Aidam insistiu: "Então, como você conseguiu fazer aquela magia?"
Respirei fundo, ciente de que não podia mais evitar a pergunta. "Foi um acidente," comecei, observando minhas mãos ainda marcadas pelas queimaduras. "Eu estava tentando criar um show de luzes para Evelyn, mas algo deu errado. Usei uma mistura de produtos químicos que consegui e... as coisas saíram do controle."
Aidam balançou a cabeça, visivelmente impressionado. "Você realmente tem talento, Kiel. Aprender a usar magia tão cedo é algo que poucas crianças conseguem. Mas precisa ser mais cuidadoso. Magia não é algo para crianças. É complicado… Como você conseguiu? Você entende equilíbrio químico ou como reagir a matéria?”
"Eu só pensei em fazer a energia primordial dar força aos reagentes; eles fizeram o resto," admiti, olhando diretamente para Aidam. "Não sei explicar, mas é como se eu pudesse senti-la, manipulá-la de uma maneira que... parece natural para mim."
Aidam franziu a testa, pensativo. "Isso é interessante, Kiel. A verdade é que sua mãe explicou de forma muito simplista como realmente funciona a magia, E... aparentemente aquela mistura fez isso acontecer naturalmente."
Assenti, compreendendo a situação. "Como funciona então? Se eu fiz errado?"
Aidam sorriu, relaxando um pouco. "Fica entre nós, mas sua mãe parece não gostar da ideia de magia sendo ensinada para vocês, e eu não sei o motivo."
"Notei isso," respondi.
Aidam sorriu de forma calma e explicou: "A coisa é que... 'magia' não é bem como as histórias contam. Na verdade, é mais como um tipo de energia especial que existe em tudo ao nosso redor, como o vento ou a luz do sol. Não é algo místico, é real. Com o tempo, os seres vivos, como nós, aprenderam a usar essa energia. E para isso, nossos corpos desenvolveram partes especiais, como o Encéfalo Arcano."
Ele fez uma pausa, vendo se eu estava acompanhando.
"Esse nome parece complicado, mas o Encéfalo Arcano é como um cérebro mágico dentro da nossa cabeça. Ele nos ajuda a lembrar das coisas que aprendemos sobre o mundo e a usar essa energia para fazer coisas incríveis, como mover objetos ou criar luz com um pensamento. É como se fosse uma chave para abrir todas as possibilidades que já conhecemos."
Aidam respirou fundo antes de continuar: "Sabe, cada ser vivo tem um momento diferente em que sua 'magia' é possível de ser praticada. Mas, com o tempo, menos pessoas acabam usando magia de verdade. Só que ainda existem aqueles que se dedicam tanto a isso que nem as armas conseguem pará-los com facilidade. E é aí que entram as Estrelas de Gowve. Dá pra sentir a força de um mago com os sentidos! Cada mago tem uma aura — é como uma luz invisível que sai dele, vinda do Encéfalo Arcano."
Ele notou que eu estava começando a me distrair, então se inclinou na minha direção, com um sorriso animado.
"Deixe-me continuar, vai ser rápido. Sabia que é possível um cego 'enxergar' sem a visão, graças a esse conjunto? Feche os olhos. Quando faz isso, seu corpo troca para outro nível de percepção, substituindo a visão. Você passa a ver a energia primordial, manifestada como auras, num mundo escuro. A energia primordial é mais concentrada perto da matéria, como esta mesa. Isso é o que chamamos de Estrelas de Gowve. Quanto mais concentrada a energia primordial, mais intensa e colorida é a aura ou a luz que sai dela, mas não é uma luz qualquer... é outra luz."
Ele fez, novamente, uma pausa, certificando-se de que eu estava acompanhando, antes de prosseguir.
"Existem sete espectros visíveis de aura, conhecidos tanto pelo nosso sexto sentido quanto pela ciência, além de um oitavo especulativo: preto, vermelho, laranja, amarelo, bege, branco, azul e, por último, roxo. Quanto mais energia primordial se concentra e mais poderoso o mago, mais a aura se aproxima do azul. Você ainda não consegue ver a minha aura ou a da sua mãe porque sua sensibilidade não está desenvolvida o suficiente."
"Pai, é muita coisa para absorver de uma vez," respondi, sentindo-me sobrecarregado com a enxurrada de informações que ele acabara de despejar.
"Sim, acho que me empolguei um pouco," disse ele, rindo.
Deixei escapar um suspiro e inclinei minha cadeira em 45 graus no limiar da queda, tentando relaxar ao som dos instrumentos suaves da festa ao redor. Mas na minha mente, um turbilhão de pensamentos se formava.
Eu me vi perdido em pensamentos sobre o novo universo que acabara de se abrir diante de mim. Um mundo diferente, cheio de mistérios insondáveis: estruturas colossais, talvez erguidas por civilização antiga que há muito se perdeu nas areias do tempo; um céu que não abrigava estrelas como as que eu conhecia, mas sim uma nebulosa, um véu de gases brilhantes que escondia segredos inimagináveis.
O cosmo acima de mim se revelava em toda a sua grandiosidade.
Um arrepio percorreu meu corpo, não de frio, mas de excitação pura, um êxtase indescritível.
O frio da montanha penetrou cada fibra do meu ser, mas eu o acolhi como um lembrete de que estava vivo, verdadeiramente vivo, em um mundo cheio de maravilhas desconhecidas.
Essa era a essência do ser consciente, o desejo ardente de conhecer, de entender, de explorar! Não havia nada mais poderoso do que essa vontade insaciável de desvendar os segredos do universo, de expandir os horizontes do conhecimento.
E naquele momento, olhando para o cosmos, senti um estranhamento profundo com tudo ao meu redor, como se fosse parte de algo muito maior, totalmente diferente. Minha alma queimava com a paixão de descobrir, de viver, de experimentar cada nuance deste mundo misterioso.
"Mano, você vai cair da cadeira," a voz de Evelyn cortou o ar, puxando-me bruscamente de volta à realidade. E, como se suas palavras fossem uma profecia inevitável, no exato momento em que me virei para ela, o equilíbrio me abandonou, e eu caí para trás, sentindo o chão frio me receber de forma brusca.
"Ai," resmunguei com as dores, "Estou bem."
Enquanto me deitava ali no gramado, ainda sentindo o impacto da queda, percebi que aquela simples queda, em meio a toda a grandiosidade que havia acabado de testemunhar na minha mente, era um lembrete de que, não importa o quão vasto fosse o universo, eu ainda era apenas uma criança frágil.
Mas, ao mesmo tempo, sentia uma certeza crescendo dentro de mim: estava pronto para desbravar cada mistério, cada segredo!
"Levanta logo, tá animado por quê?" questionou Eve.
“Levante-se, Kiel, e venha se sentar na mesa,” ordenou minha mãe, sua voz carregada de uma autoridade firme. Ela colocou a bandeja sobre a mesa, revelando um pássaro assado, dourado e suculento, que exalava um aroma que fez minha boca se encher de água instantaneamente.
“E não fique se inclinando assim na cadeira, você vai acabar se machucando de verdade... O tipo de filho que estou criando, totalmente deliquente, isso é tudo culpa sua Aidam” reclamou e brincou ao mesmo tempo, olhando-me com aquela expressão preocupada que só as mães sencientes fazem.
"Ei, Sou um bom pai!" disse ele olhando para minha mãe que não tinha uma expressão convidativa, parecendo estressada com algo além desta festa e do meu espétaculo perigoso.
Nunca foi assim nas vidas anteriores, sempre jogado a propria sorte quando não literalmente devorado por elas, as mães mais egoistas, claro... ha ha...
Prefiro assim, pensando bem.
“Desculpe, mãe,” respondi, erguendo-me do chão com um sorriso sem jeito. “Prometo tomar mais cuidado.”
Evelyn riu, colocando a jarra na mesa e puxando uma cadeira para se sentar ao meu lado. “Quero ver você cumprir essa promessa, Kiel. Você sempre descumpre elas, lembra quando disse que iria comigo até a fonte e depois fingiu que não lembrava?”
"Pare, isso é mentira, eu faço tudo por você ingrata" Respondi.
Todos nós nos acomodamos ao redor da mesa, com as lâmpadas flutuantes iluminando suavemente nossos rostos. A carne de ave foi servida, e meus olhos brilharam ao ver o pedaço que minha mãe colocou em meu prato. A suculência da carne, combinada com os temperos aromáticos, fazia cada pedaço parecer uma explosão de sabores na minha boca. Eu saboreava lentamente, fechando os olhos a cada mordida, deixando que o gosto se espalhasse, trazendo uma sensação de conforto e familiaridade.
“Não coma apenas carne, senão vai faltar nutrientes importantes” disse minha mãe, enquanto cortava um pedaço para Evelyn.
“Ah, mas essas folhas e frutas não me interessam... tudo bem” respondi.
Ela arqueou uma sobrancelha, claramente não convencida, mas decidiu não pressionar. “Ok, mas lembre-se que a carne toda não é sua.”
“Eu sei, mãe,” falei, com um tom suave.
A conversa fluiu de maneira natural entre nós. Falamos sobre o ano que estava terminando, lembrando de momentos engraçados e problemas superados.
Enquanto comíamos, olhei ao redor, apreciando o ambiente ao nosso redor. A chapada era um lugar mágico à noite, com as gases tomando o papel das estrelas no céu e iluminando tudo.
...
Bastante tempo se passou, quando todos terminamos de comer, as pessoas começaram a se levantar e a se organizar para a virada do ano. A tradição era lançar lanternas no céu, cada uma carregando um desejo ou uma promessa para o novo ciclo. Eu, Evelyn e minha mãe nos juntamos ao grupo, pegando nossas lanternas.
As lanternas eram feitas de papel translúcido, cada uma decorada com símbolos e padrões coloridos. Quando acesas, elas iluminavam-se de dentro para fora, brilhando como pequenas estrelas.
Nina, Nene, Nelco, a mãe de Nene, a senhora da padaria... vários Néfos, posicionados com suas lanternas por toda parte.
Enquanto preparava a minha lanterna, observei o céu, onde a nebulosa acima de nós parecia pulsar com vida, suas cores vibrantes de verde e azul em movimento como núvens, porém, quase estáticas.
“Vamos fazer nossos desejos,” disse minha mãe.
Concentrando-me em ver a face da minha mãe enquanto todos estavam de olhos fechados - Aidam, minha irmã e todos os outros - devido a tradição desse mundo.
O que vi me comoveu, vi ela chorar pela primeira vez.
Ao ver minha mãe chorar, senti meu coração apertar de uma forma que nunca tinha experimentado antes. Aquela mulher forte, sempre tão firme e inabalável, agora deixava transparecer uma vulnerabilidade que eu jamais havia imaginado. As lágrimas silenciosas que escorriam pelo seu rosto, iluminadas pela suave luz da lanterna, contavam uma história que eu não conhecia completamente, mas que de alguma forma parecia ecoar nas profundezas da alma dela.
Ela estava perdida em pensamentos, numa introspecção para si. Era como se, naquele momento, o tempo tivesse parado para ela, e tudo o que restava era a dor e a lembrança de algo que eu não podia tocar. Aidam, ao lado dela, estava de olhos fechados, alheio ao que eu estava testemunhando. Evelyn também tinha os olhos fechados, concentrada em seu desejo, inocente e alheia ao turbilhão de emoções que nossa mãe estava enfrentando.
Ela respirou fundo, tentando conter o soluço que ameaçava escapar. Sua mão tremia ligeiramente enquanto segurava a lanterna, como se estivesse lutando para manter o controle. Eu não sabia o que fazer, se deveria abraçá-la ou simplesmente fingir que não vi, mas algo dentro de mim me impediu de quebrar aquele momento. Era como se ela precisasse vivê-lo sozinha, sem testemunhas, sem ninguém para oferecer conforto.
Assim como a minha dor, que permanece oculta e impenetrável para os outros, os momentos em que sofri — a morte silenciosa de partes de mim, a agonia implacável da realidade, o desmoronar da minha sanidade — são exemplos de fardos que apenas quem os viveu pode verdadeiramente compreender. São dores solitárias, feridas profundas que carregamos sozinhos, enfrentando-as no silêncio de nossa alma, onde nenhum consolo externo pode alcançar.
Então, ela sussurrou, quase inaudível, mas eu consegui captar: "Por tudo o que perdi... e por tudo o que ganhei."
Era um lamento, uma oração, uma aceitação. Suas palavras carregavam um peso que eu não conseguia entender completamente, mas que me tocavam profundamente. E ali, na vastidão daquele céu, silenciosamente, eu percebi que minha mãe não era apenas a figura forte que tive a impressão. Ela era uma mulher que tinha lutado, sofrido, perdido e, mesmo assim, continuado a seguir em frente.
De repente, ela olhou para mim. Nossos olhos se encontraram, e por um instante, vi algo mudar em sua expressão. Ela sorriu, um sorriso melancólico, mas cheio de amor. Um sorriso que parecia dizer que estava tudo bem, que ela estava pronta para deixar o passado para trás e abraçar o presente de novo, com todos os seus desafios e alegrias.
Minha mãe então soltou a lanterna, deixando-a subir lentamente para o céu, levando consigo os desejos que ela havia feito, as mágoas que ela havia carregado, e as esperanças que agora abraçava. Aidam e Evelyn seguiram seu exemplo, soltando suas lanternas também, e logo o céu estava cheio de pequenos pontos de luz, flutuando suavemente em direção ao cosmo.
Quando chegou a minha vez, percebendo quando eles olharam para mim - sim, esqueci de lançar a minha - segurei a lanterna por um segundo a mais, refletindo sobre o que tinha acabado de presenciar. Fechei os olhos e fiz meu desejo, mesmo que seja algo fútio e que não vá se realizar por este ato, não custa nada transparecer minha vontade lançando o item: "Que isso não se expire" disse baixinho, referindo-me a essa condição de vida.
O vento começou a soprar suavemente, fazendo as lanternas balançarem levemente enquanto subiam. A nebulosa acima de nós parecia responder, suas cores se constrastando com a luz laranja das lanternas, criando uma visão de tirar o fôlego.
O céu estava cheio de luz, e o mundo parecia em paz.
E enquanto as lanternas continuavam a subir, levando nossos desejos para o infinito, senti uma onda de gratidão pela Entidade que me botou aqui.
Eu não estava mais sozinho.
Elas subiram lentamente, flutuando para o alto. Fiquei ali, observando até que minha lanterna se misturasse com as demais, tornando-se parte de um enxame de velas.
“Feliz ano novo, Kiel,” sussurrou minha mãe, passando o braço ao redor dos meus ombros e me puxando para um abraço apertado.
“Feliz ano novo, mãe,” respondi, bem, mas não muito emocionado.
Enquanto as luzes das lanternas se afastavam, iluminando o céu noturno, percebi várias outras se juntando ao redor, vindo de toda a região, de diversos lados, de outras comunidades e cidades.
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