“Aaaafr,” bocejei, o som se dissolvendo na melodia suave dos parrios, as criaturas aladas de Áurea que voavam em círculos distantes, suas asas cintilando sob o brilho múltiplo do céu. O calor acolhedor do terceiro sol, Nadir, infiltrava-se pela barraca de madeira, tingindo o ambiente com uma tonalidade avermelhada suave, enquanto eu ainda sentia o frescor do ar montanhoso da noite, como se estivesse envolto em um abraço frio, mas gentil.
Deitado em meu colchão simples, à beira da cama dos meus pais, olhei para o teto de madeira e tecido. O silêncio predominava. Era raro a casa estar assim, sem os sons habituais da minha irmã tagarelando ou das conversas baixas dos meus pais. O contraste era quase estranho. Talvez eles já tivessem começado o dia? Eu dormi demais? Um suspiro preguiçoso escapou enquanto esfregava os olhos.
"Ah... é claro que sim..." murmurei, sentindo uma leve onda de culpa por acordar tarde, mas também abraçando a preguiça momentânea. A cama vazia parecia mais um convite para voltar a dormir, mas os raios de Nadir tornavam isso impossível.
Me levantei devagar, cada movimento arrancando pequenos estalos de meus ossos e articulações. “Crescer não devia doer tanto...” pensei, balançando os braços como se pudesse espantar a rigidez. Do canto do quarto, minhas botas marrons esperavam, jogadas sem cerimônia na noite anterior. As calcei e senti o couro abraçar meus pés. Logo depois, vesti minha roupa habitual: a camisa de linho cinza e as calças resistentes.
Um passo à frente, parei diante do velho espelho no canto da barraca. A superfície rachada refletia uma versão ligeiramente distorcida de mim, mas o suficiente para ver os detalhes. Meus olhos azuis, herdados de minha mãe, brilhavam intensamente sob a luz que se espalhava pela barraca, enquanto meu cabelo, loiro como o trigo, insistia em desobedecer, com mechas teimosas que apontavam para direções aleatórias. Penteei-o com os dedos, sem muito sucesso.
Saí para o mundo exterior. O ar da manhã estava vivo com sons e cheiros. O aroma de terra e madeira recém-cortada misturava-se ao perfume adocicado das frutas que os Néfos carregavam em cestos sobre as costas. Suas peles azuladas, com listras negras reluzentes, dançavam sob os primeiros raios do dia. Havia uma energia vibrante em cada movimento deles, uma coreografia espontânea que fazia a vida na vila parecer mais… viva.
Observei-os por um instante, sentindo uma ponta de inveja da agilidade com que trabalhavam. Os Néfos eram pequenos, mas velozes e cheios de vida. Um grupo de jovens Néfos brincava ao redor de uma árvore gigante, suas risadas ecoando como sinos agudos, enquanto corriam em círculos com caudas balançando.
Segui em direção à praça central, onde a vida cotidiana fervilhava. O cheiro de pão fresco atingiu minhas narinas antes mesmo de chegar ao restaurante de Nara. Meu estômago roncou, exigindo atenção, e me apressei.
Quando entrei na padaria, o calor do forno e o cheiro doce de especiarias minerais no ar me envolveram como um abraço. Nara, com seu rosto iluminado por um sorriso, me recebeu de braços abertos. “Bom dia, Kiel! Dormiu bem?”
“Bom dia, Senhora Nara. Dormi bem, só que acordei um pouco tarde,” respondi, pegando um pão ainda quente de suas mãos. “Acho que dormir um pouco a mais não faz mal, né?” brinquei.
"Você ainda tem muitos anos para se preocupar com o tempo," ela riu, "Aproveite enquanto pode."
Agradeci e me sentei perto da janela, onde podia observar a vila em movimento. Enquanto mordia o pão macio e doce, senti uma onda de gratidão tomar conta de mim. O contraste entre a suavidade do alimento e as memórias das vidas selvagens e caóticas que me perseguiam em sonhos era quase surreal. Era bom, por uma vez, sentir-se como alguém importante e relaxado, que não precisa de esforço.
E então, como que para quebrar minha paz momentânea, Nunu, o néfo mais robusto, musculoso e alto da vila, entrou como uma tempestade. “Nunu te cumprimenta, Kiel! Tu gosta da comida de mãe?” ele perguntou, sua voz cheia de entusiasmo e orgulho juvenil.
Olhei para ele com um sorriso, admirando o quão grande ele era — especialmente para um Néfo, já tenho a altura de um, mas Nunu tem o tamanho dobrado em relação aos Néfos normais. “Gosto, sim, Nunu. Sua mãe é uma excelente cozinheira.”
Ele sorriu ainda mais, os olhos brilhando. “Gosto de tu, Kiel. Tu é bom amigo e fala muito bem.” E assim, saiu tão rápido quanto havia chegado.
De volta aos meus pensamentos, mordi o pão novamente. Áurea, com seus quatro sóis, sempre me fascinava. O mundo seguia seu próprio ritmo, e o calendário local, com seus meses divididos pelas estrelas Zênite, Alvora, Nadir e Poente, sempre me parecia… perfeitamente organizado. O ciclo das estações, sincronizado com a dança celestial desses sóis, regia a vida com precisão. Cada ano tinha 360 dias exatos, e cada estação durava 90 dias — simples, mas quase poético. Por exemplo, o ano começa em Zênite, dia 1 de Zênite, e termina em 90 de zênite. Depois temos Alvora, que dura também 90. Logo após, tem Nadir, o inverno, que também dura 90. E no fim do ano, há Poente, com 90 dias.
Dei mais 3 mordidas.
O calendário de Áurea funciona assim: 1/Zen/xx/xxxx. Hoje é 3/Nad/58/3033. Áurea, em seu percurso pelo sistema solar, troca naturalmente de estrela ao longo do ano, como se navegasse entre faróis cósmicos, sua trajetória misteriosa deixando cientistas e estudiosos perplexos por gerações.
Terminei o último pedaço de pão doce, o sabor se desfazendo lentamente em minha boca.
"Tchau, Nara! Vou procurar meus pais!" Gritei, com uma animação que eu mesmo não sentia, levantando-me da cadeira.
A padaria estava impregnada com o cheiro de açúcar caramelizado e pão recém-assado. Acenei uma última vez para Nara, que me observava com seus grandes olhos atentos. Ao sair, o sol de Nadir me envolveu, aquecendo minha pele como uma manta de energia viva. O calor era familiar, reconfortante, como se as estrelas em Áurea nunca deixassem de observar e alimentar a vida embaixo de seus raios.
A vila estava despertando, os sons de conversas e risos se misturando no ar, uma cacofonia dissonante, ainda que de certa forma nostálgica. As ruas de terra batida pareciam mais movimentadas agora, com néfos em suas rotinas diárias. Vi Nira e Nolo, dois irmãos jovens néfos, carregando carrinhos de madeira repletos de frutas de tons azulados, cujas cascas brilhavam sob a luz de Nadir.
Passei por Nilo, um néfo mais velho, que martelava em uma cabana desgastada. Ele acenou para mim com sua mão calejada, e, como sempre, retribuí, fingindo uma simpatia que eu mal conseguia sentir. Tenho tentado me conectar mais com eles. Ganhar alguns pontos sociais tem sido minha meta — afinal, eles certamente perceberam como eu, o pequeno Kiel, tenho me tornado mais 'aberto' nos últimos meses. Isso é forçado, mas é minha tentiva de criar empatia.
Continuei andando, sentindo o ar impregnado com o cheiro fresco das coníferas. Cada respiração parecia trazer mais vida, mas também uma sensação crescente de inquietação que eu não conseguia identificar.
Cheguei à praça central. As pessoas iam e vinham com propósito. Cumprimentei alguns aldeões que passavam, rostos familiares.
Meus olhos vagaram até o horizonte. Na borda da vila, avistei duas figuras ao longe, inconfundíveis, mesmo à distância. Meus pais, Aidan e Ari, estavam no topo de uma colina, em um pagode no local de festas dos Néfos
A árvore... olhei para onde eu costumava sentar. Onde ninguém mais ia. Uma vez, aquele lugar era meu refúgio, onde eu observava a grande torre ao longe, sua silhueta impondo-se sobre a paisagem. Mas agora, não tinha niguem sentado aqui, ja que eu era o único.
De repente, um néfo passou por mim, tirando-me de meus pensamentos. Ele acenou alegremente, e eu retribuí mecanicamente.
Mas algo me fez parar. O ar ao meu redor parecia subitamente mais pesado, como se uma presença invisível estivesse me observando. Meu coração acelerou, sem motivo aparente. Virei para olhar, e foi então que o vi.
Uma idosa frágil e curvada, estava tentando empurrar um tronco para debaixo da árvore onde eu costumava sentar. Ela era pequena, seus movimentos lentos e hesitantes. "Como ela passou despercebido por mim?" pensei automaticamente. Fiquei observando, indeciso se deveria ajudá-la ou não. Algo nos seus olhos chamou minha atenção: eram dourados. Brilhavam com uma intensidade quase sobrenatural, como o sol de Alvora.
Um arrepio percorreu minha espinha. Néfos não tinham olhos dourados.
A velha levantou o olhar e me viu, e naquele momento, senti como se ela estivesse enxergando cada segredo, cada falha, cada dúvida escondida em meu ser.
"Jovem, me ajude," sua voz soou. "Quero sentar confortavelmente neste local."
Hesitei. Havia algo na sua voz que me fez sentir pequeno, irrelevante. Mas minha mente racional tomou o controle. "Desculpe, senhora. Estou com pressa. Preciso ver meus pais." Respondi, tentando me afastar. Mas ela não se moveu, e, em vez disso, avançou em minha direção lentamente.
Virei-me para continuar, mas senti um peso estranho me prender. Olhei para baixo, e a mão da velha estava em meu braço, segurando, firme, mas não agressiva. Quando nossos olhos se encontraram novamente, senti como se estivesse sendo expurgado, com muito medo daquela luz.
"Você é, no fim de tudo, uma sombra" disse ela, sua voz como um trovão distante. "Sua visão está nublada pela ambição egoísta. A ruína aguarda aqueles que se perdem no orgulho. Seu valor não está em status ou reconhecimento superficial, mas na essência verdadeira do que você é. Não permita que sua alma apodreça como uma fruta que nunca amadurece. Sua escolha me decepcionou."
Cada palavra cortava fundo, como lâminas afiadas rasgando camadas da minha identidade. Quis gritar, mas minha voz se perdeu na garganta. Meu corpo estava paralisado sob o peso das suas palavras, meu coração batendo descontroladamente.
"Kiel? O que você está fazendo?" A voz de Nelco cortou o ar como uma lâmina, me puxando de volta à realidade. Ele estava parado ali, olhando para mim com uma expressão curiosa.
"Eu... estava conversando com o senhora..." Olhei ao redor, procurando a velha, mas ela havia desaparecido. Não havia ninguém, apenas eu e Nelco.
"Que senhora? Você estava empurrando esse tronco sozinho." A voz de Nelco estava cheia de ceticismo, e ele balançou a cabeça. "Você deve estar sonhando acordado, criança. Talvez esse seu cabelo grande esteja atrapalhando seu cérebro." Ele riu, antes de seguir seu caminho.
Fiquei ali, parado, ainda tentando processar o que havia acontecido.

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