Dia 5 no Kurokawa Heights.
Cinco noites desde que o prédio começou a chamar Ren pelo nome. Às 3h17, sempre, como um despertador do outro lado. Ren estava exausto. Mas seus olhos nunca pareceram tão vivos.
Ele não dizia isso em voz alta, claro — fingia normalidade. Mas quem o visse madrugada adentro, no chão do 703, desenhando padrões no caderno como quem decifra os ossos de um morto antigo, saberia: Ren não queria fugir. Ele queria entender.
E o prédio... começava a responder.
Na primeira noite, as batidas voltaram: três rápidas, duas longas. Na segunda, o frio rastejou pelo assoalho, denso e consciente. Na terceira, a estante se moveu — quase imperceptível, mas o bastante para derrubar o livro vermelho.
Ele caiu aberto na página 17.
O número estava marcado com carvão.
Ren congelou.
Aquela marca no número... parecia familiar. Não sabia de onde. Mas algo dentro dele — algo silencioso, profundo — reconhecia aquele traço em carvão. Como se lembrasse de algo que não era dele. Como se já tivesse segurado um livro assim… em outra vida.
Mais tarde, no corredor, Ren se abaixou para pegar uma caneta caída perto da porta do 702.
Não sabia por que fez isso. Não pensou. Só… agiu.
O metal ainda guardava o calor da mão de Hayato – um resquício de presença, um vínculo.
Ren apertou os dedos em volta como quem fecha um segredo. Pois objetos carregam vínculos. Vínculos abrem passagens.
E quando encostou no livro vermelho com aquela mão, sentiu algo quente vibrar no peito.
Não era magia. Era memória tentando voltar.
Hayato não dormia direito desde a chegada de Ren.
O prédio, antes silencioso, parecia em festa. Uma festa fúnebre.
As paredes... murmuravam. A luz do banheiro piscava com mais frequência. E no espelho, por dois segundos, ele jurava ter visto a boneca.
Não um reflexo. Uma presença.
No quarto dia, acordou com terra entre os dedos dos pés.
No quinto, percebeu que parava, sem perceber, diante da porta do 703.
Só… ficava ali. Tentando ouvir. Pensando no que não queria pensar.
Ren.
As manhãs eram normais apenas na aparência.
Hayato saía para o trabalho com passos apressados, pastas na mão, o cabelo perfeitamente arrumado — uma ironia, já que suas plantas arquitetônicas começavam a sair com formas circulares.
Como selos. Como convites.
Ren, na biblioteca, separava livros como um soldado arrumando armas. Mas todas as suas anotações levavam ao mesmo ponto: ela. A entidade. O nome esquecido.
— Você vai organizar essa pilha até quando? — perguntou uma colega. — Até ela me lembrar o que eu esqueci. — Ela quem?
Ren não respondeu. Só passou os dedos pela fita vermelha entre as páginas. E o papel tremeu.
Os dois se cruzavam. Na rua em frente ao prédio. Na konbini da esquina. No elevador, às vezes, sem querer. Ou... quase sem querer.
Na manhã do sexto dia, aconteceu de novo.
Entraram juntos no elevador.
Ren com o caderno de capa dura, uma fita vermelha amarrada com o cuidado de quem sela algo que não pode escapar.
Hayato com café na mão — mas ainda sem ter dado o primeiro gole.
— Você parece pior que ontem — comentou Ren, casualmente.
— Não que ontem eu estivesse ótimo — Hayato rebateu, ajeitando os óculos. — E você ainda acorda no meio da noite por diversão?
— Você diz isso como quem também não dorme.
A luz piscou. Uma vez. Duas. Apagou por três segundos.
Silêncio.
Hayato engasgou... os dedos endurecerem como se mergulhados em cera fria. O sopro que veio depois era o mesmo do dia em que encontraram a roupa do irmão.
Quando a luz voltou, Ren estava ali, mãos nos bolsos. Mas seus olhos... estavam fixos no teto.
Hayato olhou para o reflexo rachado do espelho.
Por um segundo, viu três figuras: ele, Ren…
E uma mulher de quimono, com os lábios costurados e os olhos vazios.
Piscou. A imagem sumiu.
Mas o cheiro persistiu. Crisântemos podres.
No vapor do espelho, uma palavra escrita: VOLTEI.
Hayato não disse nada. Saiu assim que a porta abriu.
Ren ficou um segundo a mais, encarando o reflexo rachado. Como se alguém o chamasse ali dentro.
Naquela noite, o 703 estava mais frio do que nunca.
Ren acendeu um incenso — mirra misturada com uma erva da infância, que sua avó dizia afastar os esquecidos.
Sentou-se no chão. Abriu o caderno.
Desenhou. Símbolos. Círculos. Fragmentos de algo que talvez fosse o rosto de uma mulher.
Na última página, uma frase nova. Escrita com sua caligrafia… ou algo muito próxima:
Hayato está ouvindo também.
Ren tocou as palavras com a ponta do dedo.
O papel esquentou.
Não sorriu. Mas também não se assustou.
"Finalmente..." murmurou.
Hayato acordou no chão do quarto.
Não lembrava de ter ido dormir ali. As roupas estavam sujas. As unhas... com terra.
O peito, pesado. Levantou com esforço.
Foi até o espelho do banheiro.
Ela estava lá. A boneca. Mas dessa vez... ela sorriu.
Hayato não conseguiu se mover.
Atrás dele, vieram batidas. Duas. Três. Quatro.
Mas não eram às 3h17. Era 02h00.
E dessa vez…
Ele sentiu que não iam parar.

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