"Eu tô com medo..." As palavras dela me atingiram fracamente, como uma brisa suave antes da tempestade.
Evelyn me abraçou por trás, e eu não consegui olhar para ela, preso na posição em que estava, à beira do precipício. Pude sentir sua inquietação no aperto trêmulo de seus braços.
"Kiel... sai daí, por favor. Você está muito perto..." Sua voz se quebrou no final da frase, revelando o medo que ela tentava esconder. Suas mãos pequenas agarraram minha camisa com mais força, como se quisesse me puxar para longe da beirada, mas hesitasse em forçar. O calor de seu corpo contra o meu contrastava com o frio cortante que subia do abismo abaixo.
"Eu sei que você não gosta de passar o tempo comigo. Você sempre me olha mal. Me desculpa se te magoei..." Sua voz tremeu mais uma vez, cheia de uma vulnerabilidade que eu nunca tinha percebido. "Foi por isso que eu quis vir aqui, para te mostrar que não sou uma menina ruim." Ela parou, mas continuou: "Não me abandona, eu quero que você me enxergue... Nunca parece que se diverte comigo de verdade... Nunca me chama de Eve... sempre me trata sem carinho, e eu me sinto mal."
O medo em sua voz me puxou de volta à realidade. O precipício, que antes parecia inofensivo, agora parecia perigosamente próximo. Apesar de sua idade, suas palavras, carregadas de sinceridade e dor, me tocaram profundamente. Lembrei da promessa que fiz de cuidar dela ao vir até aqui, do vazio que deixaria se eu partisse desse mundo, e de todas as coisas boas e belas que ainda estavam por vir.
Dei um passo para trás, afastando-me da beirada.
Foi um passo em direção à vida.
Os braços de Evelyn ainda me envolviam, mas agora com mais segurança. Ela respirou aliviada ao sentir que eu havia recuado.
Se fui posto neste mundo, há um significado. Morrer nunca será a opção. Esses seres que me cercam, que mostram suas vulnerabilidades e abrem seus corações, merecem minha reciprocidade. Nunca mais vou pensar em desistir, prometo a mim mesmo.
"Obrigada..." Evelyn sussurrou, ainda agarrada a mim, o medo dando lugar a uma sensação de segurança.
Eu a abracei de volta, finalmente compreendendo o quanto ela precisava de mim — e o quanto eu precisava continuar vivendo, por vocês.
Mesmo se souberem a verdade sobre mim algum dia, vou garantir que continuem a se importar comigo. Vocês são minha família.
Quando me virei, vi que ela estava chorando. Seus olhos amarelos brilhavam, deixando escorrer lágrimas sinceras.
"Tudo bem, Eve. Você é minha irmã, e eu gosto muito disso. É muito melhor do que estar sozinho. Ter alguém para te acolher sempre será uma dádiva. Então, me desculpe se te magoei, maninha", disse, pela primeira vez, chamando-a de irmã com sinceridade.
Ela franziu o cenho de leve, enxugando o rosto na minha roupa com uma atitude atrevida. "Sempre essas palavras difíceis... O que é 'dádiva'?"
Sorri, aliviado pela leveza do momento. "Vamos voltar", afirmei, sentindo como se um peso enorme tivesse se dissipado.
"Não! Olha lá!" Ela apontou para o topo da nascente, onde uma gruta parecia escondida entre as pedras.
"Ei, subir ali é perigoso, Eve."
Ela fez um beicinho, com seus olhos amarelinhos brilhando de maneira irresistível. "Por favor...", pediu, cheia de fofura.
Suspirei, já sabendo que seria difícil resistir a essa expressão.
…
Comecei a tentar escalar as vinhas que desciam do alto da gruta de onde saía a nascente, mas meus membros estavam fracos e ineficientes. Logo perdi a força e acabei caindo para trás. Frustrado, olhei ao redor em busca de uma solução. Foi então que notei alguns galhos grossos e vinhas espalhados pelo chão.
"Tive uma ideia," murmurei, pegando os galhos mais fortes e as folhas maiores. "Vamos fazer uma espécie de alavanca e polia."
Eve me olhou curiosa, mas confiante. "O que eu faço?"
Usei algumas pedras próximas para fazer uma pequena pilha firme, enquanto prendia uma das vinhas mais longas ao topo de um galho robusto, criando uma alavanca improvisada. Enrolei a outra ponta da vinha em torno de uma pedra pesada, que serviria como contrapeso.
"Vou precisar da sua ajuda para puxar a pedra enquanto eu subo," expliquei.
"Quando eu der o sinal, você puxa com toda a sua força, tá bom?"
Eve assentiu com vigor, agarrando a vinha com suas pequenas mãos. Testei a estrutura, dando alguns puxões para garantir que estava firme.
"Pronta? Vai!"
Com Eve puxando a pedra para baixo, a alavanca elevou meu peso, facilitando a subida pelas vinhas. Usando a força dos meus braços e pernas, e coordenando com os puxões dela, consegui alcançar um ponto mais alto onde pude me firmar e subir de vez.
"Consegui, Eve!" gritei de cima, aliviado e animado.
"Agora me puxa! Me puxa!" ela exclamou, ansiosa.
Antes de atender ao pedido, virei-me para observar a gruta. Fui imediatamente surpreendido por uma visão deslumbrante que tirou meu fôlego. O lugar parecia saído de um conto de fadas. A luz suave do sol filtrava-se por aberturas no teto da caverna, projetando reflexos cintilantes nas paredes cobertas de musgo verde e pedras calcárias.
No centro, um grande lago de águas cristalinas refletia as cores do ambiente, e pequenos Luminovos voavam graciosamente sobre a água, suas penas amarelo-azuladas emitindo um brilho bioluminescente. Ao redor do lago, diversos animais curiosos se moviam, tão intrigados com minha presença quanto eu com a deles. Vi Aquarupins, criaturas que saltavam e nadavam nas águas claras, com corpos aerodinâmicos cobertos por escamas iridescentes que mudavam de cor conforme se moviam. Eles faziam manobras ágeis na água, emitindo sons suaves.
Mais ao fundo da gruta, cristais brancos vibravam com energia primordial, enviando distúrbios sutis pelo ar, agora perceptíveis aos meus sentidos.
A água do lago era tão pura que eu podia ver o fundo coberto de pedras lisas e mais cristais, alguns maiores, espalhados como tesouros submersos. O som suave da água corrente, escorrendo por pequenas cachoeiras, completava a serenidade do cenário.
Por um momento, me perdi completamente na beleza e na paz daquele lugar, esquecendo da missão de puxar Evelyn. Aquele santuário parecia intocado pelo tempo, um refúgio mágico e selvagem.
"Agora é minha vez de puxar," disse, sorrindo. Usei a força das pernas e o peso do meu corpo para acionar a alavanca ao contrário, erguendo Evelyn com segurança.
"Quase lá!" encorajei-a, puxando com cuidado.
Quando chegou ao topo, Eve saiu rapidamente do improvisado 'elevador de polias', tremendo de excitação. Ela se jogou para fora e caiu em pé no ápice da gruta, hipnotizada pela visão ao seu redor.
Os Pupins, pequenas criaturas que são mamíferos felpudos, se aproximaram cautelosamente, curiosos e atentos. Tinham corpos cobertos de pelo macio e sedoso, com orelhas grandes e expressivas que se mexiam constantemente, captando cada som ao redor. Seus rabinhos fofos balançavam de um lado para o outro enquanto saltitavam em direção a Evelyn.
Ela se agachou e começou a brincar com eles, rindo enquanto os pequenos seres pulavam ao seu redor. Ela estendeu a mão, oferecendo um pedaço de fruta que tirou da sua bolsinha, e um Pupin corajoso pulou em seu colo, pegando a fruta delicadamente com suas patinhas. Ele mordeu o fruto com seus pequenos dentes, mastigando com satisfação enquanto Eve acariciava suas orelhas macias.
“Olha, Kiel, ele é tão fofinho!” Eve exclamou, seus olhos brilhando de felicidade. Ela riu enquanto outros Pupins se aproximavam, formando um pequeno círculo ao redor dela. Cada um deles parecia mais adorável que o outro, com seus pelos variando em tons de branco, cinza e ciano e até algumas cores mais exóticas como rosa-claro.
Eve continuou a brincar com os Pupins, fazendo cócegas em suas barriguinhas e rindo quando eles rolavam de costas, expondo suas patinhas para cima em um gesto de total confiança e diversão. Era um espetáculo encantador ver minha irmã interagir tão naturalmente com essas criaturas mágicas, criando uma conexão imediata e pura.
Além, os cristais em si eram fascinantes. Espalhados por toda a gruta, variavam em tamanho desde pequenos fragmentos até grandes pilares que se erguiam do chão ou pendiam do teto como estalactites e estalagmites. Ao tocar um deles, senti uma onda de calor e energia percorrer meu corpo, quase como se os cristais estivessem transferindo sua carga para mim.
Fiquei fascinado por um cristal particularmente grande, que emitia uma luz azulada suave. Toquei sua superfície lisa, sentindo a energia primordial vibrar através de minhas mãos como se tivesse sendo absorvida.
Essa é a oportunidade perfeita para usar magia!
Sentei-me no chão, sentindo a textura fria do solo sob minhas mãos enquanto fechei os olhos, tentando acalmar a respiração. Ao redor, o mundo parecia distante, abafado, como se o tempo tivesse desacelerado. Respirei fundo, permitindo que o ar enchesse meus pulmões, enquanto mentalizava o fluxo de energia que percorria meu corpo. Era como um rio invisível, correndo sob os membros.
Minhas mãos começaram a tremer levemente enquanto eu guiava a corrente de energia, sentindo-a subir pelas veias. Quando a energia chegou à minha cabeça, senti um leve formigamento, uma pressão que parecia pulsar com meu batimento cardíaco. Meu corpo relaxou, e a tensão que antes me prendia aos pensamentos do mundo físico foi se dissolvendo.
…
Após muitos minutos, encontrei um calmante para me concentrar
"Nem a Existência tolerou continuar vivendo sozinha na imensidão do abismo — quanto a nós? Do mesmo jeito, assim foi feita a vida e tudo que existe" fiquei repetindo.
Náuseas fracas atingiram minha meditação depois de alguns segundos, era como se uma chave tivesse girado.
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Ao abrir os olhos, me vi novamente dentro do meu subconsciente. Desta vez, no entanto, parecia... menos caótico? As rachaduras no chão eram menos numerosas.
A paisagem ainda estava morta e decadente. Ja em frente a árvore morta, toquei-a.
Afundei mais fundo nela, deixando-me levar por aquilo que ela realmente representava. Seu verdadeiro significado, seu potencial oculto.
Num piscar de olhos, tudo desapareceu, restando apenas um vasto vazio, uma escuridão emaranhada num mundo de planos sobrepostos. Era como um labirinto de conhecimento, onde conceitos antes acessíveis estavam agora obscurecidos. Era o código da realidade — a matriz que regia o movimento.
Energia cinética. O domínio de tudo que se move.
Minha mente começou a recuperar fragmentos de ideias esquecidas. Movimento: partículas que se agitam aleatoriamente e vetorialmente, gerando calor, a forma mais básica de energia. Essa agitação, inevitavelmente, busca uma distribuição uniforme. E então, há a energia que se preserva, movendo-se em direções constantes, perpetuando-se, transmitindo-se entre corpos. A quantidade de energia acumulada define o estado da matéria: sólida, líquida, gasosa, organizando-se, aproximando-se, afastando-se — sempre se movendo para preencher o espaço.
Meus olhos focaram numa árvore labiríntica De repente, um fio de luz dourada emergiu, insuflando vida em um feixe na escuridão da árvore.
Uma felicidade avassaladora me envolveu, enquanto vários conceitos penetravam minha mente: moléculas, elementos, inércia, força, temperatura...
— Sim! — exclamei, ao ver pequenos fios de luz envolvendo a árvore com a árvore. Mesmo sendo apenas uma fração, tudo começou a fazer sentido, compondo minha compreensão.
O tempo passou rápido enquanto cochilava, e logo o sol começou a se pôr. A chegada da noite trouxe um novo espetáculo: o brilho suave dos cristais e dos animais iluminava o ambiente, agora sereno.
Ainda tentando entender o que se passava, notei que os Pupins se aproximavam de Eve sem hesitação, mas mantinham distância de mim. Isso me intrigou.
"Eve, por que você acha que eles evitam chegar perto de mim?" perguntei, tentando esconder meu desconforto.
Ela olhou para mim e depois para os Pupins, pensativa.
"Talvez eles só precisem de tempo para se acostumar, maninho. São pequenos, podem estar com medo" respondeu.
Assenti, tentando aceitar a explicação.
"Quero te mostrar uma coisa" afirmei, caminhando na direção dela. Seus olhos brilharam de curiosidade sob a luz suave dos cristais.
Levantei a mão e me concentrei, sentindo a energia que absorvi do cristal responder à minha vontade. As lições sobre moléculas, elementos e forças invisíveis vinham à tona. Concentrei-me nas moléculas de água suspensas no ar, visualizando-as como pequenas esferas flutuantes. A umidade estava presente em tudo, em cada gota de orvalho prestes a se formar. Minha mente guiava a energia que roubei do cristal, transformando teoria em ação.
Respirei fundo e mergulhei nos conceitos que se tornavam familiares: a atração e repulsão das forças intermoleculares, a inércia das partículas, a variação de temperatura que leva à condensação.
Havia uma leve resistência ao manipular a Energia Primordial, como se não fosse minha. Mas, gradualmente, gotas de água começaram a surgir ao redor da minha mão, flutuando como pérolas suspensas. Controlei-as, formando um pequeno vórtice, cada gota seguindo minha vontade.
"Veja" sussurrei, estendendo a mão. A água formou uma pequena esfera líquida entre nós. Eve olhou maravilhada, os olhos refletindo o brilho cintilante da água.
"Como você fez isso?" perguntou, fascinada.
"É questão de entendimento. É magia" expliquei, com a voz baixa, quase reverente. "As moléculas de água estão sempre no ar, mesmo que não as vejamos. Com concentração e controle da Energia Primordial, podemos guiá-las e torná-las visíveis.
Eve tocou a esfera de água com a ponta dos dedos, encantada.
"Incrível! Como eu faço isso também?"
Sorri, envergonhado.
"Estou só começando a entender. Vai demorar um pouco para você aprender."
Com um movimento suave, fiz a esfera de água dançar no ar.
"A magia é física, não mística. Está em tudo ao nosso redor e responde à nossa lógica e raciocínio." Um sorriso atravessou meu rosto, mas logo senti uma ânsia, como se meu espírito se distorcesse. Em milésimos de segundos, transformei a bolha de água numa estaca de gelo.
"Uau!" Eve exclamou, admirada.
Mas a familiar dor de cabeça e a exaustão mental começaram a surgir. Deixei a lâmina de gelo cair, despedaçando-se no chão.
Eu realmente preciso entender biologicamente como isso funciona, pensei com frustração.
"Mano, podemos levar um desses bichinhos para casa?" perguntou Eve, levantando um Pupin que se aninhava em sua perna, assustado com o impacto do gelo no chão. O pequeno ser me olhou com seus grandes olhos expressivos, completamente alheio.
Balancei a cabeça.
"Eles pertencem a este lugar. Imagine se um Pupin gigante te levasse embora para nunca mais voltar?"
Eve fez um beicinho, claramente desapontada.
"Mas ele é tão fofinho… Eu queria tanto um Pupin..."
"Acho que está na hora de voltarmos para casa" afirmei, tentando ser firme.
Ela começou a protestar.
"Mas…" Antes que ela pudesse continuar, cortei-a.
"É a minha cabeça que está em jogo, não a sua" exclamei, encerrando a conversa.
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