Após as conversas animadas sobre o novo ano, e após terminarmos de lançar as lanternas, minha mãe decidiu que já era hora de dormir. Ela nos levou para casa. Evelyn, relutante, mas já com o sono pesando sobre seus olhos, cedeu primeiro, após dizer que não queria dormir e queria continuar na festa com os adultos.
“Já passa das duas da manhã, Kiel,” disse minha mãe, colocando o cobertor sobre minha irmã. “Zênite logo vai nascer. Vocês precisam descansar.”
Assenti, mas o cansaço ainda estava distante de me dominar. A excitação do que aprendi esta noite, as reflexões sobre o universo e a visão do céu cheio de lanternas ainda fervilhavam na minha mente.
Deitei-me ao lado de Evelyn, que já estava praticamente adormecida. Ela virou-se para mim, piscando lentamente, lutando para manter os olhos abertos.
“Kiel… foi uma noite legal, não foi?” murmurou, com a voz suave e cheia de cansaço.
“Sim, foi incrível,” respondi, olhando para o teto, onde a luz fraca das lampadas entrava pelas frestas, criando desenhos no madeirame até ser desligada por Aidam.
“Certo, durmam bem, mamãe ama vocês” disse Ari antes de fechar a porta.
Fiquei em silêncio por alguns instantes, ouvindo a respiração suave de Evelyn ao meu lado. A noite fora longa e cheia de significado para os habitantes desse mundo.
“Você já parou para pensar, Eve, para onde as lanternas vão?” perguntei, olhando para a brecha no teto, onde os desenhos de luzes fracas das lanternas se afastavam para o além.
Evelyn, mesmo lutando contra o sono, abriu um olho curioso e murmurou, “Elas… sobem e somem, né? Mas pra onde?”
“Para o espaço,” eu disse, tentando manter minha voz baixa para minha mãe não escutar. “Elas vão tão alto que acabam chegando onde não tem mais nada… só escuridão e estrelas.”
Evelyn franziu o rosto, tentando entender. “Espaço? Tipo… o céu? O espaço é lá? O que ele é?”
“Mais longe que o céu. O espaço é onde as estrelas moram, onde tudo parece tão pequeno que a gente mal consegue ver, onde está os sois, os planetas e muitas coisas grandiosas, infinidades inalcançáveis. As lanternas, quando chegam lá, estão carregadas com todos os nossos desejos. É como se mandássemos eles direto para o cosmos, para que ele possa escutar e provê-los.”
“E o cosmos… escuta? O que é o cosmo” perguntou ela, piscando lentamente.
“Gosto de pensar que sim. Que de alguma forma, lá fora, onde as estrelas brilham, os nossos desejos encontram um lugar para serem vistos por alguém. Talvez, por uma Entidade que só quer o nosso bem, com o poder de realizar feitos além da realidade concebível.”
Ela ficou quieta por um momento, refletindo. “Então… quando eu faço um pedido pra lanterna todo ano… ele vai pro espaço?”
“Isso mesmo. Ele vai para um lugar onde todas as coisas importantes ficam guardadas. Talvez seja por isso que a gente se sente tão bem fazendo os pedidos, porque eles estão indo para um lugar onde podem ser vistos por outrem, que não estamos sozinhos”
Evelyn sorriu, já com os olhos fechando de novo. “Gostei disso, Kiel… Eu… vou sonhar… com minhas lanternas…”
“Vai ser um sonho com significado” respondi, mas percebi que ela já estava adormecendo, suas palavras se transformando em murmúrios suaves.
Continuei falando, mesmo sabendo que ela não estava mais escutando. “Acho que, no fundo, todos temos desejos. Carregamos desejos e sonhos, esperando o momento certo para brilhar no céu do cosmos…”
---------------------
Como eu sei de tudo isso? De todos esses conceitos cósmicos que parecem tão distantes do nosso mundo?
Evelyn, você não sabe, mas eu não sou apenas o seu irmãozinho que você sempre conheceu, aquele que está sempre ao seu lado, rindo das mesmas piadas e correndo pelos campos.
A verdade é que há uma história muito mais sombria por trás desse sorriso, algo que eu nunca quis para mim, e muito menos para você.
Eu sinto muito, Evelyn, eu nunca pedi por isso… Nunca desejei que as coisas fossem assim.
Dentro de mim, há uma verdade cruel que tenho carregado, uma verdade que me assombra a cada momento. Acontece que eu… eu não sou quem você pensa.
Eu não sou verdadeiramente o seu irmãozinho, aquele que deveria estar aqui, vivendo uma vida simples e feliz ao seu lado. Aquele ser, o verdadeiro Kiel, ele… ele pode ter sido destruído, apagado, pela minha existência. A alma dele, tão pura e inocente, foi consumida pela minha, que é antiga e carregada de uma escuridão que você não pode nem imaginar.
Você não merecia isso, Evelyn. Nunca mereceu. Você merecia um irmão verdadeiro, alguém que fosse genuíno, que compartilhasse a sua alegria sem o peso desse segredo terrível. Eu… eu sou um impostor, um falso irmão, condenado a ocupar o lugar de quem deveria estar aqui, ao seu lado.
A verdade, é que eu sou uma criatura muito antiga, tão antiga que já perdi a conta das eras que se passaram. Não há lembrança clara de um passado distante, apenas fragmentos de memórias que me assombram. Eu sou um ser condenado a reencarnar, vida após vida, como uma punição pelos atos horríveis que cometeu em tempos imemoriais. Cada reencarnação é uma tentativa de expiação.
Conheci um universo vasto e diferente, um lugar de maravilhas e horrores que você nem pode imaginar. Vi buracos negros devorando estrelas, galáxias colidindo em um espetáculo de destruição, nebulosas que brilhavam com a luz de mil sóis, mundos além da conta, habitados por seres que desafiam a compreensão.
E aqui… aqui eu não vejo essas coisas. Onde está o universo no céu, Evelyn? Onde estão as estrelas que deviam iluminar nossas noites? Tudo o que temos são quatro sóis, queimando implacavelmente, e incontáveis mundos presos em um emaranhado de nébulas. O que isso significa? Qual é o propósito deste lugar, deste mundo? Será que estamos em algum canto esquecido do cosmos, onde a luz das estrelas não pode alcançar?
Mais uma vez, eu te peço perdão, Evelyn. Continuarei mentindo, ocultando a verdade de você, de nossa mãe, de todos. Não quero destruir o que ganhei aqui, esse fragmento de paz que, mesmo frágil e baseado em mentiras, ainda é tudo o que eu tenho.
Eu sou carente, carente de amor, de pertencimento. Após mil vidas de sofrimento e solidão, tudo o que eu precisava era de uma família, uma família que pudesse, por um instante:
Tirar o peso dessas mil vidas das minhas costas.”
----------------------
Os pensamentos me arrastaram para o vazio das minhas vidas passadas, cada uma marcada por um sofrimento que ainda latejava na memória. Sai de uma espiral de otimismo para um abismo do silencio, que me trouxera a mente tudo aquilo que me aterrorizou por um período incontável de ciclos.
O primeiro trauma que me assaltou foi o de parasitas, criaturas pequenas e implacáveis num mundo selva difícil de tolerar, eles infestavam meu corpo. Um ser pequeno, de pele fina e quente, cujo único propósito era sobreviver. Mas os parasitas... Eles se enfiavam sob a pele, escavando túneis através da carne, sugando cada gota de energia vital. A dor era constante, como se minha carne estivesse em chamas, mas o pior era o desespero. Sentir-se devorado, sabendo que não havia escapatória, era um terror que só crescia, minuto a minuto, até que tudo em mim implorava pelo fim.
Mas o fim não trazia alívio. Morrer e ser lançado ao pós-vida era uma experiência de agonia indescritível. Cada vez que eu cruzava a fronteira entre a vida e a morte, era como ser rasgado em pedaços. A consciência lutava para se manter inteira enquanto era puxada para fora do corpo, um processo tão doloroso que parecia que cada fio de minha existência estava sendo arrancado à força. O vazio do pós-vida, um lugar onde o tempo e o espaço perdiam todo o significado, era uma extensão dessa dor, uma eternidade onde a esperança não podia penetrar, e onde a única companhia era o eco da própria angústia.
Em outra vida, fui um animal criado para o abate, em uma fazenda de carne. Lembro da espera, do cheiro de sangue que pairava no ar, do som das correntes que tilintavam enquanto éramos conduzidos, um por um, ao nosso destino. A sensação de saber que a morte estava próxima, mas não poder fazer nada para evitá-la, era sufocante. O medo permeava cada célula do meu ser, e quando finalmente chegou a minha vez, a dor de ser cortado, de sentir a vida escorrendo, foi quase um alívio. Mas até esse alívio era passageiro, pois a consciência permanecia, observando enquanto meu corpo era despedaçado.
Em outra vida, fui um pet em um planeta distante, um ser doméstico preso à vontade de seus donos. Era uma vida de confinamento e abuso, onde cada dia era uma nova tortura. Eu era usado para diversão, para trabalho, sem respeito ou compaixão. A fome era constante, o frio cortava os ossos, e os golpes eram frequentes. Cada cicatriz no meu corpo contava uma história de dor, e a sensação de impotência me corroía por dentro. Não havia como lutar, não havia como fugir. Eu era um prisioneiro em meu próprio corpo, condenado a uma existência de sofrimento.
E havia também aquelas vezes em que fui caçado, correndo por florestas desconhecidas, sentindo o cheiro da morte se aproximando. Ou quando fui devorado vivo por predadores mais fortes, sentindo suas mandíbulas rasgarem minha carne, o sangue quente escorrendo, enquanto a vida escapava de mim. Em outras ocasiões, doenças dolorosas consumiam meu corpo lentamente, cada respiração uma luta, cada movimento um tormento.
Essas experiências se misturavam, se entrelaçando em minha mente, como um tecido de dor que nunca se desfiava. Cada vida, cada corpo que habitei, trazia consigo uma nova forma de sofrimento, uma nova lição cruel sobre a fragilidade da existência. E, no fundo, sabia que tudo isso era parte de mim, que esses horrores moldavam a minha alma, transformando-me no que sou agora.
A quietude da noite, que deveria trazer paz, se tornou um campo de batalha, onde essas lembranças lutavam para emergir, para me sufocar. Eu tentava afastá-las, tentava me ancorar no presente, mas elas sempre voltavam, implacáveis, como fantasmas famintos que nunca poderiam ser saciados. Só de pensar que eu podia ainda voltar a sentir tudo isso me mantinha preso a essa vida confortável como escassez inalienável, confio na entidade, mas não me agarro em certezas.
Os minutos se arrastaram, e posteriormente, horas, e eu continuei acordado, sentindo a quietude da casa ao meu redor. O silêncio noturno era tão profundo que podia ouvir o vento lá fora, e nada mais (um contraste absoluto com o barulho incessante de Parrios durante o dia), passando entre as árvores e assobiando levemente nas frestas da casa. O tempo parecia se esticar, e o sono, normalmente tão fácil de alcançar, me evitava com a angústia do passado.
Eu me remexi no colchão, tentando encontrar uma posição confortável. As cordas rangiam sob o peso do meu corpo, e o tecido áspero dos lençóis não ajudava a acalmar a inquietação que me dominava. Cada vez que fechava os olhos, a mente se enchia de pensamentos soltos, como se o silêncio da noite amplificasse as vozes internas que normalmente se perdiam no barulho do dia.
Suspirei, frustrado. O sono não viria. A sensação de estar preso em um ciclo interminável de pensamentos era sufocante, como se o ar estivesse pesado demais para ser respirado. Senti o calor no quarto aumentar, mesmo que o vento frio lá fora tentasse invadir pelas frestas da janela.
Finalmente, joguei as cobertas para o lado e me sentei na beira da cama rebaixada. Os pés tocaram o chão de madeira fria, enviando um arrepio pela espinha. A penumbra do quarto era familiar, mas ao mesmo tempo parecia estranha naquela noite.
Levantei-me devagar, cuidando para não fazer barulho e acordar Evelyn ou minha mãe. O rangido da porta foi um desafio, mas consegui abri-la sem grandes incidentes. Saí para o corredor, onde o escuro parecia mais denso, quase palpável.
A varanda era pequena, com tábuas de madeira que rangiam levemente sob meus pés descalços. A noite estava quieta, com apenas os sussurros do vento e o ocasional som distante de uma Cuja, um animal que uiva a noite, sendo ativo nesse horário. O céu ainda estava escuro, mas um leve brilho azul começava a aparecer no horizonte, prenunciando o nascimento de Zênite.
Enquanto me inclinava sobre a balaustrada, tentando absorver a tranquilidade daquele momento, um leve movimento dentro de casa chamou minha atenção. Virei a cabeça na direção do som e notei uma luz fraca vinda de dentro, um brilho azul suave que pulsava em contraste com as lampadas amarelas de nosso domicílio. Curioso, voltei para dentro, movendo-me o mais silenciosamente possível, temendo quebrar a quietude da casa.
Segui a luz até a pequena sala, onde minha mãe estava sentada à mesa. Ela parecia absorvida no que estava fazendo, os olhos fixos em algo que não consegui identificar de imediato. Sua expressão era séria, concentrada, como se estivesse lidando com algo muito importante. Eu me aproximei um pouco mais, tomando cuidado para não fazer nenhum som que pudesse alertá-la da minha presença.
O que será que ela está fazendo?
Comments (0)
See all