Sufocante.
Essa seria a descrição perfeita deste local enciclopédico.
O ar aqui é pesado, como se cada centímetro cúbico estivesse impregnado com o peso das palavras esquecidas, dos saberes que há muito foram deixados aqui. A madeira antiga que compõe as paredes, o piso e as estantes parece absorver o tempo, desgastadas. As vigas escuras, que suportam o teto baixo.
As estantes de madeira polida, ainda que desgastadas pelos séculos, erguem-se imponentes até o teto. Livros encadernados em couro pesado e polimeros repousam lado a lado, exalando um odor de papel velho e madeira ressecada. Sinto-me parado, congelado no tempo, enquanto o mundo lá fora continua em movimento — especialmente com a notícia inquietante que, até agora, não pude digerir.
Deslizei a mão direita por uma prateleira no setor de cultura, meus dedos coletando poeira. Um suspiro escapou de meus lábios enquanto puxava um livro à esmo: Culinária Floreana e Ictina.
Ao abrir a capa, uma nuvem de poeira se ergueu no ar abafado, me fazendo tossir discretamente. Só o título já promete uma jornada de tédio — duas nações competindo para ver quem transforma a alimentação em um exercício de gourmetizações excessivas. O quão refinado precisa ser o ato de comer?
Revirei os olhos, lembrando das inúmeras vezes em que minha 'mãe' insistiu que eu devia evitar carne crua ou grãos não refinados, como se isso fosse o auge da civilização... Não, sem confusão, eu sou o normal aqui, não ela.
“Que delícia”, murmurei, com sarcasmo, folheando as primeiras páginas sem muito interesse. Um duelo culinário entre dois povos que mal conheço, sobre o qual só ouvi falar recentemente. D. Jhos Zoli, autor renomado e chef gastronômico de Ictia, e ,aparentemente, coordenador chef do Palácio de Sedrons. O título soa vazio, tal como o autor parece ser, mas havia algo em sua arrogância que me prendia.
Meus olhos percorreram as palavras com um desdém crescente: “Sem cultura, imitação barata e sem qualquer traço de autenticidade, a culinária Floreana não passa de uma piada mal contada em comparação à rica e sofisticada gastronomia Ictina.” O tom desdenhoso era óbvio, e o monólogo autossuficiente continuava: "Eu, como coordenador da culinária no Palácio de Sedrons, tenho pleno domínio sobre o assunto."
Imaginei aquele tal Palácio de Sedrons, um lugar onde a opulência reinava soberana. Pelas descrições, o palácio era uma maravilha arquitetônica, com paredes de marmore esculpida à mão, suficentemente moderno em aço, cada detalhe entalhado por artesãos e metalúrgicos que dedicaram suas vidas à perfeição. As colunas altas, feitas de obsidiana somada ao marmore, lustrosa de mais, sustentavam tetos decorados com afrescos dourados e abobodados, enquanto grandes janelas com vitrais da presente era projetavam luzes sem filtro sobre o chão de lindas largas e escuras cerâmicas de platina.
No grande salão de banquetes, mesas de vidro e marmore maciço eram cobertas com toalhas finamente bordadas, e sobre elas repousavam pratos tão ornamentados quanto uma peça de arte. A madeira do palácio, diferente das estantes desta biblioteca, era viva, brilhando com a luz do sol. E, em contraste com o ambiente pesado e sufocante daqui.
A descrição do autor continuava a bombardear o leitor com críticas ferozes sobre a falta de autenticidade Floreana. Ele exaltava a supremacia de sua cozinha, vangloriando-se dos pratos complexos e meticulosamente planejados que, honestamente, pareciam ter mais passos do que seria necessário para construir uma nave espacial.
“Ele poderia facilmente organizar uma competição para ver qual nação perde mais tempo com detalhes insignificantes”, resmunguei, folheando mais algumas páginas de receitas intricadas. Ingredientes raros, técnicas arcaicas… Floreanos e Ictianos parecem verdadeiros mestres em transformar algo simples em uma complicação sem fim.
Fechei o livro com um baque suave, sentindo o tédio crescer. Se alguém me perguntar sobre a rivalidade culinária desses povos, pelo menos terei um bom início de conversa... ou um ótimo método de tortura. Sorri, satisfeito com minha própria ironia, e devolvi o livro à prateleira. “Acho que vou procurar algo mais animado. Talvez um manual de construção de naves espaciais. Aposto que seria mais emocionante.”
Tantas prateleiras, tantos livros... todos velhos e desatualizados.
Como Aidan consegue passar tanto tempo aqui? Isso é insuportável! Minha "mãe" nos mandou vir à biblioteca antes do parto dela começar hoje, nesta vila decadente. Tudo por causa da Anciã Nina, que insistiu que "homens não podem entrar". Sério? Use a lógica, senhora de baixo QI. Se ela teve a mim e agora terá meu futuro irmão, ela e meu "pai" claramente têm intimidade suficiente. Quanto a mim... bom, já fui amamentado e vi seu corpo sem roupas mais vezes do que gostaria.
Caminhei alguns metros pelo corredor, até chegar à seção de contos históricos. Me arrastei até lá, sentindo o peso do mundo. Fiquei na ponta dos pés para alcançar os livros da prateleira superior e tentei puxar um deles. Não saiu. Com um pouco mais de força, consegui soltá-lo, com cuidado para não rasgar. Para minha surpresa, o livro parecia novo, bem diferente dos outros, que aparentavam ter uns 20 ou 30 anos.
'Visita à história de Áurea: Do mundo antigo à modernidade'
Escrito em Híctia, 3021 d.C.
Por Deihom Sedos, historiador e economista da Academia de Ciência e Inovação de Sedrons.
'A ACIS é uma instituição lucrativa, altamente concorrida, especialmente entre nobres. Financiada pelo Estado de Híctia, busca democratizar o conhecimento disponibilizando materiais de estudo para diversas regiões. "Até parece honroso... Talvez eu estude lá algum dia, onde quer que seja Sedrons," pensei, ainda cético sobre continuar vivendo, dado o ciclo constante de reencarnação e morte.'
"Pelo menos ainda me restam a cosmogenesí e a matemática," disse com um toque de sarcasmo.
O livro organiza a história em categorias claras: 1 - Era Remota. 2 - Era Divergente. 3 - Era Comunal. 4 - Era da Iluminação. 5 - Era do Cataclisma. 6 - Era da Inanição. 7 - Era Moderna. 8 - Era Contemporânea. Embora isso facilite o entendimento, a leitura ameaça me entediar até a morte.
'A Era Remota, de 240.000 a.C. a 40.000 a.C., foi marcada por um desenvolvimento incrivelmente lento. As espécies humanas tem destaque junto aos Néfos, Elfins e Chordás, digo isso com base em uma obra do professor de biologia Jeremi Sedos, meu amigo e primo. Evolutivamente, essas quatro, parecem ter sido introduzidas artificialmente em Áurea, em contraponto aos vilos, que possuem ancestrais.
Nesse período, pequenas comunidades nômades sobreviviam de caça e coleta, usando ferramentas simples de pedra, madeira e ossos. Mesmo assim, já dominavam a magia, o que lhes proporcionava proteção contra predadores e permitia cozinhar alimentos, dando-lhes um maior controle sobre o ambiente.
Essas populações primitivas, embora tecnologicamente limitadas, mostravam uma capacidade surpreendente de adaptação. Dispersaram-se por diversos continentes, enfrentando climas variados e ecossistemas hostis. Curiosamente, há estruturas negras de uma raça ancestral, pouco compreendidas, que parecem moldar o planeta, controlando o clima, o relevo, e até manipulando as condições atmosféricas. Esses mecanismos, de forma quase misteriosa, desincentivam a ocupação de certas regiões, o que levanta ainda mais perguntas sobre o propósito dessas torres e a verdadeira natureza do mundo. É como se o planeta tivesse sido feito para nós, mas, ao mesmo tempo, essas torres negras parecem nos controlar de formas que ainda mal entendemos.'
Ou seja, nós somos os Pets de alguém? Ou estamos num aquário de tamanho planetário? Que interessante, isso só me deixa mais excitado sobre aquela estrutura que fica no horizonte dessa aldeia.
'Era Divergente: 40.000 a.C. até 10.000 a.C.
Serei breve. Nesse período, diversas raças já haviam formado pequenas cidades e reinos que começaram a se desenvolver comercialmente, inclusive criando sistemas financeiros e econômicos. Porém, relações amistosas eram raras. Cada raça buscava supremacia, e o resultado foi um tempo de caos, onde Humanos, Néfos, Chordás, Vilos, Gorfinos e Elflins lutavam entre si, buscando o extermínio de seus rivais. Menção honrosa aos Néfos, que eram os menos agressivos.
As guerras generalizadas duraram cerca de 30.000 anos, uma era de conflitos incessantes e filosofias divergentes, marcada por religiões diferentes e a imoralidade da ideia de raças superiores.'
'Era Comunal e Era da Iluminação (10.000 a.C. até 0 a.C.)
Essas duas eras juntas formam o Renascimento Cultural. A transição ocorreu devido a uma mudança global significativa. Em Turus, um dos continentes, pela primeira vez, registrou-se a união de duas raças diferentes. Nossa biologia, por algum motivo, permite a compatibilidade entre espécies, como Humanos e outras raças, que podem se reproduzir e gerar descendentes semi-férteis, apesar de serem biologicamente distintas.'
A paz em Turus surgiu justamente por essa compatibilidade. Durante uma guerra sem precedentes, o governante de Tissus, um estado que desejava a paz, propôs um casamento em massa entre espécies diferentes. Isso causou revolta inicialmente, pois muitos acharam a ideia absurda. No entanto, a proposta avançou quando o próprio governante se casou com uma humana do reino vizinho e rival. Essa união marcou uma mudança cultural profunda, e Turus se tornou o primeiro país unificado do mundo.
Com o tempo, uniões entre espécies diferentes se tornaram mais comuns, promovendo a paz e prosperidade global. Esse período também viu o surgimento da máquina a vapor, da energia elétrica e de suas aplicações até o seu final.
Agora faz total sentido. Por isso minha 'mãe' e meu 'pai', sendo tão diferentes morfologicamente, conseguiram me ter. Achei que era dimorfismo, mas não é. Abri um leve sorriso ao finalmente sanar essa dúvida.
Era do Cataclisma: de 0 a.C. até 100 d.C.
'Aqui vai uma passagem marcante de um livro da época:
(Foi numa noite aparentemente tranquila que o evento começou. Os céus de Áurea estavam claros, revelando um espetáculo de gases brilhantes. Então, sem qualquer aviso, o espaço além do planeta se agitou. Uma fenda se abriu na vasta escuridão do cosmos em uma explosão roxa aterrorizante, uma cicatriz de luz e energia que rasgava a nebulosa densa em que Áurea estava envolta, consumindo como uma ferida o esplendor noturno.
A explosão que se seguiu foi algo inédito para os habitantes de Áurea, e até mesmo para mim, que testemunhava. Uma onda de choque de energia pura se espalhou pelo sistema planetário, atingindo a atmosfera de Áurea com uma força devastadora. Os efeitos foram imediatos e catastróficos. A atmosfera do planeta foi ionizada em um instante, como se uma mão invisível a tivesse tocado, carregando-a com uma energia descontrolada. Toda a tecnologia que sustentava a vida no planeta foi desativada instantaneamente. As luzes se apagaram, os motores pararam, e as comunicações cessaram abruptamente.
Áurea, um planeta que se orgulhava de sua engenhosidade e progresso, foi mergulhado em uma escuridão total em questão de segundos.)
Esse evento, conhecido como "Rompimento dos Céus", não apenas interrompeu a vida cotidiana dos habitantes, mas também deu início a um período de caos e desespero. As cidades, antes conectadas e vibrantes, tornaram-se ilhas de sofrimento e confusão. Sem as tecnologias que garantiam sua sobrevivência, os habitantes foram forçados a retornar a métodos primitivos de subsistência enquanto tentavam entender o que tinha acontecido e sobreviver ao novo mundo em que se encontravam.
Por gerações, o Rompimento dos Céus ficou marcado na história de Áurea, moldando seu calendário. Teorias sobre o evento variavam de punição divina a desastre cósmico, mas a verdadeira causa do cataclismo permaneceu um enigma insondável. A única certeza era que o planeta e sua civilização haviam sido irreversivelmente alterados. O evento ocorreu no dia 9 de Zênite do ano 0.
Esse desastre deu início ao Primeiro Período de Inanição, marcado pela fome em massa, que durou 2.000 anos, durante os quais a tecnologia precisou ser reconstruída do zero. Muitas nações caíram, restando apenas o continente de Turus como centro de poder e civilização. Se as divisões raciais já haviam sido superadas, o abismo tecnológico e social que o Rompimento dos Céus criou entre os sobreviventes foi o suficiente para gerar uma nova era de dificuldades e isolamento.
"Sem palavras..."
'A Era Moderna, ou Contemporânea, abrange os 1.022 anos desde o Cataclisma. Vamos explorar esse período por partes, discutindo os países, suas histórias e as inovações que marcaram essa época recente. Atualmente, existem 34 nações, das quais apenas 12 se destacam como potências dominantes, influenciando as demais 22 a seguir suas diretrizes de ordem geopolítica. As nações proeminentes são: Hictia, Irlem, Florem, Loura, Ruzi, Ieser, Harlei, Domim, Cirus, Gaélia do Leste e Turus, distribuídas por quatro continentes.'
Não queria ser uma criança precoce, mas isso parece estar longe de acabar, muito conteúdo nesse grosso livro.
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