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Entre raios e raizes

1. Erevan

1. Erevan

Jun 08, 2025

1. Erevan

A floresta tem um silêncio único em forma de barulho. Uma música sem som e ensurdecedora, uma quietude vívida e efervescente, sem pressa nenhuma, mas com incontáveis vidas correndo pra lá e pra cá. É como se convidasse a caminhar sem pensamentos, esquecer do tempo, ouvindo tudo em silêncio. 

A água escorrendo em algum lugar entre pedras cobertas de musgo como um borbulhar de poção em um caldeirão no fogo baixo, sapos-gafanhoto coaxando, pássaros cantando, folhas no vento, zumbidos de pequenas fadas-dríades fazendo seus casulos de barro, passos rápidos de gnomídeos mal humorados. Se tivesse sorte, poderia até ver um ou dois golens-pigmeus rolando entre as raízes até a água para reidratar seu solo após a noite.

Erevan respira fundo uma última vez o ar fresco e orvalhado antes de se levantar da sua meditação. As duas luas, cada vez mais próximas com a chegada do solstício, já tinham se escondido para além dos troncos das árvores, e os primeiros raios de sol já começavam a se espichar por entre os galhos, prometendo um dia ainda mais quente que o último. Esse verão estava com temperaturas especialmente altas, e a tendência era só aumentarem.

Pegando seu cajado de galhos que usava como muleta para se apoiar, o jovem caminha com cuidado entre as raízes cobertas de musgo, por uma trilha já marcada de tantas vezes que foi usada pelos mesmos pés, desviando apenas para coletar um cogumelo-pinta-boca fresco e uma flor-da-madrugada - ambos ótimos para saladas, refogados ou poções de urticária. 

A combinação do primeiro com um pouco de seiva de cipó-mata-borrão dourado também produzia um pigmento verde-musgo ótimo para tatuagens. Tanto que a cor enfeitava o rosto e o corpo do jovem em padrões detalhados, a pele clara marcada de verde contrastando com o castanho vivo do cabelo bagunçado do rapaz. 

O cogumelo estava no ponto perfeito para tinta, e bem a tempo do Ritual das Duas Luas. As duas luas só se alinham dessa forma a cada sete anos, e druidas de todo o continente se encontrariam para celebrar e se reconectar com sua magia. Também era um dos poucos rituais em que druidas de diferentes elementos se encontravam e trocavam informações, com direito a canções e dança em volta da fogueira, bebida, comida, incensos de ervas, e tatuagens novas para marcar acontecimentos importantes. Erevan já tinha decidido qual seria sua próxima tatuagem.


☘☘☘


O sino na porta do apotecário soa quase rouco de tanto tocar, fazendo uma cabeça loira pular de trás de um balcão. Com uma caixa com vidros tilintando em uma mão, um punhado de papéis amarrotados na outra, e mechas de cabelo loiro escapando de um rabo-de-cavalo quase totalmente desfeito, a voz do vendedor sai em tom falso e automático antes que reconheça o rosto que entrava pela porta, como se acionada pelo som do sino.

– Olá eu sou Caliandro, assistente do apotecário-chefe, o senhor Barbatimão não está no momento, mas eu posso te ajudar a encontrar o… que… precisa… Erevan! Finalmente! – o vendedor larga sem cerimônia a caixa de vidrarias delicadas e corre para abraçar o garoto – Onde você estava? Não te vejo há três dias!

– Estava, uh… buscando livros e frascos novos na cidade. Voltei anteontem mesmo, mas a cidade me deixou tão zonzo que quis ficar na floresta por um tempo. – Depois de retribuir o abraço, o jovem endireita as roupas amarrotadas e começa a guardar os vidros nas estantes.

– Você ficou dois dias na floresta e me largou aqui?! Você já mora no meio da floresta, não basta todo o tempo que passa aqui? Essa loja está um caos desde que o Seu Barba decidiu entrar numa jornada espiritual por sei-lá-quanto-tempo! Tem trocentas poçõezinhas espalhadas pra todo lado, eu não sei nem o que metade delas faz, e a vila toda decidiu ficar doente no mesmo dia! Eu preciso de você aqui, Eren!

– Então, Cali… sobre isso…

--- Você tem ideia do quão difícil é cuidar de um apotecário, sem nenhum dos dois alquimistas presentes? Seu avô e o Seu Barba cuidavam disso aqui juntos, e você espera que eu consiga tocar tudo sozinho? Eu quase queimei minhas sobrancelhas tentando descobrir o que uma dessas poções fazia! Você precisa melhorar o rótulo dessas coisas, viu?

– Cali.

– E você acha que as poções seriam o pior? Não! Eu ainda tenho que anotar encomendas, contar moedas, entregar pedidos, impedir crianças de colocar coisas na boca, e ainda ouvir a história de vida toda de cada cliente, porque todo mundo acha que o único humano da vila de dríades tem tempo de sobra! Eu não tenho séculos de vida pra desperdiçar igual vocês!

– Cali!

– Você faz ideia de quantas vezes eu tive que impedir alguém de entrar dentro do estoque dos fundos? A placa de “Não entre - apenas funcionários” deve estar escrita em Sereiês!

– CALI!!

– O que foi? Credo, não precisa gritar.

O jovem druida se aproxima e segura o rosto do rapaz com as mãos para garantir que este preste atenção.

– Eu vou ficar fora por três semanas.

– O QUÊ?! Você não pode me abandonar aqui por tanto tempo! A loja não funciona sem você! Três dias e olha o desastre que está, imagina três semanas! Pra que você vai ficar fora tanto tempo?

– O Ritual das Duas Luas é esse mês.

– Ai que droga. É verdade. Eu tinha esquecido que era agora. – ele esfrega a testa e olha em volta, desamparado – Que dia você precisa ir?

– Daqui 5 dias. 

– Alguma chance de você deixar eu ir com você? 

– Você não pode simplesmente fechar o apotecário. E outra, o Ritual das Duas Luas é um…

– …um ritual sagrado drúida, e só druidas que já foram iniciados por um Mestre podem participar. Eu sei, eu sei… Só não quero ficar sozinho aqui de novo. E do jeito que você fala desses rituais, devem ser a festa do ano! Um acampamento afastado na floresta, música, vinho-de-rubi, incensos de ervas, tatuagens - parece o máximo! 

– É um evento espiritual.

– Tá, tá. Como se eu não soubesse o que acontece nessas festinhas. Cada vez que você vai, você volta com uma tatuagem nova e o cabelo cheirando a erva.

– É sagrado.

– Ah sim, claro. Erva sagrada. – Depois de uma risada, um silêncio longo faz os dois respirarem – Vai ser o primeiro sem o seu avô, né?

Outro silêncio.

– Vai.

– E… como você está?

Antes que o garoto respondesse, o sino na porta range novamente com cansaço, avisando da entrada de outra cliente. Erevan apenas ergue os ombros com um sorriso triste e volta a organizar os frascos nas estantes, enquanto o vendedor assume novamente sua voz monótona e automática.

O rosto familiar de Caliandro traz um pouco de tranquilidade. Ele sabia que, mesmo com todo o drama feito por cuidar do apotecário sozinho, Erevan não imaginaria ninguém melhor para herdar o lugar. 

Talvez se não fosse por Cali, Erevan já teria partido para viver como nômade nas florestas do reino, talvez até em reinos mais além, afastado de tudo. Muitos druidas já faziam isso logo no primeiro ano após a iniciação, e outros já viviam assim antes mesmo de se tornarem druidas. Até mesmo Erevan passou um tempo como nômade quando se soltou de suas raízes, na Floresta de Samaúma.

Mas agora ele tinha algo que o prendia ali novamente. Algo, e alguém.


☘☘☘


Muitas luas atrás, quando Erevan ainda era adolescente, apareceu um bebê humano na entrada da floresta, abandonado por quem o criou. Não se sabia se quem o deixou lá tinha conhecimento da existência do vilarejo de dríades escondido, ou se apenas esperava que a terra reclamasse prematuramente a alma que era sua por direito. 

De qualquer forma, um alquimista que caminhava nos limites da floresta em busca de ingredientes ouviu o choro, e, para sua surpresa, encontrou um bebê de cabelos vermelhos e arrepiados no meio de um arbusto de flores ainda mais vermelhas e arrepiadas - um arbusto de caliandras. 

Por coincidência, o alquimista, Senhor Barbatimão, era um amigo de longa data de um druida muito famoso do vilarejo, o Senhor Erevaldo, com quem o pequeno Eren morava. 

Juntos, seu Barba e seu Erevaldo aprenderam a cuidar de duas crianças bagunceiras, e ensinaram a elas tudo o que sabiam sobre magia, alquimia, botânica e arcanismo. Cali, que era só um bebê de cabelos ruivos espetados, cresceu para se tornar Caliandro, um bardo amador de longos cabelos loiros descoloridos que fazia bicos na taverna da cidade vizinha, para desespero de seu Barba, que sempre quis mais um alquimista na família e via no jovem a oportunidade que não teve com suas filhas e netas de “sangue” - ou melhor, de seiva. E Eren, uma dríade recém-brotada, cresceu pra se tornar Erevan, o novo druida do vilarejo, seguindo os passos do avô e, assim como ele, soltando suas raízes.

Os dois cresceram juntos, e Erevan pode assistir, com um aperto no coração, quão rápido humanos se desenvolviam. Erevan era já adolescente quando um bebê chegou ao vilarejo. Agora, Erevan tinha recém-chegado à idade adulta, e Caliandro já tinha o ultrapassado, com seus 29 anos humanos. Ainda assim, a conexão dos dois era mais forte do que as raízes de uma árvore Iporavã, e Erevan não tinha qualquer intenção de se mudar do vilarejo sem que Caliandro fosse junto. 


☘☘☘


O restante do dia passa rápido, com os dois garotos tendo pouca oportunidade de conversar entre clientes e todas as tarefas acumuladas da loja. Foi um dia parecido com os outros em que a loja estava aberta. Caliandro ficava no balcão atendendo clientes, e Erevan ficava no estoque dos fundos, fazendo misturas e poções, analisando amostras e estudando botânica e alquimia para criar novas fórmulas, escondido de todas as pessoas. A maioria do vilarejo sequer sabia que ele ficava ali, deviam imaginar que ele ficava o tempo todo recluso no laboratório na mata. Bom, ele realmente ficava mais tempo no laboratório do que na loja, mas não o tempo todo. Ele poderia ler 700 páginas do livro mais difícil na biblioteca, mas não aguentaria um único dia falando com tanta gente da forma que Cali fazia.

– Ok, acho que esse foi o último por hoje. Rápido, me ajuda a fechar a porta antes que mais alguém entre! – Caliandro corre até a porta e tranca as fechaduras como se estivesse esperando a invasão de uma manada de Ciclopcerontes raivosos. Talvez nem Caliandro aguentasse falar com tanta gente.

– Cali…

– Hm? – o rapaz termina de trancar a porta e continua distraído com os papéis de encomendas.

– Você já pensou em sair daqui?

– Daqui de onde?

– Da vila.

– Hm… Sim, eu adoro ir pra cidade. Você sabe que sempre vou lá me apresentar na taverna, pode ir junto se quiser. Quer ir comigo hoje?

– Não, quero dizer sair da vila mesmo. Se mudar, sair pra outras cidades, outros reinos.

O rapaz para de organizar os papéis e fica em silêncio.

– Você está querendo ir embora, não está? – Caliandro pergunta.

– Não, eu quero saber se você quer! Por isso que perguntei.

– Você quer saber se eu quero só porque você quer, não quer?

– Eu perguntei primeiro! Você não me respondeu.

Os dois respiram fundo antes de continuar.

– Nunca pensei muito nisso. Quero poder viajar, mas não sei se me mudaria. Gosto daqui. – Responde Caliandro, depois de considerar a pergunta por um momento.

– Mas você sempre reclama de trabalhar na loja.

– Eu sei, mas minha vida é aqui. Acho que me acostumei, sabe? Tenho minha casa, minhas coisas, meus amigos. Tenho você. – o rapaz desvia o olhar, sem jeito – E outra, nas quintas eu faço a apresentação principal na taverna. Como é que posso deixar a taverna sem um bardo nas quintas? Isso, e você mesmo disse, não podemos simplesmente fechar o apotecário. A vila precisa dele.

– A maioria dos clientes tem sido viajantes de fora ultimamente. Acho que eles conseguiriam ir até a cidade pra suprimentos ao invés de parar aqui. – Erevan desvia o olhar, passando a mão no cabelo.

– Você quer ir, não quer? 

– Você iria comigo se eu fosse?

– Não sei. – Caliandro suspira, se apoiando no balcão – As coisas estão bem diferentes, não estão? Sem o seu avô, e agora que o Seu Barba decidiu voltar para a árvore, e cada vez mais viajantes vindo pra cá, a vila está diferente. Você não precisa ficar morando lá sozinho, você sabe, né? O antigo laboratório do seu avô é bem afastado na floresta, fico preocupado com você.

– Não precisa se preocupar, eu sou dríade, a floresta me protege. E eu até prefiro ficar lá. Me sinto mais em casa na floresta do que aqui na clareira.

– Eu sei, eu sei. Mas o convite continua. Você pode morar comigo no quarto de cima do apotecário. Tem uma cama sobrando agora que o Seu Barba não está mais aqui. – O rapaz começa a empilhar as caixas espalhadas e abrir espaço para varrer o chão. – E você pode ir se quiser, não precisa ficar aqui por minha causa.

– Já falei que não vou sem você.

– Não, eu digo, você pode ir pra casa agora, não precisa me esperar fechar a loja. Você mora longe, não quero que chegue tarde. E é óbvio que eu não deixaria você viajar pra outros reinos sem mim! Não vai simplesmente se livrar de mim assim. 

– Ah! Obrigado… – O garoto esconde um sorriso. 

– Agora vai antes que eu faça você varrer o chão!

– Ok, ok, estou indo! Deixa só eu pegar minha bolsa nos fundos…

– Vai, xô!

Erevan abraça o rapaz, pega suas coisas, e sai apressado enquanto Caliandro o expulsa com uma vassoura de dentro da loja. 

O sol já estava se pondo, e os vagalumes estavam começando a aparecer nos arbustos. Os sapos voltaram a coaxar, as corujas Pitã pousavam nos galhos aguardando que uma presa se revelasse, passinhos desconhecidos corriam entre as folhas, e o barulho enchia o ar fresco da noite depois de um dia quente. Erevan nunca se sentia sozinho caminhando na floresta.

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#Fantasy #lgbtq #trans #bl

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Daniê
Daniê

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"cada vez que você vai nessas festinhas volta com outra tatuagem e com o cabelo cheirando a erva!" AKAKAKAKAKAKKAA

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Essa é uma primeira versão de uma história em andamento. Ela está sendo escrita em conjunto: Eu (Nick) escrevo os capítulos do Erevan, e IdiotaSimplista escreve os de Samael. Espero que goste <3
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