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Tudo Aquilo Que Rasteja (texto)

II.

II.

Sep 24, 2024

II.

 

Agnes conhece a dor. Com o rosto pressionado no piso frio e o corpo retorcido, ela está imersa em diferentes sensações, todas excruciantes. A música é a única coisa que a distrai enquanto recobra a força. Vasculha todos os cantos da mente à procura do nome daquele instrumento. É importante.

Se conseguir lembrar, vai lembrar de tudo.

Ela aperta os olhos, como se fosse ajudá-la a se concentrar. Em vez do nome, outra lembrança vem à tona.

O chão de ardósia machuca tanto quanto o da sala escura, ainda mais quando se está nua. Os joelhos pontudos de criança estão na altura do queixo, os braços envolvem as pernas e a cabeça pesada acusa as horas de choro. A pele arde onde o cinto a atingiu repetidas vezes. Deveria ter colocado o cigarro eletrônico da mãe para carregar. Se fosse mais atenta, não necessitaria de correções. Agnes faz mesmo tudo errado. Uma outra vez, aos doze anos, desmaiara no meio da rua sob o sol quente do meio dia. Alguns passantes a rodearam, tentando ajudar e a mãe sentiu-se envergonhada com a mobilização. O desmaio custou-lhe um dente, mais tarde. Não deveria ter apagado. Se fosse mais forte, não precisaria dos tapas no rosto, nem dos puxões de cabelo ou dos beliscões no braço que escondia usando casaco mesmo nos dias mais quentes. A cada agressão, a certeza de ser inútil e não merecer afeto entranhava mais fundo.

O cheiro de urina dispersa a memória. Há uma poça onde Agnes repousa. O muco salgado vertendo pelas narinas a faz perceber que está chorando. Quase desiste, mas espalma as mãos no chão e empurra o tronco para cima. Os dedos dos pés arrebentados prejudicam o equilíbrio, então decide se arrastar de lado. Sem mover as pernas, iça seu corpo de pouco em pouco, as feridas deixando um rastro de sangue para trás. Um só pensamento a faz avançar no chão frio. Meu filho precisa de mim, tenho que sair daqui. A música toca no fundo da mente. Quando os músculos vacilam e ela bate com o queixo no piso, Agnes morde a própria língua e o gosto de ferro se espalha pela boca. A dor provoca uma nova lembrança.

O peso da mãe pressiona suas costelas. Dessa vez, Agnes não entende o que fizera de errado, apenas repetiu as ações dela, trazendo um homem para casa e deitando-se com ele. Era uma sensação boa, receber atenção de alguém, mesmo que breve. Depois de alguns dias de enjoo, encontrava-se ali, no chão. Um pouco antes foi obrigada a urinar em um dispositivo. Quando a mãe lhe deu a notícia, Agnes sorriu, a desagradando de imediato. Vai ser um menino e ele vai ser meu, dos pés à cabeça. O couro cabeludo arde e o rosto é pressionado contra a ardósia. A mulher grita enquanto aperta algumas de suas mechas de cabelo entre os dedos, a outra mão a sufocando como uma serpente prestes a se alimentar, mas Agnes não está presente. Sua mente está fixada no calendário permanente em forma de cubo, caído debaixo da cama. Achou ter perdido o último presente que o pai dera antes de se juntar ao Projeto Júpiter e desaparecer para sempre. Hoje é dia 27 de julho de 2137, vou ajustá-lo quando mamãe terminar. Ela repete a data na cabeça até que a mãe cansa de esgoelar e puxar seus cabelos. Quando meu filho nascer, vou dar o calendário para ele.

A mente flutua e a música fica cada vez mais alta.

 Se conseguir lembrar, vai lembrar de tudo.

O peito de Agnes carrega um peso, como se a atmosfera da sala escura tentasse esmagá-la. Ela não sabe se são as memórias ou se o coração está falhando. De qualquer forma, precisa seguir adiante. Volta a impulsionar o corpo para frente e, pela primeira vez, nota uma luz. Pisca com força, temendo que a dor esteja causando alucinações. Quando torna a abrir os olhos, a luz ainda está lá. É a única coisa visível nas trevas. Sem hesitar, começa a se arrastar no sentido do brilho. Na direção do feixe, Agnes repara na fumaça saindo da boca, indicando a temperatura glacial do lugar. Ela pressiona as mãos no chão e avança, ignorando os arrepios na nuca toda vez que os dedos dos pés se arrastam um no outro. Quando a exaustão a invade, ela para e, ao suspender a cabeça, a luz a impede de enxergar por um segundo.

O teto branco é assustador. Pelo menos o de um hospital. As lâmpadas brancas machucam os olhos e o cheiro de desinfetante irrita o nariz. Agnes sente o coração batendo descompassado enquanto é levada em uma maca. A ausência da mãe causa, em doses iguais, terror e alívio. Só preciso fazer isso certo. Só dessa vez. Sem aviso, um guincho irrompe de sua garganta. Suas entranhas dão um nó, suas costas ardem, suor brota da testa. O corpo implora para o feto deixá-lo para trás. Ela chega em uma sala. O branco da luz, do teto, dos jalecos impecáveis gritando ordens de um lado para o outro. Agnes fecha os olhos, incapaz de lidar com o excesso de luminosidade e ruídos enquanto seu útero contrai violentamente. Alguém pega seu braço direito. Dedos massageiam sua veia e depois uma picada. Ela é engolida pela escuridão e, quando emerge, é invadida por sentimentos conflitantes. Agnes segura o filho como quem segura um artigo caro. Não há nada mais valioso do que você. Ela sorri enquanto chora, observando cada dedinho, cada dobrinha, cada pedacinho.

Em algum lugar de sua consciência, Agnes grita.

Ela não quer mais lembrar.

De alguma forma, ela sabe o que vem depois.

Com as costas esticadas no chão, as unhas encontram o caminho para as feridas no rosto e ela as aperta sem hesitar. O sangue goteja como lágrimas.

— N-não — A palavra sai em um soluço. — Meu... Meu filho.

A música é uma canção de ninar. Embora o nome do instrumento esteja perdido na névoa das memórias, ela lembra das palavras. Canta no quarto do hospital, assim como o pai cantava, ainda que a pronúncia em inglês não seja clara como a dele. Agnes está em uma cama. Os lençóis macios, os bipes das máquinas, a enfermeira de cabelos loiros. Ela quem comunicou a chegada de sua mãe. Apesar de sussurrar uma promessa de que nada acontecerá com ele, Agnes se vê impotente frente a ameaça. A voz da mãe, rouca pelos anos de fumo e álcool, chega aos ouvidos dela.

— Se despede do garoto.

Ela encara a mulher com uma expressão confusa.

— Agora.

 As batidas do coração ficam rápidas demais. A máquina ao lado apita alto, fazendo os ouvidos doerem. Agnes puxa o ar em vão. Quando os jalecos brancos invadem o quarto, a mãe arranca o menino de seus braços e a deixa para trás. Ela se debate contra a cama, sentindo os pontos da cesárea repuxarem. Rosna, urra, morde, arranha. A ausência do filho a devora de dentro para fora, um buraco negro extinguindo galáxias inteiras, deixando apenas o vácuo inóspito no lugar. Ao notar que ela não desiste, os médicos a oferecem uma nova dose de escuridão.

Os braços formigam. É como se o bebê tivesse desaparecido naquele instante, dentro da sala fria. A canção ainda toca em sua cabeça. Agnes sussurra a melodia, retomando seu caminho. Os membros superiores tremem com o esforço. Meu filho me espera. Eu preciso entregar o calendário. Ela sente o gosto do sangue que escorre do rosto misturando-se com o da boca, o cheiro de bile e urina. Nada disso importa. A luz está próxima agora. Apertando os olhos, distingue os contornos de um batente. Um gemido rouco escapa pelos lábios quando tenta acelerar. Está frustrada por não ser mais rápida, por ter exaurido a parte de cima de seu corpo. Agnes para e examina os próprios pés. Os dedões são uma massa de carne, os ossos despontam da pele. Ela encara a porta. Respira fundo, causando pontadas nos pulmões.

A expectativa da dor é pior que a dor.

Agnes apoia os pés no chão e levanta. Cada passo é como caminhar em pregos, cada segundo, lancinante. Desesperada, ela tenta correr e, entre tropeços, alcança a luz. Assim que gira a maçaneta, se deixa despencar no chão.

Há uma sala atrás da porta. Agnes não tem forças para investigar, precisa descansar por um instante. Encostada na parede, a dor a embala. Tão conhecida, quase um lar. Ela quer esquecer a música, mas não consegue impedir sua mente. A deixa flutuar entre as lembranças, grãos de areia entre os dedos, escoando sem reter nada, sem vestígios. Quer ficar assim para sempre, perdida em um limbo eterno, mas logo se agarra a um momento.

Após seis horas sentada na cadeira de madeira dura, Agnes acostumou-se com o desconforto. O incômodo na coluna se transformou em um ruído no fundo da mente. Ela acaricia a gata Tisífone de vez em quando. Os dedos afundam nos pelos longos e marrons enquanto ela repousa no seu colo. O ronronar suave é como meditação, embora não esteja calma. Os dedos digitam com rapidez, os olhos pulam de uma tela para outra.  Está perto de descobrir para onde a mãe levou seu menino depois de quatro anos de busca. Nada é impossível se você tem dinheiro, sujo ou limpo. Um ping soa de uma das telas e as mãos dela suam no mouse quando ela clica para abrir a mensagem. O endereço paira na tela por alguns segundos antes de ser deletado. Ela não se desespera. As letras já estão gravadas em ferro na sua mente. Quadra 479 lote 5. O calendário permanente está na mesa e foi o único pertence que levou consigo quando fugiu da casa da mãe. Agnes desliga o computador. Seu reflexo na tela preta chama a atenção. Bolsas roxas se destacam debaixo dos olhos injetados, as veias finas parecendo teias de aranhas. O cabelo curto embaraçado, as roupas desfiando e cheirando a mofo por não secarem direito no apartamento úmido de um quarto só. Meu filho não pode me ver assim. Ela levanta de repente e Tine se assusta, pulando do colo para a mesa e derrubando o calendário no chão. Algo dentro dela se contorce, aperta, sufoca. Ela fecha as pálpebras com força e se ausenta por um momento, sentindo que há uma serpente vivendo entre seus órgãos, esmagando tudo no caminho. Quando volta a si, a gata está longe, empoleirada em cima do armário, os pelos arrepiados e um susto marcado no rosto felino.

— Tisífone, sua filha da puta, você faz tudo errado — grita enquanto cata os cubos do chão com as mãos tremendo.

Agnes pega um papel qualquer e embrulha o calendário, respirando fundo até sentir-se dopada de oxigênio. Tenta dobrar algumas vezes antes de desistir, o tremor a faz arruinar o presente. Uma bolsa terá que servir. Pega a melhor que tem, uma com laços e coloca os cubos nas posições do dia do nascimento do filho. Depois acomoda tudo no pacote e fecha com uma fita adesiva. Ao terminar, percebe a gata ao lado dela. Agnes morde o lábio inferior com força. Prestes a romper a pele, não alivia a mordida, na verdade, enterra os dentes mais fundo. Quando o primeiro fio de sangue escorre, ela para. Com as lágrimas transbordando, ela estica a mão para a cabeça da gata, se permitindo enfim aceitar o carinho de Tine.

Assim como na memória, Agnes acorda chorando. Não quer olhar para o estado dos pés depois do esforço, então se concentra na sala à sua frente. É pequena. Só há um banco encaixado debaixo de uma mesa. Do chão, ela não consegue ver se há alguma coisa em cima dela. Logo ao seu lado, existe uma outra porta e uma placa indicando a saída. Agnes limpa o rosto molhado de lágrimas e sangue com as costas das mãos e rasteja com cuidado até alcançar a maçaneta eletrônica, que apita, pisca uma luz vermelha e continua trancada. Ela expira ruidosamente e se arrasta em direção à cadeira. Estica os braços, envolve o assento em um abraço desajeitado e impulsiona o corpo para cima, até conseguir sentar.

Uma caixinha e um bilhete. Agnes abre a caixinha e encontra dois dispositivos redondos do tamanho de uma moeda. Coloque um em cada lado da testa, lê no recado. Tremendo, ela sente o peso deles nas mãos por um segundo, hesitando seguir a ordem do papel. Algo dentro dela acha a cena familiar, então ela os aperta na cabeça e, assim que o segundo é colocado na posição certa, o corpo sacode com um choque elétrico.

marisc1995
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