Ren passou a manhã organizando seus livros no 703.
Não que fossem muitos — três caixas no máximo —, mas cada um parecia carregar algo além do conteúdo. Títulos sobre exorcismos, histórias esquecidas, manuscritos malditos. Obras que tratavam do limiar entre o que é contado... e o que é silenciado.
O de capa vermelha era o mais estranho. Quando ele o tocava, o ar mudava. Ficava mais pesado, como se as páginas respirassem. O toque na lombada fazia seus dedos formigarem — um leve zumbido que subia até o cotovelo.
Ren espalhou os livros pelo chão da sala, testando as posições. Não só para leitura — mas para o efeito simbólico. Sim, ele acreditava nessas coisas. Fluxo de energia.
Cada um caiu no chão numa posição que fazia o ar vibrar — norte, sul, leste, oeste. O de capa vermelha ele colocou no centro, onde as tábuas do assoalho rangiam mais alto. Espaços de memória. O lugar onde você posiciona um livro sobre rituais esquecidos pode influenciar o que ele revela. Ele fechava os olhos por segundos a cada novo local, tentando “sentir” o que o apartamento deixava passar.
Do lado, o caderno. Aberto. Caneta ao alcance. Gravador ligado.
“Dia 2. O apartamento aceitou minha presença. Ou finge que aceitou. Estou atento.”
Do lado de fora, Tóquio seguia com seus ruídos e horários. Moradores entrando e saindo. Entregadores tocando campainhas. Crianças descendo com mochilas. O Kurokawa Heights funcionava normalmente — pelo menos até o sexto andar.
Era só o sétimo que parecia existir em outra frequência. Dentro do 703, o tempo era outra coisa. Um sussurro. Uma espera.
Hayato tentou trabalhar naquela manhã. Tentou. Mas não conseguiu.
O prédio sempre teve seus barulhos. Estalos de madrugada. Sussurros que ele atribuía aos canos. Um espelho que embaçava sozinho, mesmo com a janela aberta. Hayato nunca acreditou em nada disso. Sempre foi cético. Prático. Tudo tinha explicação lógica.
Mas nas últimas noites... as coisas mudaram.
Desde que o novo vizinho chegou.
O sétimo andar parecia mais vivo. Como se o prédio — ou algo dentro dele — tivesse acordado.
Seus olhos insistiam em voltar para a parede. Aquela mesma parede que dividia seu apartamento do de Ren. Ou, mais precisamente... o quarto de Ren.
Ele ouvia passos durante a madrugada. Livros sendo arrastados. Vozes abafadas. Às vezes em latim. Às vezes... em japonês arcaico.
E ele sonhava. Sonhos que não eram seus.
“Ela ainda espera.”
A frase o perseguia desde a noite anterior. Ele havia lido no espelho — ou achava que tinha. Depois, sumiu.
Hayato apertava o anel no pescoço como quem busca âncora. Mas naquela manhã, sentia-o frio demais. Leve demais. Como se não fosse mais dele.
A corrente fora um presente do irmão, Yuki. O único que parecia enxergar Hayato por completo. A mãe deles dizia pouco, depois da tragédia. Desde o desaparecimento, ela falava com mais silêncio do que palavras. Hayato cresceu entre os dois — um que sumiu sem explicação, e outra que nunca conseguiu explicar nada.
Abriu o projeto na tela do computador. Planta baixa de um hospital. Corredores brancos, sem janelas. E se perguntou: quantas janelas um prédio precisa pra ser confiável?
A luz do monitor piscou. Só uma vez. Mas foi o suficiente pra ele fechar tudo e se levantar.
À tarde, Ren saiu para comprar chá, papel novo e uma vela aromática que jurava afastar espíritos — ou pelo menos perfumar o trauma. Quando voltou, encontrou o apartamento levemente diferente. Nada visível, mas… o cheiro. O ar. Umidade nas frestas. Sutil, mas presente.
Era como se tivessem movido as paredes enquanto ele estava fora.
O espelho da sala estava mais inclinado. Não muito. Só o suficiente para refletir a porta do quarto.
Ren caminhou até ele, devagar. O som dos passos parecia ecoar com atraso, como se o chão registrasse primeiro e só depois devolvesse.
— Ainda não — murmurou, para ninguém. Ou para o que escutava.
Então, escreveu:
“Espelho mudou de ângulo. Não toquei. Códigos em curso? Expectativa?”
Às 18h, um som novo: água correndo onde não havia torneira aberta. Um som constante, como se viesse de dentro das paredes. Ren encostou o ouvido na divisória entre a sala e o banheiro.
Nada. Até o momento em que ouviu:
“Você esqueceu.”
Uma voz baixa, quase soprada entre as rachaduras.
Ren olhou ao redor. A casa permanecia imóvel. Mas sentia. Ela estava esperando algo dele.
Na noite do segundo dia, os passos voltaram. Às 3h17. Como na anterior.
Arrastados. Precisos. Paravam diante da porta.
Três batidas curtas. Duas longas.
Ren não abriu. Apenas se sentou no chão, com o gravador no colo, olhos fechados. Esperando ouvir algo mais.
E ouviu.
O som de um objeto caindo dentro do armário do quarto.
Foi até lá. Abriu. Nada.
Exceto… uma fita vermelha caída entre as madeiras. Não a dele. Outra. Mais antiga. Com cheiro de incenso queimado e poeira de altar.
Ele se ajoelhou. Olhou por longos segundos. Pensou na avó. Na fita que ela dizia carregar palavras não ditas. Será que era dela? Ou daquilo que morava ali?
Ele não a tocou. Ainda.
Hayato também acordou às 3h17. E não foi pelos sons do prédio. Foi pelo sonho.
Ele via o irmão. Yuki. Vestindo o uniforme do trabalho, sujo de terra. Estava de costas. Encostado na parede do Kurokawa Heights. A mesma parede.
— Yuki! — gritou.
O irmão não virou. Apenas disse:
— Ela está no espelho.
Quando Hayato acordou, estava de pé, diante do espelho do banheiro. A luz oscilava — como se a lâmpada piscasse só por dentro do vidro.
Havia algo escrito com vapor:
"Ela ainda espera por um nome."
Na manhã seguinte, o reencontro no corredor foi inevitável.
Ren, com chá verde e biscoitos de arroz absurdamente duros. Hayato, com café preto e a paciência esticada ao limite.
O silêncio entre eles não era incômodo. Era cúmplice.
— Dormiu bem? — perguntou Ren, com aquele sorriso enviesado que já parecia de propósito.
Hayato ergueu a sobrancelha: — Só quando os fantasmas resolveram parar com a rave das três da manhã.
Ren riu. Pouco. Só ar.
— Achei que estavam sendo simpáticos. Ontem teve até frase em latim. Quer ouvir? — puxou o gravador do bolso. — Eu não falo latim, mas... ela parece falar.
Hayato cruzou os braços, mas a corrente do anel cutucou sua clavícula como um aviso. O olhar vacilou — parou na boca de Ren por um tempo longo demais para ser acidental — antes de se arrancar dali.
"Bonito demais pra ser tão irritante."
— Você se diverte com isso, né? — perguntou, seco.
Ren inclinou a cabeça, provocativo: — Me divirto com muita coisa... Mas você ainda não me viu interessado de verdade.
Hayato engoliu seco. Aquilo foi pessoal. Duplo sentido. Intencional.
Mas tudo o que disse foi: — Você devia parar de anotar tudo. Uma hora, o prédio vai querer ler também.
Ren sorriu. Agora mais gentil: — E você devia parar de fingir que não ouve o mesmo que eu.
Os olhos se encontraram. Tempo demais.
Ren se virou, indo até sua porta. Antes de entrar, disse por cima do ombro: — Ela me chamou de volta. Mas não lembro de onde.
E Hayato, sem pensar, respondeu: — Talvez... do lugar onde você esqueceu o nome dela.
Ficou imóvel. "Por que eu disse isso?"
Mas sentiu. Algo no prédio reagiu.
Como se o prédio tivesse prendido a respiração.
Naquela noite, Ren sonhou. Ou talvez… lembrou.
O 703 era terra e sangue. A sala respirava. As paredes escorriam. A madeira gemia como se tivesse vida. A janela estava lacrada, mas o vento sussurrava.
No centro, a boneca de quimono branco. Hina-ningyō. Mas agora, com os olhos de Ren. Ele se via nela. Ela piscava. Ele piscava junto.
— Você esqueceu o nome dela — disse a boneca. — E ela ainda espera.
Ren tentou se afastar. Mas o chão puxava.
— Você teve uma chance. Ele também teve.
— Yuki? — perguntou, sem voz.
Ela sorriu. E disse:
— Vocês só lembram quando sangra.
O quimono tingiu-se de vermelho. A boneca desfez o rosto. E por um segundo, era o rosto de uma mulher. Triste. Mas forte. E faminta por lembrança.
Ren acordou com um sobressalto. O caderno estava em seu colo. Aberto numa nova página. Não a mesma da noite anterior.
Você voltou. Ela lembra. Ela ainda espera.
E abaixo:
Procure o espelho. Ela quer ser vista. Antes que o reflexo desapareça.

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