“O que diabos tá acontecendo?!” Mine exclamou, ainda tonto nos ombros de Addai, que mudou a forma como o carregava para ter melhor apoio.
Addai desviou de uma pessoa caída no chão e pulou nos bancos para evitar de colidir com demônios voando sem direção. Mine segurou sua respiração no momento que Addai quase escorregou ao pisar na mão de uma pessoa que estava no chão desacordada.
Recuperando o fôlego, Addai começou a explicar: “Tem Diabretes controlando as mentes dos humanos. Eles estão transformando as pessoas em aberrações sem forma,” enfatizou e Mine percebeu que uma das pessoas no chão havia perdido as feições e tinha apenas buracos onde seria a boca e os olhos. “Não olhe!” Addai asseverou e Mine fechou os olhos até que aquela criatura bizarra ficasse fora de seu campo de visão.
Como isso foi acontecer?! Mine não havia sentido nenhuma flutuação expressiva quando embarcou no trem ou antes na estação. Aquele acontecimento não fazia nenhum sentido, mas do que adiantava procurar sentido no meio daquele caos?
Mine sentiu os cabelos de seu pescoço arrepiar até a cabeça e abriu os olhos rapidamente. Sem mobilidade direito, Mine teve que usar o antebraço para aparar um feitiço que um Diabrete lançou contra eles. Por sorte, deu tempo de conjurar um escudo de mana antes que o ataque os atingisse.
“O que foi isso?!” Addai exclamou e Mine aparou mais um ataque, cerrando os dentes.
“Foque em levar a gente pro próximo vagão!” Mine respondeu, aumentando o diâmetro do escudo de mana.
Aquele cheiro forte e metálico penetrava nas narinas de ambos os jovens professores e, agora, possíveis sobreviventes. A paisagem era caótica o suficiente para que eles prestassem atenção em cada corpo sendo controlado mesmo após a morte, bem como a transformação grotesca de outros cadáveres em aberrações de carne.
O vagão estava com cheiro forte e podia-se sentir até mesmo o gosto da fumaça espessa no ar. Mine não sentia calor, talvez porque estivesse ainda entorpecido do breve cochilo ou porque a fumaça no ar não fosse de algo queimando, e sim de partículas de miasma suspensas no ar.
Algumas pessoas ainda conscientes no vagão corriam riscos ao lançarem feitiços no meio da névoa, atingindo os refletores de magia embutidos nos vagões, que ricocheteavam o único meio de contra-atacar os Diabretes que riam loucamente do desespero das pessoas. Outras tentavam escapar pelas janelas quebradas, apenas para cair no precipício, já que o trem parou no topo da linha férrea suspensa que dava vista para a encosta. O que restava era forçar o trem a andar mais alguns metros até chegar na ponta da plataforma, porém, para isso ser possível era necessário alcançar o vagão do comandante.
A corrida acidentada finalmente tinha chegado ao seu fim quando Addai alcançou a porta que dava acesso ao próximo vagão. Ele agarrou a maçaneta e abriu a porta com um impulso, fechando-a rapidamente assim que passaram por ela. Atrás deles, o grito das pessoas, das aberrações e dos Diabretes se misturavam em uma agonizante sinfonia.
Addai colocou Mine no chão e puxou a alavanca para trancar o vagão caótico para trás. Quando a manivela virou e o mecanismo de travamento funcionou, uma mulher nos trajes de escritório bateu na janelinha freneticamente enquanto gritava para eles abrirem a porta.
“A gente deixou alguém pra trás...” Mine suspirou, sentindo seu peito apertado.
“Não se engane,” Addai afastou Mine da porta enquanto a mulher ainda batia na janelinha.
A mulher interrompeu suas tentativas como se estivesse possuída e seus olhos viraram para trás quase na mesma velocidade que sua testa se encontrou com a janelinha. Uma pancada. Duas pancadas, a janela ficou suja do líquido carmesim que corria nas veias daquele pobre ser. Na terceira pancada Addai cobriu os olhos de Mine.
“Que doentio...” Addai murmurou, ainda cobrindo os olhos de Mine. “Venha, vamos para o próximo vagão. Este também não é seguro,” ele guiou Mine para virar-se e não ver a mancha na janelinha da porta.
“S-sim,” Mine assentiu e pegou na mão de Addai, deixando-o guiá-los.
Como se não bastasse as partículas de miasma suspensas, uma ilusão provocada pela mesma essência fazia com que o ambiente ficasse com um filtro arroxeado que, ao mesmo tempo que atrapalhava a visão, criava um belo contraste com a poeira de miasma que começava a ficar avermelhada em vez de escura como antes. Isso significava que eles estavam chegando cada vez mais perto da fonte da instabilidade e para a única direção que estariam minimamente seguros.
Felizmente, nenhum diabrete estava no caminho e a dupla conseguiu andar sem ter que tropeçar nos corpos estirados no chão.
O núcleo. Uma voz sussurrou para Mine, que se virou para ver quem era, mas não havia ninguém atrás dele.
“O que foi?” Addai perguntou.
“Nada,” Mine acenou.
Mas o tal “nada” continuava a sussurrar no ouvido de Mine como se fosse uma entidade onipresente. Está perto... você tem que ir pegá-lo. Você deve.
Essa voz deixou Mine de certa forma atordoado. Sua cabeça estava leve e pesada ao mesmo tempo, com a voz desconhecida ressoando perfeitamente em seus ouvidos e cérebro.
É uma maldição. Quebre-a. Pegue-a. A voz asseverou e Mine viu um ponto brilhante no horizonte como se ele pudesse ver o que havia atrás das ferragens do vagão. Ela está lá. Pegue-a. Exorcize-a.
“Ei, tá tudo bem?” Addai parou e deu um tapinha nas bochechas de Mine, que parecia ainda estar em transe.
Mine piscou e sacudiu a cabeça. “Eu tô bem, é que... argh...” ele levou uma mão para a testa, sentindo uma dor de cabeça aguda irradiar por toda a sua cabeça. “É só... uma dor de cabeça...” ele murmurou, sentindo seus membros vacilarem como se tivessem sido deslocados, mas tinha certeza de que tudo estava no lugar certo.
“Tudo bem. Pule nas minhas costas como no outro dia,” Addai se agachou, oferecendo espaço para Mine subir em suas costas.
“Eu consigo andar ainda,” Mine sorriu. “E quem vai cuidar da sua retaguarda?” ele posou orgulhosamente, invocando o escudo de mana.
“Você tem razão, só não se esforce demais,” Addai levantou-se e sorriu.
Mine desativou o escudo e cruzou os braços. “Olha só quem tá preocupado comigo...” provocou e Addai bufou em resposta.
Quando iam retomar a sua caminhada, um feixe de luz quase queimou as pupilas de Mine, mas felizmente ele cobriu os olhos a tempo. Então, um som alto e estridente estourou em seus ouvidos, seguido de um tremor no chão que fez com que a dupla de jovens professores perdesse o equilíbrio.
O vagão anterior caiu dos trilhos e entortou o vagão em que eles estavam!
Addai agarrou a mão de Mine e correu até a porta do próximo vagão que, lamentavelmente, estava fechada. Addai bateu na porta, em busca de pontos frágeis, mas aqueles monstros de ferro eram resistentes o suficiente.
“É melhor você se apressar,” Mine suou frio ao ouvir os Diabretes voarem ali perto e alguns colidirem contra as poucas janelas ainda intactas.
Quando Addai cerrou os punhos e suas pupilas contraíram-se, eles ouviram uma voz vir do outro lado da porta.
“Jesus!” A pessoa exclamou ao ver a dupla e se assustou com Addai. “Ah! Vocês dois estão limpos! Entre rápido!!”
A porta foi destrancada e ambos os jovens professores entraram no vagão antes que um Diabrete pousasse dentro do vagão parcialmente destruído. Quase que Mine não conseguiu passar porque suas pernas cederam pela emoção e Addai teve que carregá-lo como se ele fosse de pelúcia.
O vagão que entraram parecia seguro, embora os Diabretes do lado de fora os lembrassem da situação em que se encontravam. A mesma pessoa que abriu a porta a fechou assim que viu mais e mais Diabretes pousarem, prontos para arrombar a porta destrancada. Mine observou a porta e percebeu que, diferentemente da que tinha no vagão anterior, essa não tinha o sistema de travamento, porém, a pessoa, ou melhor, jovem rapaz que os salvou tinha um instrumento peculiar que funcionava como uma nova tranca.
“Que sorte ter isso comigo,” a pessoa suspirou aliviada ao terminar de trancar a porta com o instrumento peculiar. “Ah,” ele virou-se para Mine, “usamos essa coisinha no hospital para quartos de pacientes em surto violento,” ele explicou e virou-se para a dupla. “Meu nome é Nakamura, sou um humilde médico do hospital central da cidade. Prazer em conhecer vocês dois!” Ele sorriu e as olheiras embaixo dos olhos pela falta de sono indicavam que seu estilo de vida era uma bagunça.
“Obrigado, senhor. Meu nome é Addai e este é Mine, somos professores da Universidade de Magia,” Addai pousou a mão nos ombros de Mine, que acenou para o jovem médico.
“Oh! Que maravilha! Estamos salvos!” o médico comemorou, aliviado.
Enquanto o Sr. Nakamura e Addai conversavam, Mine observou as pessoas daquele vagão. Alguns estavam assustados e outros, em completo estado de choque. O filtro roxo do ambiente destacava os ferimentos de cada um e as marcas da luta travada para deixar aquele vagão minimamente seguro.
Com o vagão anterior prestes a desabar, os sobreviventes estavam angustiados, mas não tinham para onde ir já que o vagão seguinte estava infestado de Diabretes que zombavam deles na janelinha da porta.
Mine apertou os olhos e viu alguém na janelinha também. Tinha sua mesma estatura e suas feições lembravam dele mesmo de alguma forma. Quando piscou novamente, seus arredores ficaram levemente mais nublados e a pessoa além da porta ficou mais clara.
Use-me! A mesma voz de antes gritou na mente de Mine e ele viu que a pessoa além da porta o fitava fervorosamente, então Mine logo virou o olhar.
A voz ficava cada vez mais alta e perturbadora, tão perturbadora que o filtro ambiente antes arroxeado começou a ficar num amarelo ouro. Mine ajoelhou-se e cobriu os ouvidos quando a voz intensificou a voz e a frequência que chamava a atenção de Mine.
Sua cabeça doía. Suas mãos estavam em chamas. Suas pernas falhavam cada vez mais. Sua mente já não funcionava e a voz o envolveu por inteiro num só grito:
USE-ME, MINE!!!
Mine assustou-se quando sentiu mãos segurarem-no pelos ombros.
“Mine!!”
Addai o fitava com os olhos arregalados e mãos levemente suadas. Ele estava visivelmente preocupado e segurava os ombros de Mine com leve força até que Mine lentamente o fitou, com os olhos nublados. Mine estava estranhamente leve e bem apesar de sua aparência dizer o contrário. Ele estava mais pálido do que o normal e tinha olheiras sob os olhos, talvez devido à exposição ao miasma nos vagões anteriores. Mas o que deixava Addai ainda mais confuso era o desenho de diamantes nas pupilas de Mine.
Vou me certificar de que você me use então. Aquela mesma voz ameaçou.
Uma mão invisível começou a rasgar a pele de Mine, quebrando-a como se fosse feita de argila fina e seca. Por mais perturbador que esse efeito fosse, não era visível para as pessoas além de Mine que não ouvia o que quer que Addai estava dizendo com muita urgência e preocupação. Mine tinha pouco tempo até que a voz o arrancasse dali, então, erguendo a mão e alcançando o rosto nublado de Addai, ele sorriu:
“Proteja as pessoas,” Mine disse e acariciou a bochecha de Addai enquanto sua visão ia ficando cada vez mais nublada e seu corpo, cada vez mais leve.
Mine levantou-se lentamente e por mais que Addai tentou agarrá-lo, ele foi repelido como ímãs de polaridades iguais se encontrando. O filtro ambiente do vagão antes arroxeado, transformou-se em ouro puro com tonalidades alaranjadas, assemelhando-se com o famoso Golden Hour.
Um, dois, três passos até estabilizar seu corpo. Mine iniciou sua caminhada.
Ironicamente, a música tocando nos alto falantes do vagão era uma valsa vívida, talvez algo de Vivaldi. Era dramática e agitada. Uma valsa solitária para o louco que caminhava em direção à morte.
As pessoas passavam apressadamente pelo louco, correndo e evitando olhar para ele que se aproximava cada vez mais da porta do próximo vagão. Ele ignorou as tentativas e puxões que recebeu de algumas mãos, as vozes estressadas e as lamentações para que ele não abrisse aquela porta. Por fim, uma grande sombra apareceu na sua frente, mas um pequeno toque na tal sombra fez com que ela se dissipasse e chuva de partículas douradas caíram do teto do vagão.
Algo rompeu a pele das costas de Mine, rasgando-a como algo que emergia de um casulo. Um véu leve e fino cobriu seus ombros e uma brisa amena fez com que seu cabelo começasse a flutuar no ar como se ele estivesse debaixo d’água.
Seu rosto coçava e suas mãos queimavam. Seus pés ficaram totalmente leves, assim como seu corpo.
Quando finalmente alcançou a porta, aquela criatura brilhante ainda estava lá e parecia sorrir. Mine tocou na porta e a criatura fez o mesmo. O ferro duro e maciço desintegrou-se como poeira com apenas um toque.
Sejamos um só, pequeno Cronos. A criatura na frente de Mine disse alegremente e tocou em seu rosto. A pele de Mine, outrora cor de pêssego, rachou como tinta guache espessa e seca, revelando apenas um brilho dourado tal qual o da criatura que lentamente se incorporava nele.
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