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Tudo Aquilo Que Rasteja (texto)

III.

III.

Sep 24, 2024

 

            III.

 

A campainha soa alta demais. Agnes olha por cima dos ombros. O silêncio sepulcral da vizinhança é muito diferente do que estava acostumada. Na área em que mora, não há um minuto de paz. Pessoas gritando, caminhões, ambulâncias, vendedores tentando ganhar as criptomoedas necessárias para sobreviver mais um dia. Não havia nada disso ali. Apenas casas grandes com quintais, uma brisa fresca passando entre as árvores, o farfalhar das folhas e o canto dos passarinhos. Agnes aperta a mão direita com força, a outra está ocupada com o calendário embrulhado. Embora tenha se passado menos de um minuto, ela toca a campainha mais uma vez. Escuta passos vindo de dentro da casa e o coração bate a marteladas.

Entre o virar da maçaneta e o abrir da porta há uma eternidade. Agnes sente-se fincada ao chão, incapaz de se mover enquanto pensa em milhões de maneiras de se comportar e nenhuma delas parece boa o bastante. Quase foge, porém quando retoma o controle de suas pernas, já é tarde demais. A mulher sorri para ela. Não é um sorriso falso, daqueles que se guarda para o vizinho irritante quando não se quer arrumar problema. É de verdade. Um sorriso de rosto inteiro, evidenciando as rugas nos olhos. Agnes gagueja uma introdução e a expressão da mulher se desfaz. Ela sai de casa e fecha a porta sem desviar o olhar. Agnes tem certeza que será enxotada, que um tapa explodirá no seu rosto, que ameaças serão feitas.

 — Ele sabe que foi adotado, não tenho problema quanto a isso — ela pausa, incerta sobre o melhor jeito de conduzir aquela situação. — Vou deixá-la entrar, mas vamos com calma, não fale que é a mãe dele agora. Você será minha amiga primeiro, depois, dependendo de como a relação de vocês evoluir, nós contaremos juntas, está bem? Se não conseguir, você volta outro dia, mais preparada. Você consegue fazer isso?

Agnes assente em silêncio. Estava preparada para voltar para casa com o calendário em mãos e sem vislumbre do menino. O nó em sua garganta dificulta a respiração. Não quer chorar agora, então se concentra em agradecer sem parar e a mulher a acalma, colocando a mão em seu ombro e acariciando de leve, com ternura.

 A casa é espaçosa, limpa e silenciosa. Ainda perto da entrada ela tem uma visão da sala e das portas de vidro que levam ao quintal. A moça pede para tirar o sapato e Agnes acata de imediato, tentando ser rápida. Ela encara os próprios pés desnudos. O rosto enrubesce e ela aperta os dentes dentro da boca. As unhas grandes e amareladas chamam sua atenção. Agnes espera que a mulher não note a falta de asseio. Ela vai achar que não sou boa o suficiente. Tenta esconder um pé com o outro, mas os dois estão da mesma forma. A mulher não dá indicação de que reparou, oferecendo água e suco.

Seus olhos se cravam no exterior da casa. Através das portas de vidro, ela vê um menino correndo. As pernas bambeiam. A mulher, vendo seu nervosismo, entrelaça os braços nos dela e, sorrindo, a guia gentilmente para o quintal. Agnes só enxerga a criança. Não parece real. A mulher o chama e a apresenta como amiga. A cabeça não produz um só pensamento, apenas absorve o que se desenrola. Ela fica de joelhos na grama para ficar na altura dele e a pedido da mulher, a criança a abraça. Agnes não consegue respirar ainda que ele não esteja a apertando. Não vou assustá-lo, não posso chorar. Antes de se soltar, inspira fundo, desejando gravar na mente o cheiro de morango dos cabelos dele. Ela tranca o choro no peito e estica as mãos para entregar o calendário. O menino agradece, abre o presente e leva até a pequena mesa de madeira, já atolada de brinquedos variados.

— É que dia hoje, mamãe?

Agnes e a mulher respondem ao mesmo tempo.

— 11 de outubro de 2142.

O coração de Agnes acelera, certa de que a mulher vai censurá-la por ter respondido. Ela não o faz.

— Vou trazer o lanche dele, você pode ficar por aqui, mas não esqueça do nosso combinado. Estarei observando da cozinha.

 Quando a mulher entra em casa. Agnes se aproxima. Sem saber o que dizer, ela o convida para brincar de pique e ele gosta da ideia. A criança corre em volta de uma grande árvore no meio do jardim. Ri com o corpo todo, sacudindo de alegria, e aquele é o som mais lindo que já ouviu. Eles correm de um lado para o outro até que a mulher os chama para dentro da casa. O menino pega o calendário na mesa para guardar e o rosto dela dói, desacostumado de sorrir. Na sala, ele coloca os cubos e o suporte de madeira em cima de um piano de cauda. Deve ter custado mais do que meu apartamento. Mais do que o prédio inteiro. A mulher nota o olhar de Agnes e pergunta.

— Você gosta de tocar?

— Nunca aprendi, mas acho lindo.

— A gente sabe, né, mamãe? — Ele diz.

— Quer mostrar para sua nova amiga?

Ele senta no banco em resposta, dando espaço para ela se acomodar também.

Agnes sorri, esperando a melodia. Ela não percebe de primeira, só depois de três notas. A mulher cantando se transforma na voz do pai de Agnes dentro de sua cabeça. Ela lembra do sorriso dele enquanto a embalava com a canção, da língua se enrolando para fazer os sons em inglês, do afago no cabelo para ela se acalmar. É como entrar em roupas quentes depois de pegar chuva, como deitar com Tine em seus braços depois de um dia exaustivo.  

 — Se despede do garoto.

A mãe arranca o menino de seus braços. A música está alta demais na própria cabeça. A voz da mãe é ainda mais alta. Você é um verme. Nunca faz nada direito. Algo dentro dela esmaga o que é bonito, o que conforta. A serpente devora qualquer pensamento bom. Agnes se vê no hospital de novo e ela rosna, urra, morde, arranha e bate e bate e bate.

Primeiro, o silêncio. Depois, as mãos meladas. Ela olha para o cubo de madeira. O aperta tanto que chega a tremer. Nele há sangue e pedaços de pele. A mulher, virada com o rosto para o chão, Agnes em cima dela. O piso de cerâmica branco da cozinha pouco a pouco tingindo-se de vermelho. Ela vê o caminho que fez arrastando o corpo pela sala. Atrás do banco do piano, os olhos arregalados do filho compõem uma expressão de choque e puro horror.

A corrente elétrica acorda Agnes. Ela tira os dois dispositivos da cabeça. Não consegue respirar direito, o coração está acelerado demais.

Ela lembra do piano, lembra de tudo.

Está na prisão do planeta 10-B. Todos os homicidas são levados para lá. Ela sabe o que fazer, foi instruída antes de ser colocada ali, já esteve na sala outras cinco vezes. Na porta de saída, a luz vermelha se transforma em verde. Basta girar a maçaneta e ir embora. Se acha que deve ser perdoada pelo crime, se acredita que pagou pelo sofrimento causado, pode ser livre outra vez.

Ela olha para as mãos e vê o cubo ensanguentado.

Ela lembra dos olhos arregalados.

A serpente se agita dentro dela e ri com a voz rouca da mãe.

 Agnes desce da cadeira para o piso da sala, incapaz de se manter em pé. Ela lança um último olhar para a porta antes de rastejar de volta para a escuridão. 

marisc1995
maricardosoarte

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