O dia seguinte amanheceu abafado, como se o calor tivesse se concentrado apenas no sétimo andar. O resto do prédio funcionava normalmente: crianças correndo para a escola, entregadores subindo de escada, um idoso no quinto andar regando plantas artificiais com dedicação sincera. Mas lá em cima, o tempo parecia diferente. Mais denso. Mais velho.
Eram quatro da manhã quando Hayato acordou, sentado na beirada da cama, sem saber ao certo se havia dormido. Os cotovelos apoiavam os joelhos, e as mãos pressionavam a nuca como se tentassem conter um pensamento que ameaçava explodir.
O quarto estava abafado, como se o ar tivesse sido usado por outra presença antes dele acordar. Ainda assim, o espelho da porta do armário refletia mais do que seu corpo — refletia algo que não deveria estar ali.
A imagem dançava devagar, quase sutil, como uma memória teimosa tentando se fixar.
Ele viu, pela terceira vez, o quarto da boneca. As paredes tingidas de um vermelho intenso, quase molhado. O biombo com desenhos de corvos que piscavam lentamente. Mas, desta vez, ele não estava dentro do quarto.
Estava do lado de fora.
Observando pela fechadura.
O metal da tranca parecia respirar. E quando Hayato se aproximou do reflexo para tentar entender melhor... notou que a fechadura estava molhada.
Não era água. Era algo mais espesso. Umidade velha, grudenta, com o cheiro adocicado que ele já associava à presença dela.
A semana que se seguiu foi lenta demais para o corpo, rápida demais para a mente. E, ainda assim, o prédio parecia acelerar.
As batidas, antes reservadas à madrugada, começaram a ecoar em horários variados. Primeiro, logo após o pôr do sol. Depois, no meio da tarde. Portas batiam com violência sem que houvesse vento. E o cheiro — sempre aquele cheiro — de flores murchas e terra molhada, passava a dominar os corredores.
Ren passou a registrar tudo com obsessão quase ritualística.
Pregou folhas de papel na parede da sala, improvisando um mural. Escrevia os horários das batidas, as variações de temperatura, os sussurros que apareciam em gravações noturnas. No centro, começou a desenhar olhos. Muitos olhos. Nenhum idêntico, mas todos com aquele olhar fixo e vazio — o olhar da boneca.
No trabalho, já não conseguia fingir normalidade. Colocava livros em prateleiras erradas. Respondia perguntas com frases pela metade. Às vezes, parava no meio de uma tarefa e simplesmente... escutava.
— Tá tudo bem com você? — perguntou uma colega da biblioteca, preocupada com o tom pálido de sua pele e o jeito que seus olhos pareciam mais fundos a cada dia.
Ren piscou devagar. Sorriu. Mas não de forma reconfortante.
— O prédio anda ouvindo demais — respondeu, quase num sussurro, como se temesse que ele também pudesse escutar do outro lado da cidade.
Hayato tentava manter sua rotina como quem tenta conter uma represa prestes a romper.
Acordava, se vestia, ia ao escritório. Mas a cada dia, voltava para casa com menos lembranças do caminho. A cidade ao redor parecia desfocar. E ele só percebia que estava de volta quando já estava parado diante da porta do 703.
Era sempre o mesmo gesto: mão estendida, como se prestes a bater. Mas ele nunca batia.
Até que, em uma dessas noites, a porta se abriu antes.
Ren estava ali. De pé. Olhos vermelhos pelo cansaço. Ou por algo mais profundo.
— Você... — começou Hayato, incerto.
— Eu sei — respondeu Ren, antes que ele terminasse.
O silêncio entre eles era quase sólido. Não havia convite, mas também não havia resistência. Só um silêncio carregado de algo que já pedia para acontecer.
Hayato entrou. Caminhou até o centro da sala e olhou ao redor.
O lugar estava diferente. Não nos móveis — que continuavam simples —, mas nas paredes.
Símbolos desenhados à mão com carvão. Frases em latim escritas com caligrafia trêmula. Como se o apartamento tivesse se tornado um diário de outra pessoa.
No espelho do quarto, um reflexo impossível.
Hayato viu, por trás de Ren, uma mulher.
Flutuava alguns centímetros acima do chão. Usava um quimono branco, manchado de terra nas bordas. Os dedos longos, secos como galhos, desenhavam no ar um símbolo que ele reconheceu de imediato: 雪 — yuki. O mesmo kanji que vira no caderno antigo do irmão.
E sobre a mesa, repousava o livro vermelho.
Aberto como um altar.
— O que você fez com esse lugar? — Hayato perguntou, a voz baixa, mas carregada de algo que ele ainda não sabia nomear: medo, talvez. Ou reconhecimento.
Ren esticou a mão devagar, como quem toca um animal selvagem, e virou o caderno. A página rangia como se nunca tivesse sido aberta antes.
Na página central, rodeada por desenhos, o nome de Hayato aparecia.
Riscado. Em vermelho.
Não tinta. Não caneta. Era algo mais... orgânico.
— Eu? Nada — murmurou Ren. — Ela é que está fazendo algo com você.
E então o livro virou as páginas sozinho. Parou numa folha onde a mancha vermelha parecia pulsar.
Hayato ergueu os olhos. A mancha no teto agora tinha nariz, boca, olhos — e eles se moviam. Não como um reflexo. Como algo preso, tentando escavar para fora.
Um rosto feminino. Olhos fechados. Boca costurada.
E logo abaixo, surgia uma frase, desenhada como se fosse arranhada na parede:
Ele já viu por dentro.
— Isso tava aqui quando você chegou? — perguntou Hayato, tentando controlar a respiração.
Ren hesitou.
— Apareceu depois que você falou o nome do seu irmão.
— Eu nunca falei o nome dele.
Ren manteve o olhar firme.
— Falou sim. No corredor. Baixinho. Você disse "Yuki" quando passou por mim.
Hayato congelou.
A corrente em seu pescoço aqueceu como ferro em brasa.
Naquela mesma noite, o prédio sofreu uma queda de luz.
Ren e Hayato estavam prestes a entrar no elevador quando tudo escureceu — o corredor apagado, as luzes piscando como olhos cansados. A porta do elevador se abriu sozinha, como se tivesse os reconhecido.
Mesmo sem energia, a cabine parecia… viva.
Eles entraram. A porta se fechou devagar, com um estalo úmido.
A luz oscilou. Uma, duas, três vezes.
E então apagou.
O ar dentro do elevador ficou pesado. O silêncio, denso demais para ser apenas ausência de som.
Hayato sentiu algo escorrer do teto e tocar seu ombro.
Uma gota espessa, morna.
Ela deslizou devagar, e quando pingou no chão, formou um pequeno círculo de terra.
Um círculo. Perfeito.
Igual aos que encontrava sob sua cama.
Ren olhou para o símbolo e respirou fundo. Sabia o que era.
Não era possessão.
Era um convite.
— Desta vez... — murmurou — não deixamos escapar.
A porta do elevador se abriu sozinha.
Mas o corredor parecia... outro.
---
Horas depois, Hayato acordou no chão do quarto.
Não lembrava de ter voltado pra casa.
A boca estava seca, o peito doía. As mãos estavam sujas de terra.
Ao se levantar, notou algo novo na porta do armário.
Um espelho.
Ele não lembrava de tê-lo colocado ali.
E no reflexo…
a boneca sorria.
Atrás dela… Ren.
Mas ele não estava ali.

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