Capítulo 2 - O cajado azul
A taberna do Observador Caolho era bem iluminada por uma lareira e várias lanternas a óleo espalhadas, que junto com o calor de todos os presentes fazia Zach se sentir como na casa da sua mãe. O ar era denso com o aroma de comidas, temperos, bebidas e suor, carregando o alto e ininteligível barulho de múltiplas conversas, risadas e algumas pessoas cantando. Wees vivam em média até os cento e sessenta anos, o que fazia com que as reuniões de família se tornassem sempre em grandes eventos. E, de certa forma, era assim que ele se sentia naquele momento.
Por estar localizado a apenas quinhentos metros da estrada principal do reino de Shalamar, o vilarejo de Berespar recebia um grande fluxo de viajantes o ano inteiro, o que sempre trouxe muitas moedas para a economia local e permitia que todos tivessem trabalho e um mínimo de renda. Geralmente eram os viajantes e os comerciantes locais de maior sucesso que sentavam-se às mesas. Os menos afortunados ficavam em pé, escorados em algum lugar e tentando beliscar algum resto de comida e bebida, às vezes alegrando as pessoas com uma canção para ganhar algum trocado e gastá-lo imediatamente com cerveja. Zach estimou algo em torno de sessenta pessoas presentes no local.
“Hmm, igualzinho o da mamãe!”, disse e mordeu uma perna de peru que inexplicavelmente foi parar em suas mãos. Navegava rapidamente em meio ao oceano de pernas gigantes, quase tropeçando nos pés que se moviam inadvertidamente no meio do seu caminho e tentava sem muito sucesso desviar dos restos de comida que voavam das mesas em sua direção. Sua cabeça passava poucos centímetros da altura das mesas e a chacoalhava toda hora para retirar os farelos de pão que se acumulavam, ao mesmo tempo que olhava para todos os lados procurando possíveis candidatos para se unir a ele e Rob.
Seus pés o propeliam com agilidade e suas mãos encontravam objetos perdidos que ele poderia futuramente devolver para os irresponsáveis donos que os perderam. Achava os humanos muito descuidados com os seus pertences.
Ao chegar no extremo oposto da taberna, viu algo debaixo de uma mesa - ou seja, logo à sua frente - que chamou sua atenção. Diferente da maioria que vestiam sandálias ou outros calçados de baixa qualidade, esta pessoa calçava um belo e aparentemente caro par de botas de couro de cabra, ainda em bom estado, mas que claramente já tinha visto algumas semanas de estrada. Cobrindo suas calças, caía uma bela túnica azul marinho decorada com bordas brancas com símbolos arcanos em dourado. Mas o que mais chamou sua atenção foi um cajado de madeira, liso e branco como marfim, decorado no topo com garras metálicas que seguravam um cristal azul do tamanho de um abacate.
Sem que percebesse ou que pudesse se controlar, suas pequenas mãos tentaram encostar no cajado mas, antes que o fizesse, ouviu um sussurro no pé do seu ouvido, congelando o lóbulo de sua orelha. Em seguida seu corpo foi todo tomado por um calafrio fazendo-o recuar imediatamente. Olhou para cima e encontrou os gélidos olhos azuis da maga o encarando.
“Cuidado, Pequeno. Eu ainda não jantei e ouvi dizer que a carne de Wee é bem suculenta.”
“Como assim?”, disse Zach, dando um passo para trás. “Você já comeu algum Wee? Será que era alguém que eu conhecia? Meu tio Aristides viajou para Shalamar há mais de um ano e até hoje não voltou. Ah não! Você comeu meu tio Aristides? Ele tinha um metro e trinta centímetros! Era bem alto! Um dos maiores do nosso povo. Ele sofreu muito? Ele estava gostoso?”
“Não, eu não comi nenhum Wee.” ela revirou os olhos. Não tinha muita paciência para o jeito falador dos Pequenos.. “Mas não me importaria de começar hoje! Então xispa daqui e mantenha distância de mim e de meus pertences!”
Eram raras as situações que tiravam o sorriso do rosto de Zacharias e esta era uma delas. Sabia que tinha encontrado um candidato em potencial para o seu chefe. Essa maga parecia muito poderosa e seria de grande valia em qualquer que fosse o trabalho a ser realizado pelo grupo. Foi aí que percebeu que tinha esquecido de perguntar para Rob para onde o grupo iria viajar e qual exatamente era o trabalho a ser realizado. Mas isso pouco importava. Os Wee eram pessoas altamente empáticas e por mais que tivesse conhecido Rob a pouco tempo, já o tratava como um grande amigo e sentia que podia confiar nele.
Levantando as mãos acima de sua cabeça num gesto que demonstrasse que não iria tocar em nada, começou a circular devagar para o lado oposto da mesa sem tirar os olhos da maga. Cuidadosamente, puxou sua cadeira e subiu.
“Por favor, senhorita. Eu venho aqui lhe propor algo de seu interesse e talvez possamos nos ajudar.” disse, em tom sério e respeitoso.
“Eu pareço com alguém que precisa da ajuda de um Wee?” ela perguntou impaciente.
Zach encarou-a em silêncio por uns segundos. Ela estava certa em fazer a pergunta. Por que iria se unir a um estranho? Porém, a arrogância dela era baseada na ignorância ao desdenha-lo sem saber realmente quem era Zach e o que ele tinha a oferecer. Respirou fundo e ofereceu sua melhor resposta.
“Você claramente pertence à Ordem dos Magos pois qualquer mago rebelde não andaria por aí alertando que pratica magia sem autorização da Ordem. E como não existem grandes cidades com presença da Ordem dos Magos perto desta região, significa que você está viajando muito provavelmente em direção a uma dessas cidades. Pelo estado das suas botas, você tem viajado por muitos dias e parou aqui em Berespar para descansar e reestocar antes de continuar sua viagem. Mas…” e aí ele balançou o dedo pra ela e soltou um sorriso de canto de boca. “Berespar não está no caminho de nenhuma das cidades da Ordem, o que significa que você está provavelmente no meio de algum teste. Dependendo do grau do teste e, pela sua aparência, você não é nenhuma iniciante, você deverá posteriormente fazer uma longa viagem para o norte até a capital do Reino do Escudo Branco, a cidade de Shalamar, também sede da Ordem dos Magos. Viajar sozinha nos dias de hoje pode ser bem perigoso. A guerra dos Escudos Brancos contra os Orcs de Algameia tem diminuído o patrulhamento das principais estradas, pois os soldados estão sendo convocados para os campos de batalha e postos de observação. Coincidentemente, eu e meu chefe, Rob Griffin, o melhor arqueiro de todo o reino…”
“Nunca ouvi falar.”
“Ele também é conhecido pelo nome de ‘A Águia Careca’...?”
“Hmmm… não.”
“Oh, hum, de qualquer forma. Nós estamos também viajando e buscando outros que queiram se unir a nós para que juntos possamos criar um grupo com habilidades heterogêneas e assim cumprir nossos objetivos com maior grau de sucesso. Então? O que acha?”
A maga descansou seu queixo em suas mãos enquanto encarava Zach sem esboçar nenhum movimento facial.
“Ok. Preciso admitir que estou impressionada.”
“Verdade?” Zach disse e arregalou os olhos com um enorme sorriso.
“Sim. Eu achava que voce era um completo idiota.”
“É mesmo?” indagou com um sorriso idiota no rosto. “E agora?”
“Apenas meio idiota.”
"Há! Muita gente acha isso!”, disse e gesticulou com a mão, desconsiderando o insulto. “Geralmente os humanos. E os elfos. Definitivamente os anões! Os gnomos nos entendem melhor. Já os orcs nos odeiam. Não sei porquê. Não fazemos mal a ninguém. Somos um povo pacífico apenas interessado em viajar, conhecer novas culturas, novos lugares, nos espalharmos por aí para depois voltarmos para casa e compartilharmos excitantes histórias de descobrimento. A biblioteca dos Wee é vasta de informação, embora muito desorganizada…”
“Vamos direto ao ponto pequenino. E seja direto nas suas respostas.”
Zach fechou a boca e acenou positivamente várias vezes com a cabeça.
“Qual o destino final de vocês?”
“Não sei.”
“Onde vocês estiveram antes de vir para Berespar?”
“Não sei.”
“Como é que é?”
“Bom, eu sei de onde eu vim, mas conheci o chefe agora a pouco. Não sei por onde ele andou.”
“O que você sabe a respeito do seu chefe?”
Os olhos de Zach brilharam e um largo sorriso apareceu em seu rosto, mas a maga rapidamente o advertiu.
“Respostas curtas e rápidas.”
Zach então encolheu os ombros e suspirou desanimado.
“Ele é um péssimo contador de histórias.”
“Só isso? Um contador de histórias?”
“Bom, aparentemente ele é um excelente arqueiro.”
“Você já o viu usando o arco e flecha alguma vez?”
“Não.”
“E? Mais alguma coisa?”
Zach parou pra pensar.
“Ele, uh, é careca, tem barba ruiva e olhos verdes.”
“Nada disso importa. Quer dizer que eu estou sendo convidada a me juntar a um Wee e um arqueiro careca de habilidade duvidosa? Obrigada, mas acho que não vou aceitar. Tenha uma boa noite.” gesticulou com a mão, pedindo-o para sair da mesa.
“Ah! Esqueci de mencionar que ele cortou as bolas de um necromante com uma faca!”
A maga então reagiu com surpresa, arqueando uma sobrancelha de curiosidade. Mas apenas uma.
Essa maga deve ser uma bela jogadora de cartas, pensou Zach.
A maga tirou um tempo para refletir. Talvez tivesse julgado mal o Pequeno e seu companheiro. Seu instinto lhe dizia que havia algo a mais sobre os dois, mas ela não teria como obter mais informações sentada ali em sua mesa. Olhou de soslaio para o arqueiro do outro lado da taberna e depois para Zach.
“Qual o seu nome?” ela perguntou.
“Zacharias Longsleeves.” disse e estendeu a mão para a maga.
“Azurya Bluestaff.”, ela respondeu e fez uma curta reverência com a cabeça, se recusando a apertar a mão de um Wee.
“Nossa! Que nome lindo! Posso te chamar de Azu ou Zuzu?”
"Não.”
“Ah…”
“Agora vamos até a sua mesa para que eu possa conhecer o seu chefe.” ela disse, se levantou e gesticulou para que Zacharias fosse na frente. Ela não tinha coragem de perder o Wee de vista.
Comments (0)
See all