“Aaaafr,” bocejei, enquanto o som dos parrios — mamíferos alados de Áurea — ressoava suavemente ao longe. A luz dourada do sol 4 sol de Áurea, Nadir, já invadia o quarto, seus raios filtrando-se pelas brechas da barraca alta feita de madeira. O calor aconchegante me envolveu, um contraste com o frescor matinal ainda presente no ar montanhoso.
Eu estava deitado em um colchão simples ao lado da cama dos meus pais. Eles sempre me deixavam dormir na cama até minha irmã chegar. Ter irmãos tem seus pontos negativos.
Essa manhã, a barraca estava silenciosa e vazia. Esfreguei os olhos para afastar o sono e sentei-me lentamente. Olhei em volta, notando a ausência deles. “Devo ter acordado tarde”, pensei alto, sentindo um misto de culpa e preguiça.
Levantei-me com um pouco de dificuldade, os músculos ainda rígidos da noite de sono. Estiquei os braços acima da cabeça, ouvindo os estalos satisfatórios das articulações. Caminhei até o canto do quarto, onde minhas botas marrons estavam jogadas. Coloquei-as rapidamente, sentindo o couro macio se ajustar aos meus pés. Despi o pijama amassado e vesti minha roupa do dia: uma camisa de linho verde e calças de tecido resistente, adequadas para o conforto e durabilidade.
Antes de sair, parei em frente ao espelho antigo que tínhamos. A superfície estava levemente embaçada, mas pude ver meu reflexo com clareza suficiente. Meus olhos Azuis, herança de minha 'mãe', brilhavam com a luz do sol, e meu cabelo Loiro trigo estava bagunçado, com mechas caindo sobre minha testa e outras levantadas. Penteei-o com os dedos, tentando reduzir a entropia, dar alguma ordem ao caos.
Saí da barraca e fui recebido pela visão vibrante da vila. As barracas e cabanas de madeira estavam dispostas em um padrão irregular, seguindo a topografia do terreno. No centro da vila, uma grande praça de terra batida servia como ponto de encontro para todos.
Os néfos já estavam atarefados, movimentando-se com sua energia habitual. Esses pequenos humanoides símios, com suas peles azuis cobertas por listras negras e caudas ágeis, eram uma visão comum há anos. Alguns carregavam cestos cheios de frutas e vegetais, enquanto outros trabalhavam na manutenção das estruturas da vila.
Observei-os por um momento, admirando sua diligência. Um grupo de néfos jovens brincava perto de uma árvore grande, rindo e correndo em círculos.
Comecei a caminhar em direção à praça central, sentindo o chão de terra firme sob meus pés. O aroma de pão fresco assando e especiarias minerais no ar me trouxe à lembrança que eu ainda não tinha tomado café da manhã. Meu estômago roncou em resposta, e me apressei para o restaurante de Nara, onde sabia que encontraria algo para começar o dia.
Ao chegar na praça, cumprimentei alguns aldeões que passavam. Cada rosto conhecido era um lembrete de que meu mundo é reduzido.
Dentro da padaria, o calor e o cheiro doce me envolveram. Dona Nara, com um sorriso caloroso, me recebeu com um aceno. “Bom dia, Kiel! Dormiu bem?” ela perguntou, enquanto tirava uma fornada de pães do forno.
“Bom dia, Dona Nara. Dormi, sim, só acordei um pouco tarde,” respondi, pegando um pão ainda quente. “Mas isso não vai me matar” acrescentei com um sorriso.
Ela riu suavemente. “Jovens precisam de sono. Tome seu café da manhã e aproveite o dia.”
Agradeci e me sentei em uma das mesas rústicas, observando a vida na vila continuar lá fora.
Enquanto mordia o pão macio e doce, senti uma onda de gratidão do meu cérebro pela comida fofa e bem feita. Tão confortável em comparação com minhas vidas bestiais, me sinto um rei. Espero que isso nunca acabe, pensando em tempo-
“Nunu te cumprimenta Kiel! Tu gosta da comida de mãe” disse ele com grande entusiamos. Nunu é um Néfo maior que o normal e muito fortão, jovem e no ápice da adolescência.
“Oi, Nunu, de fato, essa comida é excelente e eu não tenho queixas” Respondi, olhando para o Néfo alto — em comparação a mim que sou uma criança.
“Gosto de tu Kiel, você é muito amigo” disse enquanto saia andando.
Pensando em tempo, eu acho Áurea bem peculiar. Parei, mordi o pão e continuei o raciocínio: esse mundo tem 4 sóis cujos nomes são Zênite, Alvora, Nadir e Poente, sendo suas cores estelares, respectivamente, Azul, Amarela, vermelha e amarela. Sendo por isso que Zênite é a mais quente, por ser azul, e o verão desse mundo, quando as atividades biológicas são máximas.
Por isso criaram um calendário muito bem feito e simples: cada ano possui exatamente 360 rotações planetárias de 24 horas, em que cada mês tem o nome de sua respectiva estrela. Por exemplo, o ano começa em Zênite, dia 1 de Zênite, e termina em 90 de zênite. Depois temos Alvora, que dura também 90. Logo após, tem Nadir, o inverno, que também dura 90. E no fim do ano, há Poente, com 90 dias.
Dei mais 3 mordidas.
O calendário então funciona assim: 1/Zen/xx/xxxx. Hoje é 3/Nad/ 58/3033. Isso acontece, porque, Áurea navega pelo sistema solar… trocando estranhamente de estrela naturalmente ao longo do ano em seu trajeto.
Comi o último pedaço do pão doce.
“Tchau Nara, vou procurar meus pais!” Exclamei alto para ela escutar enquanto levantava da cadeira.
Saí da padaria depois de acenar uma última vez, sentindo o calor reconfortante do sol Nadir acariciando minha pele, vitaminas para mim né? A vila está mais ativa agora, o som dos risos e conversas se ondulam no ar, criando uma sensação familiar e não confortável por ser cacofônica.
Caminhando pelas ruas de terra batida, observando os néfos em suas atividades. Nira e Nolo, dois néfos jovens, carregam carros de madeira com frutas coloridas em tons azuis. Passo por Nilo, um néfo mais velho, que está consertando uma das cabanas de madeira. Ele acena para mim com sua mão calejada, e eu retribuo o gesto, falsamente.
Decidi ultimamente ganhar pontos sociais com as pessoas, isso me favorece muito afinal. Eles com certeza perceberam que o pequeno Kiel se tornou mais 'aberto' e receptivo nos últimos meses.
Continuo minha caminhada, agora os aromas de coníferas penetrando meu sentido.
Chego à praça central, onde a atividade é mais intensa. As pessoas se movimentam com propósito, mas há uma sensação de calma e ordem em tudo. Cumprimento alguns aldeões que passam, cada rosto conhecido trazendo uma sensação de mais créditos adquiridos.
Enquanto me aproximo da borda da vila, meus olhos captam algo ao longe, algo que talvez outras pessoas não percebam com tanta facilidade. Meus pais, Aidan e Ari, estão na colina, suas figuras discerníveis mesmo à distância, numa espécie de pagode.
Olhei para o gramado embaixo da árvore em que eu costumava sentar para olhar a grande e magnânima torre. Vazio, depois de tanto tempo ninguém senta mais lá. Eu era o único que ficava lá.
Outro Néfo passou, e eu me distrai por um instante.
Outros Néfos passaram alegremente acenando para mim, fiz de volta.
Tentei respirar, mas… senti um ar pesado. Uma sensação angustiante tomou meu coração que começou a bater depressa sem motivo aparente. Virei para ver um idoso tentando empurrar um tronco para debaixo da árvore onde eu costumava sentar para olhar a grande e magnânima torre.
Curioso, desde quando ele escapou dos meus sentidos? Fiquei pensando se valia realmente a pena gastar minha energia com ele, se deveria dar atenção e ajudá-lo. Ele parecia frágil, os movimentos lentos e pesados, mas seus olhos... havia algo diferente neles. Eram dourados, brilhantes como o sol de Zênite.
Senti um arrepio percorrer minha espinha. "Desde quando os néfos têm olhos dourados?" Pensei, tentando lembrar de alguma história ou lenda que explicasse aquilo. O velho levantou o olhar e nossos olhos se encontraram. Um calafrio percorreu meu corpo, como se ele estivesse vendo através de mim, desnudando minha alma.
"Jovem, me ajude, eu quero sentar confortavelmente neste local," disse ele com uma voz que parecia ecoar de tempos antigos.
Eu hesitei, algo no tom de sua voz me fez sentir pequeno, insignificante. Mas meus pensamentos racionais rapidamente assumiram o controle. "Senhor, me desculpe, estou com pressa. Quero ver meus pais quanto antes, me desculpe." Retruquei, querendo evitar ajudá-lo. Mesmo assim, ele veio até mim.
Eu me virei, tentando ignorá-lo e seguir em frente. Porém, senti um peso me agarrar. Um toque firme, mas não agressivo. Olhei para baixo e vi a mão dele segurando meu braço. Ele me puxou para mais perto e seus olhos dourados penetraram os meus.
"Eu já esperava por isso. Você está sendo egoísta, criança. Sua visão está deturpada, não permita que sua amargura seja um espinho para os outros. Cultive aqueles que precisam e aspire a ser alguém melhor. Seus status sociais não têm valor se não forem enraizados na verdade. Mude essa mentalidade reprovável. Permita que sua árvore interior floresça, amoleça seu coração endurecido e deixe que a beleza da vida e da existência penetre sua alma como a chuva que nutre o solo árido. A ruína aguarda aqueles que persistem em pecar e falhar consigo mesmos e com os outros. Você me decepcionou profundamente. Não menospreze nem desaponte aqueles que depositam sua confiança em você. Ou correrá o risco de ver sua vida como um fruto que nunca amadurece e vai apodrecer."
Cada palavra doía, como se fossem flechas atingindo um alvo profundamente enterrado em meu ser. Meu coração bateu mais rápido, minha respiração ficou pesada. Eu queria gritar, afastá-lo, mas estava paralisado, preso sob o peso de suas palavras.
"Kiel? O que você tá fazendo?" A voz de Nelco quebrou o feitiço. Ele estava olhando para mim, apoiando-se na bengala que havia adquirido recentemente.
"Eu tava conversando com esse senhor..." Procurei por ele, mas não o encontrei. Olhei em volta, mas não havia ninguém além de nós dois no gramado, me deixando em profundo desconforto.
"Ele... ele pediu que eu ajudasse a carregar o tronco para usar como banco," respondi, a voz trêmula, confusa.
"Não, você pegou do nada e começou a empurrá-lo. Foi o que vi. Você parou do nada e depois começou a carregar o tronco. Seus olhos estavam estranhos, juro. Criança esquisita, deve ser esse seu cabelo grande te impedindo de pensar. Se fosse meu filho, já tinha cortado fora," retrucou Nelco, seguindo em frente, balançando a cabeça.
Eu fiquei ali, parado, tentando entender o que tinha acontecido. Quem era aquele idoso? Por que suas palavras me afetaram tanto? E por que Nelco não o viu? As perguntas martelavam em minha mente, e uma sensação de inquietação se instalou em meu coração, eu simplesmente não quero pensar sobre isso.
Olhei mais uma vez para a colina onde meus pais estavam, ainda longe.
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