Três carros estavam alinhados na garagem, além do utilitário preto que o motorista da Sra. Young dirigia e da minivan. O coração de Jake deu um salto quando seus olhos pousaram no sedã preto discreto e imponente que pertencia ao pai dele. Ele xingou baixinho, os dedos girando o piercing na sobrancelha enquanto saía de seu próprio carro, o velho Chevrolet Camaro preto fosco, anos 80, cuja pintura exibia os primeiros sinais de desgaste.
Suas botas pesadas ecoaram levemente no chão de cimento enquanto fechava a porta num movimento ágil. O cheiro familiar de couro antigo e motor aquecido ainda pairava no ar ao seu redor, mas agora o conforto do carro parecia distante. Naquele momento, tudo que sentia era a tensão crescendo em seu peito pela presença do pai em casa.
— Parece que o Sr. Young está em casa — Raul, que havia acompanhado Jake, observou o óbvio com um sorriso acentuando as rugas nos cantos da boca dele.
Enquanto descarregava os sacos de argila, algumas telas e tintas do bagageiro, Jake perguntou:
— Posso deixar meu material no seu quarto até meu pai sair? Depois, você pode levar para o meu quarto, por favor.
Raul fez que sim com a cabeça e perguntou:
— Até quando vai se esconder dos seus pais, Jake?
Uma sombra sinistra se estendeu sobre a mente e coração de Jake — tinha a forma de uma escultura corroída pelo tempo, cujas linhas eram distorcidas e irreconhecíveis.
— Eu não me escondo deles — encolheu os ombros. — Eles que não querem me enxergar. É diferente.
O homem mais velho fez uma pausa, refletindo sobre as palavras do jovem.
— Você e seu irmão têm mãos de artistas. Talento nato!
— E ele também não poderia fazer nada sobre isso, nem se quisesse, Raul — Jake comprimiu os lábios com amargura.
— Eu cuido do seu material até ele sair e levo as argilas para seu quarto quando sua mãe estiver ocupada — disse o homem, apertando o ombro dele. — Qual o endereço daquela moça que você disse para eu buscar?
— Ela mora a duas quadras daqui, mas vai te esperar nesse endereço — ele entregou ao motorista o papel com o endereço da Iúna. Erin havia dito que estaria lá, para quê, Jake não sabia, considerando que Iúna não viajaria com eles. — Você pode parar nesse endereço também? — pediu, entregando um papel diferente. — Bernardo vai trabalhar até o meio-dia e prometi que o pegaria e levaria pro porto com a Erin.
Raul assentiu dobrando o papel e guardando no bolso.
Jake o ajudou a carregar os sacos pesados de argila até o anexo onde o motorista vivia. A casa externa, próxima aos fundos do jardim, guardava as esculturas de mármore inacabadas da mãe dele — testemunhas silenciosas de um acidente que mudara suas vidas para sempre. Passar por ela sempre trazia uma sensação gélida ao coração de Jake. Um arrepio percorreu sua espinha ao olhar para as janelas cobertas com cortinas escuras.
Ainda era doloroso lembrar que a carreira da mãe dele, uma artista plástica muito promissora, havia sido interrompida subitamente graças a um grave acidente, sofrido durante sua preparação para uma das exposições mais importante de sua vida. Jake tinha catorze anos, mas lembrava disso como se tivesse acontecido ontem, e não há nove anos. Aquele maldito acidente causara fraturas graves nas mãos de June Young. Depois disso, a mulher que um dia apoiou Jake a seguir os passos dela, se tornou a pessoa mais obstinada a mantê-lo longe daquele caminho a todo custo.
Jake suspirou resignado, deixando para trás seus preciosos e secretos materiais enquanto seguia para a casa principal. Avistou o pai, Jihun Young, sentado no sofá de couro marrom quando se aproximou das portas de vidro que separavam a sala do jardim. O cabelo escuro e sedoso estava impecavelmente penteado para trás, a camisa social bem engomada e abotoada até o pescoço. Uma garrafa de uísque repousava sobre a mesa de vidro entre os sofás, com dois copos ao lado, sobre porta-copos feitos à mão.
A escada para os quartos ficava próxima àquela entrada, e ele ponderou se poderia subir sem ser notado. Puxou a porta de vidro da sala, mas logo percebeu que estava trancada por dentro. Um suspiro escapou de seus lábios, e ele bateu levemente no vidro.
Jihun ergueu os olhos do jornal que lia, dobrando-o cuidadosamente antes de colocá-lo sobre a mesa ao ver o filho.
— Por que não entrou pela porta da frente? — perguntou.
— Precisei entregar algo pro Raul.
Seu pai assentiu, abrindo um sorriso sutil.
— Fico feliz em saber que não estava planejando entrar de fininho — aquele sorriso, com o músculo da bochecha direita ligeiramente contraído, era o mesmo que dava a ele e Jamie sempre que faziam algo errado e o pai descobria. Era o sorriso que dizia que Jihun Young sabia exatamente quando os filhos mentiam.
Assim, Jake concluiu que o pai trancara a porta de propósito. O que ele disse a seguir, apenas confirmou que, de fato, o homem o esperava.
— Seus amigos estão te esperando, no seu quarto. — Jihun franziu o rosto. — Ou talvez seja no quarto de James. Eles chegaram juntos — explicou, voltando para o sofá.
Jake meneou a cabeça e se dirigiu apressadamente para a escada. Mas antes que pudesse alcançar o primeiro degrau, a voz grave de seu pai o deteve.
— Por que está correndo? Não fiquei sentado aqui, te esperando, para contar que tem visita. — O Sr. Young indicou o lugar no sofá ao lado dele com o queixo. — Volte e sente aqui.
Jake arrastou os pés até lá como se traçasse linhas finas e sombrias em um retrato sinistro.
— Já se perguntou por que permito que você e James saiam em uma viagem longa, com seus amigos, como dois jovens imaturos e irresponsáveis? — Ele cruzou uma perna sobre a outra, virando o corpo de lado para observar o filho.
Jake permaneceu em silêncio enquanto o pai inspecionava cada canto de seu rosto. O homem balançou a cabeça, servindo os copos de uísque sobre a mesa de centro. Empurrou um na direção dele através da mesa.
— Prefiro cerveja. Soju. Vodca.
Seu pai sabia, mas quem ligava para o que Jake preferia, naquela casa?
— Não fará a desfeita de recusar beber com seu pai, fará? — Os lábios finos se franziram e apesar de parecer desapontado, os olhos escuros permaneceram rigorosos.
Com um suspiro resignado, Jake pegou o copo das mãos dele. Um pequeno sorriso se abriu na boca do pai quando fez isso, mostrando uma parte dos dentes brancos tão alinhados quanto a camisa que vestia. Jihun balançou o líquido profundo e marrom no copo antes de bebericar pelas bordas.
— Como estava dizendo, filho… Há um preço para isso. E espero que os dois paguem quando chegar a hora. Sua mãe não espera menos do que eu.
O corpo de Jake enrijeceu.
— Não quero fazer parte da Construtora e Incorporadora Young.
— Já conversamos sobre isso.
— Eu só estudei Arquitetura e Urbanismo pra minha mãe não surtar, não porque eu queria, por…! — Jake mordeu o lábio por dentro, para não falar um palavrão.
As feições do pai dele endureceram.
— Não esqueça que aceitei seus amigos como meus estagiários, e cogito efetivá-los assim que voltarem dessa viagem com você. — Jihoon o lembrou.
Jake cerrou o maxilar. Inacreditável. O pai dele tinha que trazer a tona os amigos que estavam em seu quarto naquele momento, como sempre. Ele não devia ter lhe pedido para os ajudar a cumprir as horas complementares quando encontrar um estágio se tornou difícil.
— Além disso — continuou—, como você mesmo disse, se formou em Arquitetura e Urbanismo, então não deve desperdiçar seus esforços nos últimos anos agindo igual a um desocupado, Jake. Mesmo que seja meu filho e tenha uma herança a sua espera, quero ver você se esforçando e me mostrando que merece herdar o que seu avô e eu lutamos para conquistar.
— Eu não tive muita escolha, tive? Nenhuma das universidades aceitou minha matrícula no curso de Artes Plásticas, o oposto de Jamie. — Jake moveu o piercing na sobrancelha com os dentes cerrados. — Por que parece que só eu tenho que me provar a você? Você o deixou livre na hora de escolher uma graduação e pelo visto sequer perguntou se ele pretende seguir na área que se formou.
James parecia ser privilegiado naquele aspecto. Ele não teve nenhuma restrição ao escolher seu curso na universidade, embora não levasse tão a sério seu curso de Comunicação Social.
— Você fará uma grande diferença na empresa da família se se dedicar a isso, Jae.
Jake balançou a cabeça. A conversa com seu pai sempre o deixava com um sentimento de frustração e opressão e isso apenas aumentava sua ansiedade em transformar os sentimentos que o torturavam, descarregando o peso das decepções em seu coração em arte. Era a arte dele que o mantinha de pé mesmo após a Sra. Young enfiar na cabeça a mesma ideia tola que o marido, apenas para mantê-lo longe da carreira que realmente sonhava em seguir.
— Seu projeto final do curso, aquele complexo de casas sustentáveis com a integração respeitosa da natureza… foi genial, Jake! — continuou seu pai, pomposo. — Todos os meus projetistas ficaram surpresos com sua ideia! Um jovem estudante entregando um projeto com a integração de tecnologias inteligentes, painéis solares, sistemas de captação de água da chuva e tecnologias de armazenamento de energia….
Seu pai lhe tocou os ombros com firmeza.
— E ainda acrescentar jardins verticais, telhados verdes, tudo construído com materiais sustentáveis, respeitando a natureza, e de modo tão impecável que sequer parecia ser um estudante recém-formado! Ah, foi um projeto completo, bem detalhado e viável, nem um pouco trivial! Em breve você estará mais do que apto a me substituir — riu com graça, o orgulho brilhando nos olhos semelhantes aos do filho. — Quando me aposentar, não terei que me preocupar, mas antes você deve trabalhar ao meu lado, para assegurar nossos investidores.
— Isso só foi possível porque gosto de criar, pai. E valorizo a natureza e o meio-ambiente. Mas quero ser um artista. Eu amo criar, não importa qual seja o material ou objetivo, se é fácil de manusear, se é difícil… sentir meus dedos dando vida as emoções… a complexidade que habita a alma, a nossa existência… — Jake engoliu o bolo de emoção que se rebelava em meu peito. — É o que eu gostaria de fazer da minha vida e…
— A Arte é um passatempo, Jake — Jihun olhou para os lados, para ter certeza de que ninguém os ouviria. — Sabe que sua mãe sofre quando te ouve dizendo isso, não sabe? Olha só o que aconteceu com ela! Eu não quero ter mais um membro da minha família destruído por causa dessa maldita arte. Deixe para fazer essas coisas quando estiver velho, como eu, e se aposentar. Quanto a Jamie, sabe que ele sempre se cansa de tudo que faz e não tem comprometimento com nada. Tá sempre desistindo de tudo, foi por isso que deixei ele ficar na Galeria de Arte com sua mãe, quando ela aceitou a sugestão do terapeuta. Assim, ele poderia ajudar sua mãe a se distrair de pensamentos que não valem a pena e a se sentir menos dependente de mim e dos empregados.
Jihun suspirou e balançou a cabeça com uma expressão de desaprovação.
— Falando em seu irmão… Acredita que ele me disse que largará a Galeria e se tornará um criador de webcomics se eu não deixar você fazer o que quiser? Ele sempre foi assim, desde pequeno. Faz o que quer e quer que você seja o mesmo que ele. Aquele garoto não tem jeito e quer te arrastar para o mesmo caminho!
Jake reprimiu mais um suspiro frustrado, afastando quaisquer sentimentos das feições dele, enquanto apertava o corpo de uísque na mão. Então, o entornou na boca num único gole. O cheiro forte e defumado do líquido atingiu as narinas dele antes do gosto amargar sua língua e queimar a garganta. Tinha o mesmo gosto de discutir com o pai.
Amargava a boca, queimava a garganta e revirava o estômago porque ele não dava a mínima para o que Jake queria e se aproveitava da fraqueza traumática da esposa para alimentar suas ilusões sobre quem deveria herdar a empresa e dar continuidade a reputação da família Young naquele ramo.
Jake colocou o copo sobre a mesa com um som tilintante de vidro colidindo com vidro, e se levantou bruscamente.
A mão dele agarrou o corrimão prateado quando ouviu o pai dizer:
— Soube que a Erin Lee vai com vocês. Faz tempo que não os vejo juntos.
Jake cerrou o maxilar, mas não se virou. Não continuaria a ouvir o que o pai tinha a dizer.
— Faz tempo desde que vi o pai dela pela última vez também. Ele saiu da empresa pouco antes de vocês se formarem no ensino médio… ouvi rumores de que se casou outra vez.
Ele se virou para encarar o pai, o cenho franzindo.
— Quando ouviu isso?
— Ela não te contou? Pensei que fossem amigos.
— Ela estuda com o James.
— Mas era com você que ela vivia grudada, não é?
Porra. Ele tinha que tocar na ferida de Jake?
— Quando ouviu isso, pai?
— Pelo visto não quer falar sobre esse assunto… Foi há alguns meses — prosseguiu ao perceber a expressão impassível no rosto dele. — Não contei porque pensei que soubesse. — Deu de ombros antes de voltar a ler o jornal.
Jake enrugou o cenho e subiu para o segundo andar, ainda absorto com aquela informação. James sabia sobre isso? Ele sempre lhe contava sobre Erin, mesmo que não perguntasse ou fingisse não querer saber…
Parou no corredor com um vinco entre as sobrancelhas, enquanto movia o piercing, lembrando-se subitamente do pedido de Erin na noite anterior.
Ela havia pedido que Raul a pegasse na casa da Iúna devido à separação dos pais dela? Quando foi que o Sr. e a Sra. Lee se divorciaram? Margô parecia ser devota a família e Eliel o homem mais apaixonado da face da Terra… Eles viviam numa harmonia perfeita, na visão e lembrança de Jake… Erin devia ter ficado arrasada quando os pais dela se separaram…
Jake sentiu o coração se liquefazer no peito com a súbita percepção que o acometeu.
Ele não sabia nada sobre ela. Ao menos não mais.
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