Mine piscou algumas vezes, sentindo sua cabeça pesar como se fosse feita de chumbo. Sua visão foi voltando aos poucos juntamente com os demais sentidos como o tato, sentindo uma superfície não muito conhecida tocando em suas mãos e pernas. O lugar estava escuro, um verdadeiro breu. Não havia nenhum odor no ar, nem som e nem luz, apenas sensações na pele como a umidade e o vento frio que soprava seu corpo e cabelos.
O chão e o horizonte não estavam muito bem definidos até que os olhos de Mine se adaptaram à pouca luminosidade que apareceu em volta dele, como se fosse uma lâmpada noturna bem fraca e colada em seu corpo. Com os olhos ainda voltados para baixo, Mine percebeu que o chão não era bem um... chão. Era algo líquido, mas de turbidez muito elevada, sendo impossível ver o que havia mais afundo daquele misterioso “chão-lago”, do qual ele não afundava. Ao olhar para o horizonte, ele não pôde deixar de notar como aquele “chão-lago” tinha a superfície perfeitamente plana, estendendo-se infinitamente diante dele.
Esse tal “chão-lago” era muito estranho. Era úmido sem exatamente molhar e não deformava apesar de, se aplicado um pouco mais de pressão, a mão de Mine mergulhava nas águas turvas e quentes, mas sem molhar.
Ao baixar o olhar novamente para a superfície lisa, Mine vislumbrou seu reflexo. Seu cabelo estava como sempre esteve, porém, seu reflexo não estava exatamente como Mine estava há algum tempo. Ele agora contrastava com a realidade, assemelhando-se a alguma criatura mítica. Um manto sobrenatural e semitransparente cobria sua forma nua, que tinha escrituras que brilhavam em dourado no meio daquela escuridão, como tatuagens pulsando uma luz divina.
Seu corpo não era exatamente humano, nem seus traços faciais, mas ele sabia que o ser refletido naquelas águas turvas era ele. Um toque aqui e ali em seu rosto e os contornos voltaram a ser como ele lembrava, desde o formato de seu nariz, a curvatura de seus lábios e suas sobrancelhas.
Sua boca se abriu, mas antes de testar se suas cordas vocais estavam funcionando, algo diferente apareceu na paisagem e, instintivamente, Mine levantou-se. Era uma luz fraca que foi se intensificando, caindo lentamente até atingir o “chão-lago”. Assim que atingiu a superfície, um clarão quase cegou Mine, que protegeu seus olhos da luminosidade excessiva com os braços. Quando ele os abriu novamente, viu um trono de mármore branco adornado com ouro sob uma plataforma de porcelanato alvo e liso no mesmo lugar que a luz estranha havia caído.
Mine hesitou, mas, sem escolha, ele caminhou cautelosamente até esse tal trono que estava... vazio. Os adornos eram tão detalhados que uma descrição apropriada dos desenhos e entalhes havia se tornado impossível. Mine estava deslizando os dedos na superfície gelada e lisa, eventualmente percorrendo as irregularidades dos detalhes em alto relevo, quando ouviu uma voz gentil aproximar-se:
“Você realmente veio,” a voz gentil disse, aproximando-se de Mine e revelando-se como uma bola de energia.
Mine, readquirindo sua humanidade, baixou o olhar e suspirou. “Eu não tive escolha,” suspirou.
A tal voz, materializada em uma bola de energia, então assumiu a forma de um coelho e começou a pular de um lado a outro até finalmente pousar no assento do trono. Apesar de parecer inofensiva, algo naqueles olhos trazia um ar de familiaridade e periculosidade.
O coelho de energia espreguiçou-se e lentamente foi tomando forma humanoide, assemelhando-se a uma versão espelhada de Mine. Esse tal “Mine” espreguiçou-se também e olhou animado para o verdadeiro Mine.
“Adoro quando você vem me visitar! Tenho tantos planos pra gente e até separei um monte de jogos pra gente jogar,” aquela versão espelhada pulou do trono e segurou as mãos de Mine com entusiasmo.
Mine levantou o olhar e fitou os olhos brilhantes da criatura que muito se pareciam com os seus e suspirou. “Ah... estou farto de morrer desse jeito...” ele disse, não sabendo se ria ou se chorava. “Bom, já que morri mesmo e demora algumas semanas pra eu voltar... manda brasa, o que você trouxe?”
A criatura estava muito animada e começava a dar pulinhos enquanto segurava as mãos de Mine. “Eu trouxe Uno, Monopoly, terminei a história do nosso próximo RPG... ah! E roubei um console de alguém e- o que é isso?” ele fitou algo em uma das escrituras nos braços de Mine, como se estivesse lendo aquelas letras estranhas.
“Isso o quê?” Mine também tentou ler as escrituras, mas não sabia exatamente onde a criatura estava lendo.
A criatura franziu o cenho e resmungou. “Acho que você vai voltar mais cedo do que o esperado.”
“... o quê...?” Mine assustou-se e uma faísca de esperança acendeu em seu peito.
“Aquele cara realmente nos ajudou,” a criatura riu, mas em tom de deboche. “Pelo menos ele tinha olhos encantadores... hm... o nome dele... qual era mesmo o nome dele? Ah! Addai!”
Mine sentiu um arrepio na nuca e em todo o seu corpo logo em seguida assim que o nome de Addai saiu pelos lábios daquela criatura. Ele virou o olhar para o ser e tentou fitar em seus olhos turvos e insanos.
“... o que você disse?” Mine perguntou com certa ansiedade em sua voz.
“Addai!! Ele é um cara bem interessante, sim? Sim!!” a criatura sorriu enquanto dava pulinhos no mesmo lugar como uma criança. “Ele tem um rosto muito bonito e seu toque também não é nada mau! Mas seria bem melhor se ele não estivesse pirando, hahahahahaha!!!”
“Fique longe dele,” Mine sibilou e a água do “chão-lago” começou a ficar agitada.
Essa criatura era a última coisa que Mine queria que Addai conhecesse e se ele nunca soubesse disso seria muito melhor. Sua versão ruim? Tudo bem. Sua versão rude? Tudo bem também. Sua versão teimosa? Ele não escondia isso...
... mas aquela criatura chamada de Chronos... Addai jamais deveria conhecer.
“Como assim? Eu sou você, bobinho! Hahahahaha!” Ac criatura riu como se Mine tivesse contado a piada mais engraçada de todas. “Não tem como eu ficar longe dele mesmo se eu quisesse.”
Coração acelerado como se tivesse numa corrida.
A pele coçando como se agulhas roçassem na superfície.
Pensamentos embrulhados e embaralhados. Era impossível pensar direito.
Uma lucidez repentina. A adrenalina estabilizou lá em cima.
Tudo ficou claro: desde a criatura na sua frente que se parecia muito com ele até a escuridão do lugar, tudo chegando em seu cérebro numa intensidade quase febril.
Um novo som chegou aos seus ouvidos. Era o barulho de ondas quebrando. O “chão-lago” parecia mais como um mar revolto de ondas inquietas, porém não deixava Mine afundar-se ou molhar-se. A superfície continuava lisa, era como agora tivesse uma lâmina espessa de gelo frio e úmido, quase queimando os pés descalços de Mine.
Apesar da criatura lhe provocar, Mine permanecia num estranho e sombrio silêncio.
“É raro te ver preocupado com um mero humano,” a criatura sorriu, evitando o que parecia ser feitiços não verbais lançados por Mine. “Sabe o que seria legal? Que ele fosse tão desprezível quanto o seu bichinho de estimação anterior! Sim!! Assim eu estaria livre mais uma vez!!! Hahahahaha! ‘Só não mate ele’, né? Seu pecador sujo!! Hahaha-”
Mine disparou e agarrou o pescoço da criatura com força.
Tamanha violência havia tomado posse de seu corpo na medida que ele apertava o pescoço da criatura que não mais escondia o quanto se divertia com tudo aquilo.
“Ele vai te tratar como uma prostituta barata!!” A criatura riu, mas não mostrou resistência aos apertos de Mine em seu pescoço. “E olha só o que você tá tentando fazer, me matar!! Lembra que você tentou isso antes? O que aconteceu? Hein? Hein? VOCÊ MORREU DE NOVO!!!”
“CALE-SE!!” Mine gritou, lançando a criatura para longe.
Ofegante de euforia e raiva que percorriam pelas suas veias, Mine ainda encarava o ser e a tempestade dentro de si começava a aparecer no lado de fora.
A criatura levantou-se e espanou suas vestes semitransparentes e, num sorriso largo e inocente, deu alguns pulinhos na direção de Mine.
“Não fique assim...” a criatura sorriu e a cada pulinho que dava, ela ficava cada vez mais distante do chão, como se estivesse levitando no ar. “Você quer brincar? Cê sabe que tô sempre pronto! Bora!”
Uma corrida, um choque e uma grande explosão de luz.
Ambos os seres foram lançados em direções opostas, atingindo o chão que parecia gelo e molhando suas roupas. Mine levantou-se cambaleando e caminhou em direção a criatura. A humanidade restante em si havia desaparecido. Em seu rosto havia uma máscara branca adornada com detalhes dourados, mostrando apenas os olhos brilhantes que não combinavam com a pele, que mais parecia um casulo escuro. Seu corpo misturava-se com a escuridão do lugar, sendo apenas visível as marcas que delineavam a silhueta de Mine juntamente com um fino véu e a máscara em seu rosto antes humano.
“Hahaha!! Isso!!! Vamos brincar!!” a criatura bateu palmas alegremente. “Liberte sua raiva!! Despeje-a em mim!!”
Mine disse algo em uma língua desconhecida e a criatura foi lançada no chão. O piso de “gelo” quebrou-se e a criatura foi afundando nas águas turvas e cruéis. A criatura ria enquanto afundava, deixando bolhas de ar subir.
Antes que Mine pulasse no buraco que fez, o ser mítico de repente se levantou e chocou-se contra ele, fazendo-o bater no piso de gelo e ir quebrando por onde ele batia, mas sem afundar nas águas. O ser aproximou-se e agachou ao lado de Mine que estava com a face voltada para o chão.
“Você sabe que a gente não pode confiar nos humanos,” a criatura começou, segurando uma espada de luz na mão direita. “Lembra daquele fedelho? Aquele gasto de oxigênio que não vale nem uma nota de rodapé? E se Addai for o mesmo?” finalizou e fincou a espada do lado de Mine, que chutou a espada para longe e pulou para trás, dando algum espaço entre eles.
“Já chega,” disse Mine entredentes.
“Ele é confuso... até te entendo porque você hesita tanto,” a criatura cantarolou, fazendo a espada desaparecer. “Só não entendo por que ele se ajoelhou diante de nós. A gente caiu do trem, segurando o núcleo de instabilidade que absorvemos... de repente ele apareceu do nosso lado antes do seu corpo morrer.”
Um calafrio tomou conta do corpo de Mine e o fez arrepiar-se mais do que a superfície gelada que ele estava. Se ele tinha caído do trem e Addai estava do seu lado, então isso significa que...
“Ah não...” Mine murmurou com a voz embargada e trêmula.
Sua máscara, antes branca e dourada, mudou para a coloração branca e azulada e todos os detalhes mudaram. Os olhos, antes perfurantes, tornaram-se suaves e lacrimejantes. Os adornos mudaram completamente de padrão, agora cobrindo apenas os dois olhos. O brilho dos olhos desapareceu e uma única lágrima ficou desenhada abaixo do olho esquerdo.
Uma gota de um líquido metálico caiu dos olhos da máscara, manchando o chão com dourado. Antes tempestuosa, a água abaixo deles lentamente se acalmou e o piso de gelo voltou para o que era antes.
A criatura, ao ver as gotas de dourado no chão, aproximou-se de Mine e agachou-se.
“Você não precisa ficar todo tristinho assim...” a criatura enxugou as lágrimas douradas do ‘rosto’ de Mine. “Se ele estivesse morto, eu não ficaria assim todo feliz.”
“Onde... onde ele tá?” Mine perguntou fracamente.
“Ele tá de boa e seguro! Eu me certifiquei disso antes de ser selado,” a criatura sorriu. “Oxe, eu não sou um monstro, você sabe disso! Não é que eu não confio nele que eu vou matá-lo,” resmungou. “Vem aqui.”
A criatura ajudou Mine a se levantar novamente e cobriu-o com seu próprio manto. A máscara do jovem professor não havia mudado, então a criatura espelhou a máscara de Mine em seu rosto, mudando a lágrima para uma estrela dourada. A criatura começou a fazer gestos e trejeitos até que a máscara de Mine dissipasse e seu rosto voltasse a aparecer.
Um cansaço começou a hipnotizar Mine, que esfregava os olhos e bocejava.
“Vamos descansar...” Mine murmurou, sentindo seu corpo exausto.
“Bora!” a criatura sorriu e se transformou em um grande pássaro com penas macias e confortáveis. Na verdade, ela mais se parecia com uma grande galinha do que com um pássaro majestoso, mas talvez tenha sido por intenção dela mesma.
Mine riu baixinho e sentou-se perto da criatura, deitando-se nas penas macias enquanto o ser o cobria com as asas.
“Quer uma música? Este lugar é muito quieto”, resmungou o ser.
“Manda brasa Dj,” Mine riu.
"Vou cantar nossa música. Aquele que nosso tio nos ensinou”, a criatura disse alegremente.
“Então vá em frente,” Mine se cobriu com a capa e a asa do ser. “É uma música horrível, mas vá em frente”, ele brincou, e o ser cutucou suas costelas com uma bicada suave, fazendo-o rir.
Bearing light in their cores,
chaos in their hands,
and glow in their soul.
Shall the universe feel,
the true light of doom.
Ethereal beings.
Convinced sinners.
Beautiful liars of death.
Chronos, the enchanting beauties of chaos.
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