Sentado à mesa, eu mal podia conter minha inquietação. Evelyn estava ao meu lado, suas mãos pequenas repousando no colo, os dedos brincando com o tecido do vestido como se tentassem dissipar a ansiedade. Mamãe havia nos convocado para essa reunião familiar, e o clima na sala era esquisito, como se as palavras não ditas estivessem difíceis de sair por parte dela.
Ari olhava para Aidam, parecia mais resoluta do que nunca. Aidam, estava em pé, incerto sobre o que seria tratado, e o desconforto em seu rosto era palpável. O silêncio pairava no ar como uma névoa espessa, e eu sabia que algo grande estava por vir.
Depois da madruga em que espionei ela, era obvio que ela iria falar para ele sobre ir até a uma Torre Negra.
“Então, querida,” começou Aidam, sua voz rompendo o silêncio. “Qual é o motivo dessa reunião repentina?” Ele a encarava com os olhos estreitos, uma mistura de curiosidade e apreensão.
Mamãe manteve o olhar fixo nele por um momento antes de responder, sua voz calma, mas firme. “Nós vamos viajar.”
As palavras dela ecoaram na sala, e o silêncio que se seguiu foi ainda mais profundo. Aidam piscou, claramente surpreso, e seus olhos se estreitaram. “Viajar? Para onde, e por quê, assim de repente, sem aviso?”
“Eu preciso ir até uma torre negra perto de Borleux, a maior cidade de Florem,” disse ela. “Preciso encontrar algo lá.”
Papai balançou a cabeça, confuso e contrariado. “Ari, nós decidimos juntos que abandonaríamos as explorações, que focaríamos em nossa família, vivendo tranquilamente aqui nessa vila quando Kiel nasceu. Por que voltar a isso agora?”
Mamãe suspirou, seus olhos brilharam com uma mistura de determinação e algo mais — algo que eu não conseguia identificar, mas seu bom humor era nítido. “Eu preciso muito ir, Aidam. Isso será bom para nós, para as crianças. Talvez seja a hora de vivermos viajando, explorando novos lugares… Ou, quem sabe, nos estabelecermos em um lugar com mais recursos, mais oportunidades para o futuro deles.”
Os dois trocavam palavras carregadas, “xxxxxx”… “xxxxxxx”.
Não prestei atenção e Olhei para Evelyn, tentando absorver o que estava acontecendo. A ideia de viajar para lugares desconhecidos me preenchia com uma mistura de excitação, afinal, eu quero muito conhecer novos lugares. Virei-me para minha irmã, querendo compartilhar meus pensamentos. “Talvez seja uma oportunidade para conhecermos outros lugares pelo mundo,” disse em voz baixa, tentando soar otimista.
Evelyn, porém, franziu a testa, e eu vi lágrimas começarem a se formar nos seus olhos. “Mas… vou perder a Nene… e todas as minhas amigas da vila. Eu não quero ir embora.”
Eu não sabia como confortá-la. Era difícil deixar para trás o que conhecíamos e amávamos, e, mesmo querendo ser corajoso, não havia nada vindo a minha mente para confortá-la “Eu entendo, Evelyn. Sei como é difícil desapegar.” Minhas palavras saíram incertas, como se eu tentasse me convencer tanto quanto a ela.
Percebendo as lágrimas de Evelyn, nossa mãe inclinou-se levemente, sua expressão suavizando. “Não vamos perder ninguém, querida. Voltaremos para visitar essa vila, cedo ou tarde. Prometo.”
Ainda assim, a tristeza no rosto de Evelyn não desapareceu completamente. Nosso pai suspirou, voltando-se para Ari com uma expressão que misturava exasperação e preocupação. “Você precisa ser mais sincera comigo, Ari. Não podemos continuar assim, escondendo coisas um do outro.”
Ari encontrou o olhar dele, e algo nos seus olhos parecia estranho, como se tivesse muita insensibilidade presa num rosto de falsidades. “Há coisas que você vai ver com seus próprios olhos quando chegarmos lá, Aidam. Algumas coisas não precisam ser ditas, apenas compreendidas.”
A sala ficou em silêncio novamente, mas desta vez não era o mesmo silêncio de expectativas de antes. Era um silêncio de tensão, de desconforto. Aidam assentiu, ainda um pouco relutante, mas parecia entender que essa jornada era algo que mamãe precisava fazer.
Ela então se levantou, ajeitando a postura e olhando para todos nós. “Vamos? Temos que nos despedir das pessoas da vila.”
Fiquei surpreso, pois tudo parecia tão repentino. “Mas… já?”
Mamãe assentiu. “Já resolvi todos os preparativos. As bolsas estão prontas. Arrumei tudo enquanto vocês dormiam.”
Olhei para Evelyn, que ainda tentava processar tudo, e depois para Aidam, que parecia aceitar, ainda que a contragosto. Algo inevitável estava prestes a acontecer, algo que mudaria nossas vidas. E, apesar do medo do desconhecido, senti uma estranha confiança na decisão dela. Eu queria isso. Queria explorar, viver aventuras. Não conseguia me imaginar vivendo uma vida monótona, pescando no rio e lutando pela subsistência todos os dias. Eu queria mais. Precisava de mais.
(Você vai se arrepender disso, mas, ao mesmo tempo, saberá que tudo te leva a um ponto específico no qual não se arrependerá do que fez. Saiba, criança, depende do ponto de vista, dor também é importante para florescer.)
“Você disse algo, mãe?” perguntei, sentindo ter ouvido algo sussurrado.
“Não, Kiel,” respondeu ela, depois falando em voz alta. “Peguem suas bolsas. Vamos até o celeiro. Nina está nos esperando lá, com Nelco e Nipe.”
…
Enquanto caminhávamos para o celeiro, eu ajustei a alça da minha bolsa pela terceira vez, tentando encontrar uma posição que não fizesse meu ombro doer tanto. O peso parecia dobrar a cada passo, e eu não consegui conter um gemido de frustração.
“Por que essas bolsas são tão pesadas? Não podemos levar menos coisas?” resmunguei, olhando para Evelyn, que parecia ter menos dificuldade em carregar a dela.
Ela riu, dando-me um olhar zombeteiro. “Você deveria ser um homem forte como o papai, Kiel, e não reclamar tanto. Você diz que é corajoso e quer explorar o mundo, mas não aguenta nem carregar uma bolsa?”
Revirei os olhos. “Pelo menos não sou uma bebê chorona como você. Sempre reclamando por causa de coisas pequenas. Nem um pouco resiliente como a mamãe.”
Evelyn parou de andar, franzindo o cenho. “Resiliente? O que isso quer dizer? Você parece um vovô falando essas palavras complicadas.”
Antes que eu pudesse responder, uma voz familiar chamou por Evelyn. Era Nene, correndo na nossa direção com os olhos arregalados e uma expressão ansiosa. “Evelyn, você realmente vai embora? Para sempre?”
Evelyn hesitou, sua mão apertando a alça da bolsa, e eu vi a incerteza se refletir em seu olhar. “Eu… não sei, Nene. Acho que sim. Vamos viajar com mamãe e papai. Mas não sei quando ou se voltaremos.”
"Então eu prometo que vou te encontrar de novo!" disse a Néfo.
Nene abraçou Evelyn com força, e as duas ficaram ali, paradas no meio do caminho, compartilhando um momento de tristeza mútua. Suspirei, sentindo-me um pouco deslocado. “Até você, Nene? Achei que não era tão sensível assim,” murmurei, tentando afastar o desconforto crescente que sentia.
Decidi me afastar delas e fui até Nelco, que estava observando de longe com os braços cruzados. Ele tinha aquela expressão típica dele, meio emburrada, mas notei um brilho de tristeza em seus olhos. Quando me aproximei, ele falou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
“Não vou sentir saudade de você explodindo minhas coisas e rasgando meus livros, Kiel,” disse ele, com a voz um pouco embargada. Mas então, para minha surpresa, uma pequena lágrima rolou por seu rosto. Ele rapidamente a enxugou, fingindo que nada havia acontecido. “É só que… não vou ver o resto da sua família, não você especificamente.”
Eu ri, balançando a cabeça. “Mentiroso! Vai sentir saudade sim.”
Nelco bufou, mas não respondeu, desviando o olhar.
Enquanto todos se ocupavam com as despedidas, fui até onde minha mãe estava, conversando com meu pai e Nipe, o pai de Nene. Nipe é um nelfo baixinho, com pelo azul mais escuro que o normal, e sua voz grave ecoava no celeiro enquanto falava com minha mãe.
“Essas viagens são perigosas, Ari. Borleux é longe e tem muitas áreas complicadas no caminho. Vocês sabem que podem voltar para cá se as coisas não derem certo.”
Mamãe sorriu gentilmente. “Obrigada, Nipe. Sabemos disso, mas temos que seguir em frente, ver o que está além daqui. E, quem sabe, encontrar um novo lar.”
Nipe assentiu, embora o pesar fosse evidente em seu rosto. “Cuidem-se, todos vocês.”
Nipe nos conduziu para a parte de trás do celeiro, onde duas enormes aves nos aguardavam em silêncio. Elas eram magníficas, com plumagens que variavam em tons de marrom profundo e verde dourado, refletindo a luz do sol zênite de uma forma quase hipnotizante. As penas brilhavam suavemente, criando um jogo de luzes que dançava sobre seus corpos elegantes. As patas das criaturas eram poderosas, lembrando as de uma montaria robusta, mas com garras afiadas que cravavam levemente no solo de terra batida, prontas para partir a qualquer momento. Seus olhos, grandes e inteligentes, observavam-nos com uma curiosidade alerta enquanto as aves inclinavam suas cabeças de um lado para o outro, captando cada movimento ao redor.
Nipe se aproximou de uma das aves, pousando a mão carinhosamente sobre seu dorso. Ele deslizou a palma pelo manto de penas sedosas, transmitindo uma energia calma ao animal, que respondeu com um leve bater de asas. "Essas meninas aqui são leais e inteligentes," começou ele, a voz embargada por uma emoção que ele tentava disfarçar. "Elas vão levar vocês até o destino e voltar sozinhas. São bem treinadas, sabem o caminho de volta." Ele fez uma pausa, seus olhos encontrando os meus por um breve momento. Havia algo ali, uma mistura de tristeza e esperança que parecia pesar em cada palavra que ele dizia. "Espero que voltem um dia," completou ele, a voz baixa, quase como se falasse para si mesmo.
Aidam, ao meu lado, deu um passo à frente, rompendo o silêncio que se formara. Ele subiu na primeira ave com uma facilidade que parecia natural, como se já tivesse feito isso inúmeras vezes. Com um gesto firme e seguro, ele estendeu a mão para mim, seus olhos transmitindo uma confiança que eu desesperadamente queria espelhar. "Vamos, Kiel," disse ele, sua voz soando como um convite e uma ordem ao mesmo tempo.
Respirei fundo e segurei a mão dele, deixando que me puxasse para o alto da sela. O dorso da ave era surpreendentemente quente sob minhas mãos, e senti o animal se ajustar ao meu peso enquanto eu me acomodava.
Olhei para o lado e vi mamãe fazendo o mesmo com Evelyn, ajudando-a a subir na outra ave com um cuidado maternal. Ela segurou Evelyn com firmeza, envolvendo-a num abraço protetor enquanto se acomodavam na sela. O olhar de Evelyn ainda estava úmido.
Logo as aves começaram a se mover, devagar.
Antes de partirmos a uma longa distância do celeiro, olhei para trás uma última vez. O cenário que vi fez meu peito insensível se apertar levemente apesar da minha frieza.
Nipe, Nina e Nelco estavam parados ao lado do celeiro, os três alinhados como se formassem uma barreira de emoções que eu sabia que seria difícil de atravessar. Nipe mantinha a mão levantada em um aceno suave, enquanto Nina e Nelco, de mãos dadas, tentavam esconder as lágrimas que brotavam em seus olhos.
As árvores ao redor do celeiro lançavam sombras longas e sinuosas no chão, criando um contraste entre a luz e as sombras dos montes. A vila ao fundo parecia menor do que nunca, como se estivesse sendo lentamente engolida por fumaça, envolta em uma aura de tranquilidade que eu sabia que sentiria falta as vezes.
As aves começaram a se mover com um leve balançar, seus passos inicialmente hesitantes se tornaram cada vez mais velozes. O movimento era suave, mas poderoso, e senti uma onda de emoção me atravessar.
Era real. Estávamos realmente partindo. O peso da decisão se fez sentir, e a excitação misturou-se com o querer do conhecer, criando um turbilhão de sentimentos que fazia meu coração bater mais rápido.
O vento começou a soprar mais forte à medida que as aves corriam velozes, seus músculos flexionando-se sob o esforço de nos carregar. Segurei firme nas cordas, sentido a adrenalina da corrida veloz da montaria.
Os contornos familiares do celeiro, as árvores e as casas da vila começaram a se fundir num borrão de cores à medida que desciamos a montanha, deixando para trás o que conhecíamos.
Nipe, Nina e Nelco ficaram menores à distância, mas continuaram a acenar até que se tornaram apenas pontos no horizonte.
Enquanto voávamos para longe da vila, metaforicamente, deixando tudo para trás, eu sabia que não ficaria estagnado naquele lugar, embora tivesse sido agridoce a despedida repentina.
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