Comecei a caminhar em direção ao pagode, o caminho sinuoso se estendendo como uma trilha de contemplação. À medida que me afastava da praça central da vila, os sons animados dos Néfos diminuíam, dando lugar ao silêncio tranquilo do planalto. O ar ali parecia diferente, mais rarefeito, como se a própria natureza estivesse em estado de meditação. As árvores ao redor se tornavam mais densas, formando um manto verde que filtrava a luz do sol, projetando sombras suaves no chão. Cada passo ecoava em minha mente, amplificando o sentimento de solidão que, mesmo cercado de vida, nunca me abandonava.
A trilha subia lentamente pela paisagem montanhosa, serpenteando em meio a nascentes cristalinas que corriam por entre rochas esculpidas pelo tempo. A água, límpida e calma, refletia o céu tingido de verdes e azuis, criando um cenário pitoresco e quase irreal. O pagode erguia-se no horizonte, uma estrutura imponente de pedra e madeira, coroada por entalhes que pareciam contar histórias esquecidas. A beleza serena da paisagem contrastava com a turbulência dos meus pensamentos, que voltavam insistentemente ao encontro com a velha Néfo de olhos dourados. Suas palavras enigmáticas ainda ressoavam na minha mente, despertando uma inquietação que eu não conseguia silenciar. Quem era ela? Uma figura de uma vida passada, talvez, ou um simples reflexo de minha própria confusão?
A fadiga começou a pesar nas minhas pernas, e me agachei, respirando fundo enquanto olhava para o céu. Eu sabia que não era uma criança comum. Havia algo em mim, algo antigo e complexo, que me afastava dos outros. A reencarnação era um fardo, carregado de memórias confusas e emoções que eu mal conseguia entender. Estar entre as pessoas da vila me fazia sentir um estranho, mesmo entre aqueles que se importavam comigo. As relações se tornaram transações, cada uma calculada e pesada, como se fosse impossível simplesmente… ser. Mudar isso parecia uma tarefa monumental.
Suspirei, levantando-me com esforço, e continuei minha caminhada até o pagode.
Quando cheguei, senti uma paz gradual me envolvendo, apesar da leve inquietação que ainda pulsava em meu peito. A estrutura era magnífica, suas colunas de pedra cobertas por entalhes intrincados, e o telhado de madeira escura projetando sombras acolhedoras. O lugar exalava uma tranquilidade surreal, quase sagrada, como se fosse um portal para algo além da compreensão imediata.
Subi as escadas de pedra com passos lentos, e lá estavam Aidan, Nene e Nina. As Néfos meditavam no centro do pagode, uma suave aura energética emanando delas. Aidan, sempre descontraído, estava encostado em um banco ornamentado, sorrindo, quando me viu.
"Oi, pai", disse, aproximando-me devagar. "O que vocês estão fazendo aqui?"
"Aqui é tranquilo e aconchegante", explicou Aidan, puxando-me para um abraço caloroso. "Achamos que seria um bom lugar para passar a manhã."
Abraços. Nunca entendi o motivo. Por que as pessoas insistem nisso? Sinceramente, é algo que me desgasta. Qual a utilidade? Será que realmente tem algum propósito relevante?
"Entendi", murmurei, tentando disfarçar o desconforto, enquanto minha mente procurava uma razão lógica para aquela interação. "Pode me soltar?" pedi finalmente, quando o abraço se arrastou por mais tempo do que eu podia suportar.
"Claro", respondeu ele, olhando-me de cima antes de me soltar.
Continuei andando, meus olhos vagando até Evelyn, que brincava perto da sacada ao lado da minha 'mãe'. Ambas estavam perto da proteção contra quedas, alheias ao que se passava.
Evelyn, com apenas dois anos, ainda lutava para formar palavras. Não posso culpá-la — eu também fui um desastre nessa idade.
Quando me viu, ela correu em minha direção, balbuciando algo incompreensível. "Maim!" exclamou, chamando minha atenção.
Forcei um sorriso, mas senti a familiar pontada de ressentimento. Desde que ela nasceu, a atenção que costumava ser toda minha agora era dividida, e, mais do que nunca, pendia para ela. Confesso: é inveja. Eu gostava de ser o centro de tudo.
"Usurpadora de pais", pensei enquanto ela se agarrava às minhas pernas. Mas, por fora, apenas segurei seus bracinhos delicados.
Finalmente, meus olhos encontraram Ari. Ela observava com um sorriso suave, e quando nossos olhares se cruzaram, acenou com gentileza, uma expressão de calor e aceitação em seu rosto prateado. Seus olhos azuis brilhavam como estrelas, como sempre.
Enquanto caminhava até ela, não pude evitar pensar sobre minha família. Havia um distanciamento que ainda não conseguia superar, mas momentos como este faziam com que esse muro invisível entre nós se dissolvesse, mesmo que lentamente. Aceitar a nova dinâmica não era fácil quando você se lembra de como as coisas eram.
Senti meu rosto esquentar ao perceber o quanto me sentia vulnerável. "Estou ficando mole", pensei, um sorriso tímido ameaçando escapar.
"Bem-vindo de volta à sua família", disse Ari, sua voz calma e alegre quebrando o silêncio. "É bom ver você sorrindo. Como foi sua manhã?"
"Foi… complicadamente interessante", respondi, evitando mencionar a velha de olhos dourados. "Mas agora estou bem", completei.
"Fico feliz em ouvir isso", disse ela, inclinando a cabeça levemente, de um jeito que sempre me fazia sentir em casa. "Vamos aproveitar o tempo juntos. Este lugar é especial."
Fiquei ao lado dela, observando Evelyn brincar com cubos e bolas de borracha. Meu olhar, porém, acabou desviando para as Néfos no centro da sala, minha curiosidade crescendo.
Notando meu interesse, Ari sorriu de modo compreensivo. "Elas estão usando magia, Kiel. Nina está verificando a mente de Nene."
"Como assim?" perguntei, intrigado.
"Todos nós temos uma espécie de ‘mundo interior’ que reflete nossa mente e consciência", explicou Ari, com uma profundidade inesperada. "Quando entramos em um estado de êxtase, mesmo acordados, podemos explorar esse espaço e nosso potencial, entendendo o mundo ao nosso redor de maneiras que nem sempre percebemos. É onde aprendemos a manipular o que sabemos para interagir com o universo."
Fiquei surpreso com a resposta. Não era algo que eu esperava ouvir. Minha curiosidade só aumentou.
Elas estavam claramente imersas em algo além do físico.
“Elas estão meditando,” explicou Ari, notando meu interesse. “Nina está conectando-se à mente de Nene, verificando seu estado mental.”
“Como elas fazem isso?” perguntei, intrigado.
Ari sorriu. “É uma forma avançada de magia, filho. Quando alguém se conecta com o próprio mundo interior, pode explorar suas habilidades e compreender o universo de formas que vão além do que é visível.”
“Me fale mais, mãe,” pedi. Ari sorriu e se inclinou um pouco mais perto, como se fosse compartilhar um segredo.
"Você já está grandinho para saber disso, então vou te contar, filho…" Ari começou a explicar com um tom de mistério. "Para usar magia, as pessoas precisam estudar muito sobre como o mundo funciona: Física, Química, Matemática e Biologia são coisas que você vai aprender no futuro. Além disso, é preciso ativar algo dentro de você, chamado de Arcanocorpo, para canalizar uma energia especial que está em todos os lugares: a Energia Primordial."
Eu a escutei atentamente.
"Essa energia flui por tudo que existe," continuou ela. "É com ela que as pessoas conseguem exprimir sua vontade e manipular o mundo ao redor. Mas como você faz isso depende da sua conexão com o que chamamos de 'mundo mental'."
Eu franzi a testa. "Mundo mental?"
Ela sorriu, balançando a cabeça. "Exatamente. O mundo mental é como a sua consciência, sua imaginação. É onde você começa a entender as possibilidades da magia, como se fosse um reflexo da sua perspectiva sobre a realidade. Todos nós temos um 'ponto de foco', uma linha de conhecimento que molda o jeito como conseguimos acessar e usar a magia. Cada pessoa tem uma afinidade específica com uma dessas áreas mágicas."
"Existem três tipos principais de magia," ela disse, estendendo três dedos. "Magia Material Cinética, Magia Material Reativa, e Magia de Carga Atômica."
"Mas mãe, o que é Magia Material Cinética?" perguntei, curioso.
"Magia Material Cinética é a capacidade de mover, aquecer ou esfriar objetos sem tocar neles," explicou Ari, gesticulando como se empurrasse algo invisível no ar. "É como empurrar uma pedra com a mente, ou aquecer a cama agitando para que ela fique quentinha, sem precisar de um cobertor."
Eu sorri com a ideia de deixar minha cama quente só com um pensamento. "E a Magia Material Reativa?"
"Essa é um pouco mais complexa," disse ela, seus olhos brilhando com entusiasmo. "Ela envolve transformar um material em outro, como mudar água em vapor ou transformar pedra em metal. Pode até ser usada para criar fogo a partir de elementos ao seu redor."
Eu me inclinei mais perto. "E a Magia de Carga Atômica?"
Ari parou por um momento, tentando encontrar a melhor maneira de explicar. "Essa magia é a mais refinada e poderosa. Ela envolve manipular as menores partículas da matéria, como átomos e moléculas, para criar eletricidade, campos de força ou até alterar a estrutura das coisas. É como transformar ferro em ouro ou criar raios, como os que você vê no céu durante tempestades."
Meus olhos se arregalaram. "Então, você pode criar raios?"
Ela riu. "Sim, algo assim. Mas não é apenas um truque de mágica. É preciso muito estudo e prática para dominar isso."
Fiz um rostinho de incompreensão, ela explica de uma forma que é dificil de uma criança entender.
"Cada uma dessas magias está ligada ao seu mundo mental," Ari continuou. "Sua mente vai se alinhar com um tipo de magia conforme você crescer e aprender mais sobre o universo. Mas não se preocupe em escolher agora. Isso é algo que vai acontecer com o tempo."
"Como eu descubro qual é a minha?" perguntei, já ansioso para começar.
"Isso requer paciência e introspecção," disse ela suavemente. "Quando você ativar seu Arcanocorpo, vai sentir a Energia Primordial fluindo por você, e então começará a entender qual magia ressoa mais com sua mente. Todos nós temos uma conexão única com a magia."
Aidan, que estava ouvindo a conversa, interveio. "E lembre-se, Kiel, magia não é só sobre poder. É sobre entender o mundo ao nosso redor e usar esse conhecimento com responsabilidade. O verdadeiro poder da magia vem da responsabilidade."
"Então, o que acha?" perguntou Ari, seus olhos brilhando de expectativa.
Antes que eu pudesse responder, Nina se aproximou, sorrindo com serenidade. “Kiel, se você quiser, posso ajudar a descobrir como está sua mente. Posso guiá-lo nesse processo.”
Olhei para Ari, que me observava com uma expressão que misturava apreensão e desânimo. Notei o brilho de descontentamento em seus olhos, como se isso não estivesse nos planos dela.
"Sim, eu quero," respondi rapidamente, deixando Ari visivelmente consternada.
Aidan comemorou com um sorriso largo. "Legal! Vamos ver se você puxou a mim ou a sua mãe," disse ele, cheio de entusiasmo.
Ari, no entanto, se prontificou para dizer algo. "Não acho que ele deva fazer isso," declarou levantando a voz, pondo uma tensão no ambiente.
Aidan tentou acalmá-la. "Querida, acho que pode ser bom para ele. Descobrir a afinidade mágica é fácil e rápido."
Ela cruzou os braços, claramente ainda preocupada. "Eu não quero que ele entre em Extase"
Ari suspirou profundamente, mas sua expressão ainda era de resistência. "E se ele..." ela tentou falar, mas seus verdadeiros motivos pareciam difíceis de dizer, e, por causa disso, ela se calou enquanto apertava as mãos.
A Anciã Nina se aproximou de Ari e disse com calma: "Eu entendo suas preocupações, Ari. Prometo que cuidarei bem dele. Este é um passo importante para ele, e estarei ao lado dele em cada momento e não deixarei ele desmaiar."
Evelyn, no entanto, do outro lado, começou a balbuciar palavras incompreensíveis, suas pequenas mãos gesticulando de forma aleatória, quebrando a tensão no ar.
O olhar de Ari suavizou-se ligeiramente ao ouvir as palavras da Anciã Nina. Ela finalmente cedeu, embora ainda relutante. "Tudo bem. Confiarei em você, Anciã. Espero que isso seja realmente o melhor para ele."
Nina fez um gesto para que Nene saísse do centro do pagode, "certo", respondeu ela. Nene obedeceu indo para a lateral.
Eu respirei fundo, sentindo uma mistura de ansiedade e excitação enquanto caminhava para o centro do pagode. As sombras das vigas entalhadas nas colunas pareciam dançar ao meu redor, como se fossem testemunhas silenciosas do que estava prestes a acontecer.
Um novo passo no caminho de me tornar a criatura mais saciada dessa terra!
Comments (0)
See all