O silêncio naquela rua não bastava para apaziguar a pressa que contagiava o coração do Buloke. Já havia subido o suficiente para escolher quais vias prosseguiria.
“O caminho mais convencional seriam as subidas. Mas há maior possibilidade de cruzar com aqueles policiais, visto que eles estavam patrulhando outra rua como esta. Sendo assim...”
Raimundo virou para outro acesso que os pouparia de uma enxaqueca desnecessária e topou de frente com um beco longe de ser estreito, mas que seria o caminho impensável para qualquer forasteiro que estivesse subindo o morro pela primeira vez. Mas ele sabia que, para sobreviver, precisava transformar o improvável em padrão. Assim, se desafiou a entrar ali.
De alguma forma, aquilo cessou a sensação sufocante de estarem sendo vigiados na rua principal. Agora, só tinham a oportunidade de serem vistos por curiosos nas lajes — as quais estavam vazias devido ao horário — ou por moradores que chegariam no portão, atraídos pelos latidos de seus cães, perturbados pela pressa do jovem em encontrar um local seguro para iniciar a cura de sua irmã.
E essa intuição não estava equivocada, pois uma movimentação passou despercebida pelos irmãos, abrindo um portão de ferro com grades no topo, surgiu uma senhora de pijama, que parecia ter despertado com a algazarra instaurada.
Fitando aquelas crianças, vasculhando-as de cima a baixo, como se usassem a comunidade como refúgio contra alguma ameaça externa, a senhora instintivamente refletiu.
“Se continuarem correndo nesse desespero, só vão atrair mais problemas. Ainda mais com aqueles marginais pela rua. Tenho que pará-los!”
Movida por aquele impulso, a idosa logo gritou mais alto que qualquer outro som na rua.
— Ei, crianças! Entrem aqui! Não é seguro ficar correndo a essa hora da noite! — gritou, afastando-se e deixando o caminho livre para que eles cruzassem o corredor até a casa ao fundo.
Por instinto, Raimundo acatou o pedido, mesmo sabendo que corria o risco de cair numa armadilha e que, se sua irmã estivesse consciente, o espancaria pela imprudência. Assim, o portão foi fechado.
— Segue por esse corredor até chegar na minha varanda.
Seguindo as instruções da desconhecida, o jovem agiu antes mesmo de raciocinar direito sobre o que encontraria. Cruzou o corredor com menos pressa do que antes, mas ainda com a preocupação com sua irmã como uma lâmina atravessando o pescoço.
Um pouco mais à frente, na varanda da casa, havia uma decoração mais habitual com alguns vasos de planta, pata de leão de madeira esculpida e quadros na parede. Tudo era iluminado por uma luz amarela que rebatia na mesa cheia de tigelas de frutas cobertas.
Raimundo desceu sua irmã das suas costas para deixá-la sentada, aproveitando a cortesia da dona da casa, que veio em seguida.
— Me diga, filho. Com calma. O que aconteceu com ela?
— Ela foi envenenada. Preciso de uma seringa com urgência.
— Tenho uma lá dentro, um segundo.
— Muito obrigado... Mesmo...
Agradecido, o jovem Buloke tentou se acalmar enquanto via sua irmã suando, com enorme dificuldade para respirar. Ela já estava perdendo um pouco de sua melanina, reflexo da força que se esvaía.
— Não vacile, maninha — tentou manter a compostura, enquanto segurava na mão de Raissa. — Vai dar tudo certo, ok?
Ela estava entre o estado de inconsciência e lucidez, e respondeu com uma tentativa embriagada de sorriso. Entretanto, antes que os martírios vencessem, a senhora retornou com uma seringa nas mãos e uma caixa de algodão, entregando a Raimundo aquela ferramenta requisitada.
— Aqui, meu jovem. Já sabe onde irá aplicar e qual a medida?
— Um segundo — disse Raimundo, lendo as anotações da bula, que especificava vários detalhes sobre o uso profissional daquela antitoxina. — Segundo o que está escrito, tenho que aplicar 200 ml diretamente na veia. Você pode dar uma ajudinha?
— Claro. Apesar de não ser difícil encontrar as veias dessa menina... — afirmou a senhora, enquanto examinava os pulsos pálidos de Raissa e localizava as veias com facilidade. — Está firme, pode ir.
Com os braços firmes e estabilizando a respiração, ele localizou a veia no braço de Raissa e iniciou a infusão de hidroxocobalamina. A coloração avermelhada do antídoto escorria lentamente pela agulha, lutando contra aquele veneno que já avançava pelo corpo dela.
Assim que terminou a aplicação, aliviou a tensão e torceu para que o antídoto surtisse efeito.
Percebendo que o clima havia se acalmado e o medicamento só precisava agir, a senhora aproveitou a proximidade com aquele jovem desconhecido para perguntar sobre o que a afligia naquele momento.
— Olha, agora que está mais calmo, me explica o que aconteceu para você estar tão desesperado e ela precisar de uma antitoxina.
— Como você sabe que é...
— Meu filho, minha família vem do interior de Carpe Diem. Ou seja, estou acostumada com medicamentos contra venenos.
— Bom... É uma longa história, mas fomos atacados e viemos para dentro da comunidade, que era a única rota de fuga possível.
— Eu suspeitava... — afirmou ela, com uma confiança que indicava que já aguardava a chegada da dupla ali. Virou-se para continuar sua sentença. — Mesmo assim, vocês correram um risco danado de encontrar uma ameaça ainda pior do que essa que estava perseguindo vocês.
— Como assim?
— Aqui, tudo é monitorado por aqueles marginais do MHP. — Encostou-se no canto da porta para continuar. — O que ronda ou entra na comunidade é vigiado por eles. Ou seja, vocês corriam o risco de trombar com eles e provavelmente não dariam ouvido ao seu desespero.
— Caramba...
Raimundo tinha a mínima ciência sobre esse grupo, mas, pelo que conhecia, sabia que não seria bem aceito por eles, devido a conflitos anteriores com os Fiéis a Sândalo que deram a fama de “terroristas” ao Movimento Humanista Proletário, que, pelo nome, já indicava ser um grupo idealizado por trabalhadores contrários à influência do Sandalismo ou de qualquer outra religião no debate público. Porém, ainda conhecendo-os, percebeu que cometeu um deslize.
“Bem que havia boatos de que o MHP estava alocado na região Sul da cidade... Por que nunca questionei que poderia me deparar com eles a qualquer momento? Mesmo assim, logo no Morro do Éden? Tem uma boa dose de azar nisso.”
— É capaz de os outros bandidos já estarem cientes de vocês.
— Outros?
— Ainda tenho muita coisa para contar, meu jovem. Mas, antes disso, entre. Faça sua irmã se deitar aqui no sofá um pouquinho.
Conseguinte ao convite feito por ela com alguns chamados com a mão, a senhora entrou na sala e foi até a cozinha pegar algo. Então, o moreno não hesitou em segui-la, levando sua irmã pelo ombro até o outro cômodo.
O espaço parecia pequeno devido ao número expressivo de moveis. Entre eles, era curioso perceber a ausência de aparatos tecnológicos, o principal sinal de que ela era alguém que se informava por televisão e do rádio, como a maioria da população periférica de Jardim dos Desejos.
Logo na entrada, Raimundo se deparou com a bancada da pequena cozinha americana, que tinha várias molduras com fotos da família e um rádio de pilha velho, desligado. Em um olhar panorâmico, notava alguns moveis pequenos com artes inspiradas em trechos do Divinal, além do próprio livro sagrado aberto sobre a TV.
Aquela senhora aparentava ser uma Fiel convicta de Sândalo, mais especificamente, uma admiradora da família Buey, vide as pequenas estátuas de Saint-Paul junto de outras referências à sua trajetória como discípulo.
Logo, Raimundo deixou sua irmã encostada no sofá, demonstrando rapidamente seu constrangimento pelas ações que possivelmente haviam levado à desestabilização de uma casa até então distante da desordem.
— Tá realmente tudo bem ficarmos aqui? Creio que acordamos a casa inteira... Mil perdões — o jovem se aproximou da bancada da cozinha, constrangido, erguendo as mãos à frente do rosto.
— Que nada, garoto. Me sensibilizei com a condição de vocês, principalmente depois desses disparos. Já estive ilhada na rua numa situação parecida.
A senhora pegou uma garrafa d’água na geladeira e se dirigiu à pia, onde poucos copos ocupavam o espaço. Mantendo a cortesia com aquelas visitas inesperadas, lavou dois copos com urgência e os colocou sobre a bancada.
— O único problema seria se vocês acordassem meu marido, mas tiveram sorte que ele tem um sono de pedra — brincou enquanto enchia os copos. Em seguida, indicou com o queixo que ele levasse um deles para Raissa no sofá.
Imediatamente, o garoto acatou aquele pedido, ao mesmo tempo, a cacheada ajeitou sua postura, erguendo-se esforçadamente para se hidratar. Então, molhou o bico, arrumando forças para agradecer a hospitalidade, dado que estava praticamente desacordada anteriormente.
— M-Muito obrigada pelo espaço... — disse Raissa, tossindo ao forçar a garganta — M-Mas... por que se sensibilizar por estranhos? Ainda não faz sentido pra mim.
Percebendo que sua resposta não seria satisfatória para cessar aquela insistência daquela que acabara de acordar. A mulher, debruçada sobre a bancada da cozinha, pareceu hesitar. Seu olhar se perdeu por instantes, e ela suspirou fundo antes de responder.
— A razão tem a ver com essa foto — apontou para uma moldura que tinha naquela interseção entre os dois cômodos. — Seu irmão me recorda meu filho que infelizmente foi pego pelos desgraçados do MHP.
A fotografia mostrava a senhora com um vestido azul combinado a uma camisa branca de mangas compridas, ao lado do marido, que usava um cardigã cinza sobre uma camisa xadrez em tons de azul. Ambos seguravam o Divinal. E apesar dos cabelos grisalhos, a pele do senhor exibia menos rugas que o esperado para sua idade. Entre eles, estava um garoto franzino, de lábios carnudos de cabelo preto repartido. O garoto, contido, revelava um desconforto, mantendo a timidez.
— Nossa... ele é bonitão.
— Não me importaria dele se casar com uma menina tão bonita quanto você. Pena que ele teve que ser capturado por esses alienados...
Respondendo por meio de seu sorriso singelo, a jovem não abriu o bico para estragar com a fantasia de uma senhora tão melancólica, mesmo que essa hipótese não tivesse nenhuma chance de êxito visto que distinguia de sua orientação sexual.
O silêncio tomou a atmosfera por alguns longos segundos, até que a senhora quebrou o gelo guardando a garrafa e indo recolher aqueles copos já vazios.
— Bem, não adianta se remoer pelo passado. O importante é olhar adiante.
Aquelas palavras tocaram os irmãos Buloke, que haviam adotado essa reflexão desde que decidiram se opor aos planos da família. Ainda assim, sabiam que um pequeno lamento persistia dentro de si, um sussurro que fingiam não escutar, conscientes do quanto já haviam tentado.
— Com licença, dona...
— Fátima. Não tive tempo de me apresentar.
— Dona Fátima, pois bem. Creio que não podemos ficar o tempo todo aqui. A senhora sabe de alguma instalação ou abrigo por perto?
— Olha — disse ela, levando a mão ao queixo enquanto pensava — há um abrigo na rua de cima, mas vocês terão que subir uns bons lances de escada para chegar lá. Não sei se vale a pena correrem esse risco agora.
— Não tem problema esperarmos um pouquinho. E dependendo da rota, com a Raissa bem, vamos chamar pouca atenção. Não é, maninha?
— Com certeza.
Naquele clima de mansidão, embalado pelos sorrisos dos irmãos, era como se grãos de pólen preenchessem o ar. Os três seguiram conversando sobre o cotidiano da região até os ânimos do entorno se acalmarem. Quando finalmente superaram esse obstáculo, os jovens se prepararam para partir dali.
A senhora logo virou o molho de chaves até abrir a porta. Depois disso, Fátima prestou atenção na atmosfera fria da rua, estavam próximos das três horas da madrugada, observando especialmente a rua principal, onde haviam escutado vestígios da polícia há algumas horas. No entanto, não encontrou nada que fosse que representasse grande perigo para a dupla.
Em seguida, direcionou o olhar para Raimundo, um pouco adiante de sua irmã Raissa, agora em pé. O jovem correspondeu à mensagem da senhora com o peito erguido, pronto para ser o escudo da irmã, evitando situações como o recém-envenenamento e a vulnerabilidade dela na batalha que ocorreu nos céus da cidade.
— Obrigado pela hospitalidade — Raimundo agradeceu, beijando a mão da senhora.
— Antes de partirem... — Um mistério parecia se espalhar pelo espaço — Vocês estão fugindo de alguma besteira que fizeram, né?
— Como assim? — Um frio percorreu sua espinha. Ainda assim, não conseguia imaginar uma devota à Sândalo, bem-informada, seria tão receptiva com eles. Cogitou seriamente que ela não os conhecia, já que provavelmente estaria dormindo durante todo o fuzuê no Festival de Katharos.
— Desculpa. Haha. Ninguém iria querer se esconder num fim de mundo desses.
Tinha a confirmação de que precisava. De fato, o conhecimento sobre os possíveis sucessores das famílias era restrito àqueles com envolvimento direto nos bastidores das doze famílias. E como ela não era uma líder religiosa, nem aparentava ter parentesco com algum membro, apenas exercitava sua fé, por isso, tiveram a sorte grande de serem resgatados por ela.
— Como posso dizer... Estamos seguindo igual você: olhando adiante e fazendo o necessário para cuidarmos um do outro.
O sorriso quente da dona Fátima tocou o peito da dupla que lhe deu as costas e seguiu pelo beco ao lado, até eventualmente encontrarem a escadaria.
— Você percebeu? — perguntou Raimundo.
— O quê?
— Assim que saímos... ela estava nos abençoando. Com o terço, sabe?
— Sério? Que fofuxa!
A senhora, com as mãos unidas, as colocava à altura do nariz, deixando o terço encostar no peito. O objeto trazia a mesma pata esculpida que estava na varanda, símbolo de Saint-Paul. Assim, ela sussurrava:
— Proteja-os com seu rugido de leão. Amém.

Comments (0)
See all