Bipes seguidos de outros sons agudos rodeavam dentro do cérebro de Mine numa frequência agonizante, combinando com a dor em seus braços causada por algo perfurante e fino. Apesar de estar parcialmente consciente, seus sentidos estavam tão confusos quanto sua mente, que ia e vinha no mesmo ritmo dos bipes vindos do seu lado esquerdo.
Mine lentamente abriu os olhos pesados e logo testou a mobilidade de seus dedos. Sucesso. Logo, Mine testou a sensibilidade de seus braços e moveu-os um pouco. Sucesso. Com um pouco mais de força, Mine levantou o braço esquerdo com certa dificuldade. Sucesso. Por detrás das gazes alvas com manchas avermelhadas, sua pele estava na mesma tonalidade de pêssego de sempre. Isso significava que ele estava, de fato, vivo.
O braço erguido caiu para o lado pesadamente e Mine grunhiu, percebendo que ainda não tinha todo o controle de seu corpo. Ele virou o rosto e viu que o ambiente em volta dele era um tanto peculiar. O quarto frio e enevoado estava escuro, mas não tão escuro. Mine não sabia se era sua visão ou se era a misteriosa névoa que fazia com que certos detalhes ficassem difíceis de enxergar, com exceção da máquina apitando.
Mine respirou profundamente, sentindo o cheiro complexo daquela sala que era composto desde remédios, cobertores limpos e aromas químicos até emoções agonizantes e palpáveis. Um verdadeiro mosaico de difícil descrição precisa.
Quando Mine tentou mover-se mais um pouco, o que espetava seu braço doeu com a movimentação não muito cuidadosa, fazendo com que um grunhido de protesto saísse por seus lábios ressecados. O que ele não esperava era que uma mão abruptamente tocasse em sua bochecha. Um susto terrível irradiou pelo seu corpo, fazendo com que a máquina apitasse desesperadamente e uma luz vermelha acendesse na cabeceira da cama. A mesma mão que havia tocado no rosto de Mine desligou a luz vermelha e arrumou a gola da blusa de Mine, que levantou o olhar para ver quem era aquela pessoa.
“Dormiu bem?” A pessoa perguntou gentilmente, acariciando o cabelo de Mine que ainda estava com os olhos apertados.
“...” Mine tentava identificar a pessoa, mas seus olhos estavam ainda um pouco nublados.
A pessoa soltou uma risada abafada e segurou uma das mãos de Mine. “Sou eu, Mine. Ah, estamos em um lugar seguro, se você quer saber.”
Os olhos de Mine voltaram a funcionar perfeitamente assim que a pessoa finalizou a frase. Mine piscou algumas vezes e esfregou os olhos. A pessoa que estava ali persente era muito familiar. Seus olhos finos e alaranjados, aquele cabelo curto, escuro, verde acinzentado com mechas brancas, a ternura na voz e o calor nas mãos, o cheiro de Ylang-Ylang que irradiava de suas roupas requintadas... Mine conhecia aquele homem muito bem.
“Tio Rito?” Mine disse, sentindo sua garganta seca arder.
O homem sorriu calorosamente e deu para Mine um copo de água, que o pegou após agradecer. “Sua certidão de óbito estava quase pronta... O que fez você voltar tão cedo?”
Mine afastou os lábios da borda do copo e olhou para o seu tio com um olhar confuso. “Eu... não sei, tio.”
“Hm...” Rito murmurou. “Tudo bem, agora termine de beber a água,” ele acenou e Mine engoliu mais alguns goles daquela água de cor arroxeada.
Satisfeito que seu sobrinho terminou de beber a “água”, Rito pegou o copo vazio e colocou-o na mesinha que ficava ao lado da cama. Mine observava seus movimentos enquanto terminava de acordar. Seus pensamentos ainda estavam uma bagunça, mas ele não tinha tempo para ponderar demais sobre isso, já que a sua atual situação era mais importante ainda.
“Tio, onde estamos?” Mine perguntou, olhando para seu tio.
Rito virou-se e os adereços de sua roupa extravagante fizeram barulhos metálicos. “Seu corpo está sensível devido à intromissão do Chronos e a volta repentina. Tive que vir e verificar se seu corpo e alma estavam devidamente unidos e, por isso, tive que te chamar para a dimensão média. Por isso você não consegue ver nada além de mim,” ele sorriu e sentou-se na beirada da cama de Mine. “Agora estou terminando de tratar sua alma, mas seu corpo está dormindo no hospital e... tem alguém com você.”
Mine sentiu seu coração errar algumas batidas como se estivesse em uma montanha-russa e arregalou os olhos..., mas nada saía de sua boca meio aberta. Rito sentiu que deveria continuar a explicar, então segurou uma das mãos de seu sobrinho.
“Eu pessoalmente acho que você deveria explicar algumas coisas pra ele depois. Eu meio que tive que possuir o corpo do médico para te examinar e tranquilizar aquele garoto que estava... apavorado. Você precisa ter consideração com os humanos, bobinho.”
Lembranças preencheram a mente de Mine como se tivesse virado a chave das memórias dele e elas instantaneamente tivessem sido carregadas no sistema com um clique. Mine lembrou-se de algumas coisas desconcertantes como a expressão preocupada de Addai e suas palavras inaudíveis. Ele se lembrou do quanto Addai tremia quando a casca humana de Mine começou a rachar, substituindo a pele cor de pêssego por uma cor etérea e brilhante. Mine também se lembrou do momento em que parou de brilhar, segurando o núcleo da instabilidade nas mãos enquanto ele esvanecia e incorporava-se em seu próprio corpo. Nesta fatídica memória ele recordou que, onde quer que estivesse, aquele lugar era lindo e as ondas do mar gentilmente faziam cócegas em sua pele. Não demorou muito para que gotas quentes pingassem em sua pele também, principalmente em suas bochechas enquanto ele olhava para o sol no horizonte.
Um calafrio repentino percorreu o corpo de Mine, fazendo com que suas mãos ficassem frias e úmidas bem como seus pés. Rito suspirou e afagou o cabelo de seu sobrinho novamente.
Mine não queria deixar ninguém preocupado. Ele era especialista em se virar muito bem, obrigado. O pior era sentir as gotas úmidas e quentes fantasmagóricas caindo em seu corpo, como se sua pele quisesse punir sua mente e coração por ter feito aquilo.
“Mine?” Rito chamou, virando o rosto perturbado de Mine para ele. “Está tudo bem... o garoto está bem e você também... É só explicar pra ele depois que-”
“Não,” Mine interrompeu seu tio com a voz e queixo trêmulos. “Eu... tio... eu não confio nele o suficiente... talvez o Chronos esteja certo sobre os humanos... e-eu... eu não...”
Rito suspirou e fitou seu sobrinho com olhos gentis. “Mine... meu sobrinho querido... minha flor... você precisa parar de duvidar de todos que você conhece,” ele acariciou o rosto de Mine, enxugando as lágrimas douradas que teimavam em rolar nas bochechas de Mine.
“É difícil, tio...” Mine fungou. “Confiar nas pessoas é tão... difícil...” ele murmurou e seus olhos foram ficando cada vez mais cinzentos.
“Eu sei... mas se você se trancar assim... você ficará completamente cinza um dia,” Rito ergueu o queixo de Mine. “Você é radiante, Mine. Não tenha medo de ser você e de mostrar quem você é.”
Mine mordeu o lábio inferior e segurou mais algumas lágrimas que tentavam cair, mas colecionou insucessos. Rito sorriu calorosamente e passou os dedos na franja de Mine, arrumando os fios de cabelo que começavam a colar nas lágrimas.
“Vá. Ele está esperando por você,” Rito disse e assoprou o rosto do sobrinho.
Mine lentamente sentiu seu corpo ficar cada vez mais cansado e pesado até que caiu em um sono tão profundo quanto antes. Ele adormeceu sem poder protestar ou questionar seu tio uma última vez antes de voltar para sua realidade amarga.
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