes rola premiação para os melhores dançarinos, então... é por isso que quero que você dance comigo minimamente decente, já que sua coordenação motora é horripilante.”
“Horripilante...” Addai repetiu para si. “Ainda não vejo razão para sua motivação delirante.”
“É que eu nunca vi um dançarino tão ruim antes e é um pecado se eu não te ensinar,” Mine sorriu com notas de ousadia e entusiasmo. “E, quem sabe, você encontre alguém que tipo... ah, vai que você encante uma mulher boa e bonita para ter com quem dançar além de mim,” ele explicou, tentando não parecer tão estranho quanto a sua breve mudança de tom para um melancólico.
Silêncio.
Mine não se atrevia a dizer mais nada e se perguntou se aquilo havia ofendido Addai de alguma forma. Enquanto ele mastigava seus pensamentos repetidamente, uma espécie de peso começou a ser colocado em sua cabeça ao perceber que Addai nem sequer sorria ou ria como fez no café no outro dia quando conversavam sobre as garotas sentadas perto deles. Será que aquele comentário havia deixado Addai desconfortável?
Quando Mine estava prestes a se desculpar, Addai falou primeiro. “Por que não pode ser você?” Ele perguntou, reflexivo.
Mas Mine tinha a resposta na ponta da língua. “Você vai se cansar de mim.”
Mas o que Mine não esperava era a resposta que Addai também tinha na ponta da língua assim como ele.
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