Eles não voltaram para o quarto, apesar da vontade do mais novo de se deitar em uma cama e se esquecer do mundo, mas acompanhou o irmão até uma das salas. Lá, a princesa estava com algumas damas de companhia, e encarou de cima para baixo Faryeh, que admirava o luxo do cômodo. Elas estavam sentadas em alguns divãs de metal dourado, o estofado azul como a cor dos olhos da princesa. Profundos e profundamente desgostosos. As roupas dela eram diferentes daquelas da manhã, um vestido vermelho e com fios dourados cobrindo sua pele como as plumas verdes e azuis do penduricalho preso em seus cabelos. Com um gesto, dispensou as outras, deixando-a a sós com os dois homens.
— Francamente, Ehre — ela começou, ao que ele se sentou ao seu lado, e indicou a outra cadeira para Faryeh. — Que tipo de espetáculo causaste. Passei boa parte da tarde desmentindo os boatos de que o herdeiro do trono não era um pedinte com o fedor podre e sujo de um estábulo, mas visões não morrem tão mais facilmente que palavras.
— Tenho certeza de que acreditarão nas palavras da Princesa, acima de tudo. — Ehre segurou em sua mão, acariciando-a. Faryeh podia ser inocente, mas observou como as bochechas e o topo das orelhas dela se aqueciam com sangue, o rubor de sua maquiagem sobreposto pelo de seu corpo. — Afinal, quem desafiaria a vontade de Leise?
— Pare de me bajular, Ehre — mas manteve a mão contra a dele, apertando-a de leve. — Seu irmão causou uma inconveniência, ainda bem que posso remediar...
Faryeh deu de ombros, não entendo muito as implicações. Não entendia porque ela estava atacando-o logo. Não seriam família em breve? Ela seria a sua cunhada, esposa de seu irmão... mas o rapaz estava cada vez mais desconfiado de que eles não se dariam tão bem quanto Ehre pretendia...
— Bem, para ser justo, não sabia que isso aconteceria. Eu fui arrastado até o castelo...
— É algo bom que a verdade sai dos meus lábios e não dos seus, não é mesmo, caro Faryeh? — Leise o interrompeu. — Você foi convidado a se juntar a nós no castelo e na família real. É de tamanho privilégio que me pergunto se tens a mínima noção da benção que obteve...
Ehre apertou mais o enlace entre os dois, chamando a atenção da noiva. Leise virou-se para ele, ainda um pouco emburrada, mas havia algo no outro que derretia aquelas paredes de gelo.
— E estou certo de que a princesa será benevolente para ensinar meu irmão, não é, Leise? Ele precisa honrar sua família.
— É lógico. Aulas de dança, esgrima e principalmente etiqueta estão em ordem. Além do básico como estratégias e matemática.
— E escrita — Ehre acrescentou. — História, também.
— Não se preocupe. Cuidarei para que seu irmão tenha o básico preparado para o baile de seu debute.
Era uma conversa muito intensa para Faryeh, que sentia a ansiedade começar a lhe invadir aos poucos, então suas mãos se juntaram e ele começou a beliscar um pouco a pele morta. Seu olhar se ergueu um pouco ao ouvir a última frase, e aí o pânico entrou de vez.
— B-baile? — Faryeh gaguejou. — Terei que dar um baile?
— Não se preocupe, é o mínimo que você precisa para se mostrar para a sociedade. Você está para fazer dezesseis anos, não é?
— Sim, mas...
— É uma data apropriada para ser introduzido aos seus compatriotas, embora um pouco tarde. Existem pessoas que debutam um pouco mais velhas, no entanto, então não fará muita diferença você ter perdido alguns meses.
— E eu tenho que aprender tudo isso... até essa festa?
— É o mínimo.
Ehre sorriu para o irmão, tentando tranquilizá-lo.
— Tem alguns meses ainda, Fay.
— Sim, meu aniversário é somente no verão — Faryeh começou, se sentindo mais aliviado por seu irmão tentar o tranquilizar.
— Ah, mas nosso casamento é na semana que vem. Terá que comparecer, é claro.
Faryeh sentiu o estômago revirar. Seu rosto empalideceu, e apertou as mãos contra as coxas.
— Não acho que consigo fazer isso...
— Tolice. É o irmão de Ehre, que aprendeu tudo em três dias. Você conseguirá, para o bem ou para o mal. — Leise ergueu o olhar. — Por falar nisso, entrem.
Faryeh se virou para trás quando viu três figuras abrindo a porta e entrando. Uma delas era um rosto conhecido, uma das servas que tinha lavado seu corpo. As outras eram rostos novos, e uma delas estava vestida com calças e uniforme militar. Kalila usava um vestido preto e discreto, enquanto a outra era um pouco mais velha, e trajava vestes verde escuras.
— Kalila será sua atendente principal, Faryeh. — Leise apontou para a moça com os cabelos presos. — Tudo que precisar ou querer, pode pedir a ela. Sarvarth será sua guarda-costas. E Caroline, sua professora de etiqueta.
— Ah... prazer, acho.
Leise revirou os olhos, claramente desaprovando o outro. Ehre voltou a tocar em sua mão, beijando-a por cima da luva, enquanto Faryeh se encontrava desgostoso com o flerte em sua frente, e talvez, uma pitada de ciúmes, que tentou engolir. Leise era a noiva de Ehre, e em menos de uma semana, eles todos seriam família. Teria que se acostumar com aquelas pequenas demonstrações de afeto, ao menos. E algum dia... Ele mesmo teria uma noiva, não era? Se era o herdeiro, era apenas lógico que continuasse a linhagem real...
Faryeh definitivamente se sentia enjoado ante o pensamento.
Sarvarth se aproximou, se curvando em frente a Faryeh.
— Protegerei-o com minha vida, Vossa Alteza.
— Não é necessário tudo isso...
— Claro que é — Leise interrompeu. — Precisas compreender que o futuro de meu reino descansa em seus ombros, Faryeh. Por mais que eu não concorde com isto, és o herdeiro de Ehre, que será Rei. A não ser que um milagre acometa meu ventre... — Ela se virou com os olhos brilhando para Ehre. — Vamos rezar por isso, querido?
Foi a vez de Ehre parecer constrangido.
— Claro, Leise. Espero que os Deuses se apiedem da minha condição. — Ela sorriu diante das palavras, parecendo perdida em seu olhar um pouco. Faryeh revirou os olhos e encarou as duas outras. Kalila sorria, mas Caroline... ela tinha um olhar severo em sua direção, e Faryeh tremeu um pouco. Estava acostumado a aquele tipo de olhar...
Era puro desprezo.
— Não acha que deveríamos começar logo o treinamento, Vossa Alteza? — a voz de Carolina até mesmo soava severa. — Temos pouco tempo.
— Isso seria ótimo...
— Não. Deixem Faryeh descansar por hoje, são muitas emoções de vez. Amanhã o treinamento pode começar logo cedo. — Ehre decretou. — Meio dia a mais ou a menos não fará diferença alguma, Leise.
— Tudo que pedes é meu comando também, Ehre. — Leise se virou para Faryeh. — Cunhado, tens o dia livre, então sugiro que conheça mais de seu quarto e descanse. O treinamento de verdade começa amanhã.
Faryeh continuou sentado, mas Leise fez o mesmo gesto que tinha feito antes. Ao perceber que ele não compreendeu, ela soltou mais um suspiro desapontado.
— Estou dispensando-te, cunhado. Pode ir.
— Mas Ehre...
— Tenho coisas a tratar com Ehre, se não se importa. Não se preocupe, ele não irá sumir.
Faryeh ainda encarou o irmão, que apenas deu de ombros, e soube que era uma batalha perdida. Ele se levantou, enquanto Kalila e Sarvarth foram em direção à porta, Caroline saindo primeiro e indo em outra direção. Sarvarth se adiantou:
— Vai para seu quarto, Vossa Alteza?
— Acho que sim. — Faryeh deu de ombros enquanto Kalila fechava a porta atrás deles. — Talvez conhecer um pouco mais do terreno.
— Não está se sentindo cansado?
— Estou, mas... estou mais curioso que cansado.
— Bem, podemos passear pelos jardins, o sol saiu o suficiente para que possamos aproveitar um pouco de seus raios nesta bela tarde. Sarvarth, por favor, guie o príncipe.
— Por que eu a guiar?
— Ah, é apenas pela bela visão... — Aquilo era um flerte? Por que todo mundo estava experimentando o romance na frente dele? Um sentimento de exclusão surgiu em Faryeh. — E porque quero conversar algo com o príncipe.
Sarvarth pareceu olhar para ela confusa, mas obedeceu mesmo assim.
Os três seguiram porta a fora, a serva andando poucos passos atrás de Faryeh, que anda absorvia todo o cenário a sua frente. Os corredores eram feitos de pedras cor de creme, claros e que absorviam o calor que provinha do Sol àquela hora da tarde. Andando mais um pouco, Sarvarth guiou os três para um pequeno jardim interno, com árvores frondosas cujas folhas jaziam sobre a grama amarelada, o primeiro sinal de inverno à sua frente. O ar fresco e úmido invadiu os seus pulmões, e Faryeh começou a caminhar para o campo, admirando tudo.
Ainda parecia muito com um sonho, aquela situação toda. Tinha sido acordado depois de dormir na estrebaria! E agora, no meio da tarde, tinha comido carne, tomado banho quente e ainda por cima, tinha servos. Ele fechou os olhos, sentindo o cansaço irradiar dos seus ombros para suas costas. Era difícil se acostumar com as novidades, porque o sentimento que tinha no peito era de que tão fácil veio, tão fácil poderia ir embora. No final, seu único aliado era seu irmão, e os dois eram estranhos naquela terra nova e abundante...
Sentiu um toque gentil em seu ombro, e se virou para encarar a serva. Kalila era mais baixa do que si, mas pelos traços de seu rosto, ela era mais velha, talvez com quase trinta anos. Os cabelos estavam escondidos debaixo do hábito, mas as raízes à mostra eram alaranjadas, e Faryeh encarou pela primeira vez seus olhos mel com uma feição muito gentil. Ela entregou uma folha para ele, uma das últimas que ainda mantinha uma coloração verde.
— Sei que são muitas novidades, mestre — ela começou a dizer, e Faryeh ficou em silêncio —, mas quero que saiba que apesar de tudo, eu e Sarvarth apenas queremos o seu bem. Ainda virão muitas pessoas que se aproximarão de ti visando ganhos, ou o seu mal, mas acredite em mim quando digo que tens a nossa mais completa lealdade.
E para a surpresa de Faryeh, ela curvou seu corpo, alcançando o chão frio, sendo acompanhada por Sarvarth — que apesar de não ter dito nenhuma palavra, parecia compartilhar do sentimento. De imediato não soube o que fazer, era a última coisa que pensava que aconteceria. Ele rapidamente se curvou também, tocando as costas de Kalila, urgindo para que se levantasse.
— Não é necessário! — ele se apressou em dizer. — Por favor, não precisam se ajoelhar...
— É nosso dever proteger o senhor com nossas vidas — era a primeira vez que ouvia a voz de Sarvarth, e ela tinha um tom sério e baixo. Ela não tinha os cabelos presos em hábitos, mas o dela era curto e rente à pele que, apesar de não estar muito a mostra, era tão mais escura que a dele. Só que ela trajava o uniforme da guarda, ainda com uma armadura da guarda, feita de couro, e o cinto que prendia a espada à sua cintura era prateado com alguns detalhes que brilhavam como ouro. Faryeh sentiu o coração de acelerar, preocupado.
— Não é necessário...
As duas ergueram o rosto para encará-lo.
— É nossa promessa — Sarvarth disse.
— E nosso dever — Kalila complementou.
— Ainda assim... — Faryeh não entendia, mas... se ajoelhou ao lado delas, tocando no ombro de ambas. — É minha promessa e dever cuidar de vocês também. Afinal, eu sou o príncipe herdeiro, não é? — E ele sorriu, tentando apaziguar a situação.
— Mestre, não precisa se ajoelhar! — Sarvarth corou, surpresa.
— Mestre... — Kalila começou, mas Faryeh a interrompeu.
— Podem me chamar de Fay, para começar.
— Jamais! — O rubor de Sarvarth escureceu ainda mais em seu rosto, mas Kalila soltou uma risadinha travessa.
— Não creio que a princesa gostaria disso. — Só que ela tinha um sorriso travesso, apesar de levar a mão para a boca para escondê-lo.
— A princesa não está aqui, está? — Faryeh argumentou.
O sorriso de Kalila foi bem largo, saindo do seu esconderijo. Sarvarth parecia ainda mais indignada, mas Faryeh encontrou a coragem para continuar.
— Eu posso estar sendo muito inocente, mas mais do que servas, eu gostaria que fossem minhas amigas. Eu nunca tive um amigo antes... e quero confiar em vocês. Se possível, claro.
— Mas é claro, mestre.
— Fay — o príncipe insistiu.
— Sarvarth é um pouco difícil com a etiqueta, mas eu não. Fay será, ao menos na privacidade. — Kalila sentou-se ao seu lado. — Quero que saiba que não estará sozinho nisso, Fay. Pode contar conosco para o que for, até o fim dos tempos.
E podia ser o sol, podia ser o calor do momento, mas Faryeh fechou os olhos, e sentiu a mente vagar. De alguma forma, aquele lugar poderia ser especial. Ele aceitaria essa benção que os Deuses lhe deram, e iria aproveitar as oportunidades, e cumprir o seu dever. Ele ainda não sabia muito bem qual era o seu dever, mas... Pela primeira vez, aquele lugar parecia muito com uma casa.
Finalmente, ele se sentia seguro.

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