"Acordei com a sensação de ser dois e nenhum ao mesmo tempo, como se o peso de outra vida tivesse sido costurado à minha alma, mas o eco de sua presença ainda era indistinto."— eu não acreditei — até que me banhei em sombras. Não importa o quanto sejamos solitários, sempre vamos ficar cada vez mais amargurados se isso persistir: Nem a Existência tolerou continuar vivendo sozinha na imensidão do Vazio Eterno — quanto a nós? Do mesmo jeito, assim foi feita a vida e tudo que existe: para que a solidão nunca mais tocasse os cosmos com suas sombras... E continua, a frase, claro."
A voz ressoou em cosmogenesí como uma frequência, não um som. Era profunda, serena, ecoando na vastidão da escuridão ao meu redor. Um arrepio gélido percorreu minha espinha. De repente, estava de volta àquele jardim sombrio, o mesmo lugar em que, pela primeira vez, experimentei a magia. "Quem… Quem disse isso?" perguntei, com a voz falhando de medo.
"Não tenha medo de si, Kiel."
À minha frente, solitária, uma única árvore se erguia, negra e imponente, desafiando a vastidão vazia ao redor. Seu tronco parecia vivo, mas de uma forma perturbadora, como se cada curva e cada textura fossem o resultado de algo relativo a mim.
As folhas eram densas e escuras, mas não era uma escuridão comum — elas pareciam absorver a luz ao invés de refletir. O ar ao redor da árvore estava parado, sufocante, e eu sentia uma pressão crescente, como se algo invisível me esmagasse lentamente.
Aproximei-me, quase sem controle sobre meus próprios movimentos, guiado por uma força que eu não entendia. Quanto mais perto chegava, mais sentia o peso daquela presença. Ela não era apenas uma árvore; ela era o abismo. As raízes se espalhavam profundamente na terra, mas não era uma terra comum — era como um líquido negro, espesso, que engolia tudo à sua volta.
Suspirei, o frio gélido que dominava o ambiente cortando minha respiração curta. Toquei o tronco da árvore, esperando que algo acontecesse.
Nada.
Sua textura era úmida, quase pegajosa, como se estivesse sempre mergulhada em algum líquido sombrio e denso. Ela subia em espirais desordenadas, mais parecendo uma massa de algas gigantes que se estendiam até onde eu podia ver, desaparecendo em meio ao vazio.
"Ela... Ela é o abismo." As palavras escaparam dos meus lábios antes que eu pudesse sequer pensar nelas. "A forma da entropia... o oposto da criação."
"Isso mesmo, e também o poder da nossa memória; capaz de espelhar as dádivas e moldar o ambiente, possibilita controlar a ausência de luz e a matéria além da Existência." disse uma voz atrás de mim.
Virei-me bruscamente, tropeçando e encostando no tronco viscoso depois de cair devido ao susto. Lá estava uma forma negra disforme, flutuando a poucos metros de mim se mechendo como líquido.
A forma se alongava gradualmente, esboçando uma figura ereta. De início, uma sombra indistinta, mas logo começou a imitar meu corpo. Os membros emergiram como fumaça solidificando-se no ar, seus contornos ganhando nitidez a cada instante. O fluido negro girava e contorcia-se, tomando a forma de braços, pernas e um tronco, até atingir minha altura exata.
Minha própria silhueta me encarava agora, esculpida de puro abismo. Cada detalhe do meu corpo se manifestava nela — a cabeça, os ombros, as mãos — tudo reproduzido com precisão. Então, os olhos surgiram: duas fendas sombrias preenchidas por um brilho roxo sinistro, suas pupilas dilatadas como portais para o desconhecido.
A figura imitava cada um dos meus movimentos, seus músculos de sombra ajustando-se conforme os meus se mexiam.
"Essa é nossa alma," o item afirmou, como um reflexo meu, diretamente na minha cabeça.
"O que... o que você é?" Perguntei, minha voz trêmula.
"Você. Nós," respondeu a criatura, sua voz ecoando em minha mente.
"Eu não te entendo!" exclamei, a angústia crescendo.
"Memórias, combinações, carne e luz. Imperfeições somadas à pureza e arte. Luz e trevas, um puro Eclipse resultado do amalgama de entes." Disse.
A atmosfera ao redor começou a pulsar, como se o ar estivesse vibrando com uma energia invisível. A escuridão parecia mais densa, mais próxima.
"O tempo está acabando," disse, sua voz agora quase um sussurro. "Devemos reconstruir nossa mente, Kiel. Reflorir este jardim e abraçar a luz. Não preciso continuar sozinho..."
Fiquei em silêncio, o peso daquelas palavras ressoando em mim. Eu não sabia o que responder. Talvez eu já soubesse a resposta, mas não tinha forças para dizê-la em voz alta.
Acordei com um susto que me fez levantar quase infartando devido ao forte grito estridente da minha irmã. O som estourou meu soninho, me deixando profundamente estressado. Não que estivesse muito confortavel, aquele sonho foi muito louco.
“Evelyn, precisa gritar tão alto?” resmunguei franzindo a testa.
Esfregando os olhos enquanto me sentava na cama, com as imagens da desolação daquele lugar e a árvore negra, principalmente das falas misteriosas que ainda estavam frescas na minha mente. Olhei ao redor do quarto, tentando me ancorar na realidade, me esticando para acordar.
Nosso quarto era relativamente novo. Ganhamos ele há algum tempo, depois de várias reformas na casa. As paredes eram feitas de madeira escura, decoradas com desenhos de árvores e entalhes de formas geométricas que Evelyn e eu fizemos juntos. Dois caixões um do lado do outro, mas o dela já arrumado, ambos com colchas coloridas que Nina costurou. Entre as camas, um tapete felpudo verde-claro.
Evelyn pulou ao meu lado, claramente animada e impaciente. Seus olhos brilhavam de excitação, e seu cabelo lavanda — branco, curto, estava bagunçado, como sempre. “Você prometeu que iria até a nascente comigo hoje!”
Franzi a testa, tentando me lembrar de qualquer promessa. “Prometi? Eu não lembro de ter prometido nada,” disse, tentando vasculhar minha memória ainda embotada pelo sono enquanto bocejava.
Ela piscou algumas vezes, os olhos começando a brilhar de frustração. “Você prometeu!” Sua voz era fina, quase um lamento, e vi a primeira lágrima se formar nos cantos dos olhos. Ela sempre jogava sujo quando começava a chorar. “Por que você sempre faz isso? Fala que vai fazer algo e depois muda de ideia! Não posso confiar em você pra nada!”
Essas palavras me atingiram de um jeito estranho. Eu cruzei os braços, tentando me manter firme. “Evelyn, é só que... subir até a nascente? É longe, tá frio, e eu tô com sono...”
Mas ela já não estava ouvindo. As lágrimas vieram, e com elas, uma enxurrada de palavras magoadas. “Você nunca quer passar tempo comigo! Sempre inventa desculpas! Eu só queria que fosse igual... Antes de você ficar estranho ...” Sua voz se quebrou no final, e eu senti sua frutação me dando um gosto azedo.
"Não fale mais comigo!" Disse, triste com a situação.
Fiquei ali parado, observando-a enquanto ela me dava as costas, os ombros pequenos tremendo. Era fácil tentar ignorar. Fácil manter minha posição e dizer que ela estava exagerando.
Mas, de alguma forma, não consegui. Veio a minha cabeça que eu realmentre precisava ir com ela, sair da zona de conforto e dessa solitária auto imposta. Quebrar isso é o primeiro passo, não custa nada dar atenção a família... Sim, isso é importante.
“Tá bom, tá bom...” Suspirei, finalmente cedendo, muito diferente das outras vezes. “Eu te levo até a nascente.”
Ela imediatamente abriu um sorriso radiante, seus olhos brilhando de novo. “Você vai ver, vai ser divertido!” disse, pulando e batendo palmas: mostrando que havia feito um teatrinho.
“Mamãe ta chamando você para comer, só falta você” Afirmou, me puxando.
“Sim, vamos logo então” Respondi, olhando para a criança energética de 6 anos.
Descemos as escadas juntos, o cheiro de café fresco e pão assado nos recebendo no andar de baixo. A madeira do chão rangeu sob nossos pés, como faria normalmente, nós passamos pela varanda e logo estávamos na escada. Lá estava uma mesa, no gramado esperando.
Na parte de fora, nossos 'pais', Ari e Aidan, já estavam sentados à mesa baixa, ao lado do jardim que meu pai plantou. O cheiro de Shelis, frutas silvestres de Gaélia, e massas quentes preenchia o ambiente. A mesa estava posta com uma toalha de linho azul, pratos de metal, e uma cesta de grãos, além de uma jarra de leite.
“Bom dia, crianças”, saudou Ari com um sorriso acolhedor e uma sinalização com a mão direita. Seu cabelo longuíssimo estava preso num coque impecável, e a tranquilidade em seu rosto parecia perene. “Sentem-se, o café já está pronto.”
Evelyn se apressou a sentar, seus olhos brilhando com expectativa diante da variedade de sabores à mesa. Me acomodei ao lado dela, mas ao olhar para as opções, nada me atraía de verdade. Mexi nos pratos, tentando achar algo que me agradasse, mas senti a falta de carne. O tempo passou, e quando percebi, todos já estavam comendo.
Ari, sempre atenta, notou minha hesitação. “Kiel, você vai recusar de novo só porque não tem carne? Nem sempre conseguimos carne nas montanhas, filho. De manhã é complicado...”
Suspirei, ciente de que deveria evitar atrito. “Não é isso, mãe. Olha.” Peguei algumas Shelis com um gesto resignado e comecei a comer, o gosto doce e fresco delas é bom, mas não supera uma costela.
Eu comecei a mastigar as Shelis, tentando disfarçar a minha falta de entusiasmo.
O gosto era muito doce e a textura era boa até, mas eu não queria, confesso que senti falta da carne.
Olhei ao redor da mesa e notei que o silêncio predominava entre nós, o que não é comum, até Evelyn ficou calada enquanto comia, Algo muito incomum mesmo.
Aidan, meu pai, estava focado em cortar meticulosamente as frutas no prato. Evelyn, ao meu lado, comia calmamente sua massa rica em carboidratos. O silêncio era pesado para a situação, e o som dos mastigares era audível devido à falta de conversas.
Suspirei internamente, desejando que houvesse algo para quebrar a monotonia. A tranquilidade que normalmente seria reconfortante para mim, hoje parecia apenas mais um peso.
“Por que está todo mundo tão calado?”, perguntei, tentando iniciar uma conversa.
Aidan levantou os olhos por um momento, hesitando antes de responder. “Eu estava esperando alguém falar.”
“Eul tambuem” disse Evelyn, mastigando.
“Já disse para não falar de boca cheia, Eve,” reclamou ele, mas sem ser rude, apenas lembrando.
Evelyn revirou os olhos e, deu de ombros. “Tá bem, pai,” murmurou com a boca cheia, o que rendeu mais um olhar de reprovação de Aidan.
"E...ee querido, Lembra do dia que Kiel caiu da cama quando era bebê e eu quase enlouqueci com você? Nem parece que está sendo responsável, reclamando com sua filha... avanços... em?" Exclamou minha 'mãe'.
Tantas coisas a serem ditas e ela vem falar logo disso? Eu lembro muito bem deste dia, tentei fugir da cama e acabei caindo e me machucando e sendo pego de novo. Aidan levou a culpa, sempre leva. Antes que Aidan dissesse qualquer coisa, eu intercedi e coloquei em pauta algo que sempre quis saber "Isso não é um bom assunto mãe!" Continuei, "Algo bom seria saber do futuro, a gente vai ficar aqui até quando?"
"Eu não sei filho, nós pensamos nesse tipo de coisa, mas não é tão simples, talvez mais 1 ou dois anos? Até você ter 10 anos, talvez." Respondeu, assumindo uma postura questionadora e pondo a mão na bochecha.
"Ah, sim, também teve aquela vez que Kiel pisou em uma planta de chorum e ficou tão fedido que demorou dias até o cheiro sair completamente, lembra?" Disse com muito entusiasmo, meu 'pai' brincalhão.
"Sim, eu lembro" Respondeu ela, "Tive que dar banho nele por várias horas" afirmou rindo com a mão na boca, escondendo uma risada fervorosa.
Muito engraçado para você Aidan, que não tem um hiper olfato que quase fritou sua sensibilidade no nariz.
"A conversa progrediu para falar das minhas vergonhas?" Perguntei, desconfortável com os rumos do diálogo.
"Sium, tambuem teve a vuez que ele queblou um ninho de Vispos" Concluiu Evelyn.
Até você usurpadora de pais? Isso é uma blasfêmia, virou um corredor de abate esta ceia?
"Até você, Evelyn?" perguntei, tentando esconder meu desconforto com um sorriso forçado. "Sou uma piada? tenho munição suficiente para todos vocês sairem chorando!"
" Kiel, estamos apenas relembrando momentos engraçados," respondeu minha 'mãe', ainda rindo. "Faz parte das memórias de família."
Aidan soltou uma risada curta, relaxando um pouco mais. "A gente precisa desses momentos para nos lembrar de que temos motivos para sorrir."
Eu suspirei, percebendo que não havia como escapar das histórias embaraçosas. "Tudo bem, mas, talvez possamos falar de algo diferente agora?"
Evelyn, com a boca ainda cheia, balançou a cabeça concordando. "Coomo o quee?"
"Evelyn, sem falar de boca cheia" criticou, brevemente, ambos os nossos 'pais', ao mesmo tempo.
"Que tal falar sobre o que cada um quer fazer no futuro? O que você gostaria de fazer quando crescer, Evelyn?" Perguntou nossa 'mãe'.
Evelyn engoliu a comida e respondeu animadamente. "Quero ser uma aventureira, igual aos heróis das histórias que o papai conta! Quero explorar o mundo e encontrar tesouros escondidos nas ruínas antigas, tipo aquela lá." terminou, apontando para a torre negra no horizonte.
Ari ficou desconfortável, sempre exibindo as mesmas reações, como se não quisesse que nos fossemos nessas empreitadas como magia, perigo, aventuras e outras coisas radicais. "Evelyn…" parou por um momento e continuou, "E você, Kiel? Já pensou no que quer fazer quando crescer?"
Eu hesitei, nunca tendo pensado muito além do presente. "Eu… acho que quero… é..." Não terminei...
Aidan assentiu, orgulhoso. "Isso é um bom objetivo, Kiel. Com dedicação, você pode alcançar grandes coisas." afirmou, rindo sarcasticamente, retirando uma cara feia de Ari que não gostou nem um pouco da piada.
O ambiente ao redor da mesa parecia mais leve agora, com cada um compartilhando seus sonhos e esperanças. As histórias embaraçosas foram esquecidas, pelo menos por enquanto.
"Então, Aidan," minha 'mãe' perguntou, com um brilho nos olhos, "quais são seus planos para o futuro?"
Aidan riu. "Meu futuro é simples: quero continuar cuidando de vocês e garantir que tenham tudo de que precisam."
Minha mãe sorriu, satisfeita com a resposta. "Isso soa perfeito para mim."
E assim, a conversa continuou de maneira mais agradável, cada um compartilhando momentos e memórias da nossa convivência, engraçados ou desastrados, como for.
Porém, cada vez mais um espaço se criou entre nós enquanto falávamos, paramos seriamente para pensar sobre o futuro, mas isso é muito incerto para mim: continuei vivo nesse mundo devido a uma mentira, foi o medo que me manteve aqui, medo de não conhecer o depois, porque ainda me falta um objetivo, uma razão.
Mesmo que vocês venham cada dia me conquistando mais, eu ainda tenho essas sensações que me dão vontade de encerrar esse ciclo de vida e morte, mas tudo esbarra no medo.
Contudo, eles não sabem. O maior medo em mim agora, se tornou abandoná-los ou perdê-los. De causar dor a vocês... Que continuariam aqui.
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