Hayato acordou de novo.
Ainda estava no quarto. Mas agora, na cama.
A última lembrança era do chão, o espelho no armário, a boneca sorrindo... e Ren atrás dela.
Mas Ren não estava ali.
Nem a boneca. Nem o espelho.
Apenas a luz morta do dia filtrando pelas frestas, e o cheiro de terra...
Como se tudo tivesse sido real. Ou pior: como se tudo ainda estivesse acontecendo.
Dia... algo. No Kurokawa Heights, os dias não tinham mais nomes.
Mesmo quando o céu amanhecia limpo, a luz do sol parecia recuar antes de alcançar o sétimo andar. A claridade subia pelos andares como sempre, mas parava dois antes do de Hayato, como se o prédio simplesmente… recusasse a luz.
Naquela manhã, ou talvez fosse tarde, Hayato acordou com o cheiro de terra impregnado no travesseiro. Suave no início, depois mais forte, como se tivesse dormido no chão de um jardim recém-cavado.
Sentou-se na cama, grogue, tentando lembrar que dia era. Mas tudo estava embaralhado. As janelas estavam entreabertas, mas não havia som de rua, nem canto de pássaros. Apenas o som abafado do próprio corpo respirando.
Tirou a meia, e um pequeno galho seco caiu de dentro dela. Era retorcido, quase esculpido. As fibras da madeira formavam, com precisão perturbadora, um nome:
S.A.Y.U.R.I
Hayato se levantou com um impulso nervoso. O quarto parecia mais escuro do que deveria, mesmo com a luz do dia do lado de fora. Caminhou até o banheiro e atirou o galho no vaso sanitário. A descarga soou mais alta do que o normal. A água girou, espumou... e, por dezessete segundos, ficou vermelha. Vermelho sangue.
Depois, voltou ao normal. Como se nada tivesse acontecido.
Hayato apoiou as mãos na pia, tentando controlar o estômago. O espelho atrás dele começou a embaçar, mesmo sem vapor no ar. Era como se a presença ali respirasse, mas não tivesse pulmões. E, no vidro enevoado, apareceu uma frase:
"ELE NÃO CONSEGUIU TERMINAR."
Ele recuou, encarando a própria expressão no reflexo. A sensação era de que o espelho não refletia apenas o presente, mas uma linha do tempo partida. Um sussurro ancestral cobrando promessas feitas antes de seu nascimento.
O nome arranhou a garganta de Hayato como um caco de vidro:
— Say... uri.
No espelho, a
boneca abriu a boca costurada e repetiu, em uníssono: — Sayuri.
No mesmo instante, o espelho rachou.
Não de cima para baixo. De dentro para fora.
Soou errado na sua voz. E, ao mesmo tempo, certo demais. Como algo que ele já havia dito antes, em algum sonho muito antigo.
No 703, Ren também acordava em condições questionáveis.
O livro vermelho estava aberto ao lado dele, sobre a cama, mesmo que ele tivesse certeza de tê-lo deixado na estante. As páginas pareciam vibrar levemente, como se reagissem ao movimento do ar.
Na lateral da página, escorria uma trilha de terra. Fina. Quente.
Como se tivesse sido depositada ali por dedos invisíveis.
Ele passou o dedo por cima. Era real. A textura se prendia à pele, com o cheiro de madeira molhada e raízes antigas.
Ao lado do livro, a caneta de Hayato, a mesma que Ren pegara no corredor, dias atrás, agora estava manchada de algo seco. Algo escuro.
Não parecia raiva. Nem ameaça. Era um traço... hesitante. Como se alguém estivesse tentando lembrar como era ser visto com ternura.
Ren estendeu a mão, mas a caneta rolou sozinha até seus dedos, como se puxada por um ímã. O calor que veio depois não era de Hayato. Era mais antigo. Como óleo de lamparina acesa há décadas. Mas agora… misturado a algo mais fundo. Algo que pulsava como um segredo sussurrado de volta. Ele se lembrou, por um instante, de quando sua avó dizia:
“Se um objeto troca de mãos sem ser pedido... ele passa a carregar duas histórias.”
Ele rabiscou a lateral de uma folha, quase sem pensar. E percebeu que o símbolo que surgia era idêntico ao que sua avó usava nos cantinhos dos altares domésticos. Um selo de proteção... ou uma lembrança para os mortos.
Naquela tarde, os dois se cruzaram no hall do prédio.
Ren carregava uma sacola com pão e chá gelado. Hayato descia com um pequeno vaso cheio de folhas ressecadas.
— Elas não duram mais que dois dias — murmurou Hayato, sem muita convicção.
Ren parou ao lado dele e olhou as plantas mortas com um semblante sereno, quase gentil.
— Talvez o prédio não goste de vida natural — disse. — Ou talvez elas estejam escutando o que não deviam.
Hayato soltou uma risada fraca. Rara.
Ren olhou com atenção, como se quisesse guardar aquele som na memória. Ele não sorriu de volta. Mas anotou mentalmente:
"Primeira risada. Reação à frase sobrenatural suave. Estímulo: eu."
Quando Hayato virou para sair, o gato da vizinha do 701 estava ali. Parado. Miando para o teto.
— Ele faz isso toda noite agora — murmurou Hayato.
Ren se agachou, estendeu a mão. O gato não fugiu. Mas também não respondeu ao carinho. Apenas olhou para um ponto fixo... bem acima da cabeça deles. O miado era agudo, quase como um canto. Um aviso ancestral disfarçado em pelagem preta.
Nos dias seguintes, o prédio começou a mudar.
Primeiro, a vizinha do 701 sumiu. No começo, ninguém notou.
No segundo dia, o gato dela apareceu miando no corredor. Os olhos estavam pintados com algo vermelho, não sangue, mas tinta. Delicada. Simbólica.
Hayato bateu na porta. Nenhuma resposta.
Ren se aproximou e, instintivamente, encostou a testa na madeira. Murmurou algo em voz baixa, numa língua que nem ele sabia se era de verdade ou só memória herdada.
A maçaneta aqueceu sob sua mão.
Os dois se entreolharam.
Não disseram nada.
Porque ambos sabiam: ela ainda estava ali.
E mais do que isso, agora, só eles estavam ali.
Os demais moradores do sétimo andar haviam desaparecido ao longo dos anos. Alguns saíram às pressas. Outros... simplesmente não voltaram. A vizinha do 701 era a última além deles dois.
E agora, só restavam Ren e Hayato.
O prédio escolhia quem ficava. E quem desaparecia.
Durante o expediente, Ren não conseguia mais se concentrar.
Catalogava livros como sempre, mas suas mãos o traíam. Em vez de separar os volumes certos, rabiscava símbolos no verso de fichas antigas. Círculos com palavras apagadas. Desenhos que pareciam olhos. E em alguns, o kanji de neve aparecia sozinho, como se surgisse sem sua intenção.
Ele chegou a esconder uma dessas fichas dentro do bolso do casaco, como se quisesse levar um fragmento da biblioteca para testá-lo no prédio. À noite, ao abrir o papel, ele já não estava em branco. Alguém, ou alguma coisa, havia escrito:
"Yuki deixou a porta entreaberta."
Hayato também estava sendo afetado.
Na prancheta do escritório, rabiscava plantas arquitetônicas… que se fechavam em espirais. Como se estivesse desenhando túneis. Ou selos. Sem saber. Um colega chegou a comentar:
— Você tá tentando construir um labirinto?
Hayato apenas sorriu. Mas por dentro, sentia que sim. E que alguém já estava dentro dele.
Ambos, cada um em sua rotina, estavam desenhando o mesmo enigma. Dois artistas inconscientes esculpindo o corpo de uma alma esquecida.
Na madrugada seguinte, Hayato acordou com passos dentro do quarto.
Mas não se assustou. Acordou... como se esperasse aquilo. Como se algo dentro dele já estivesse desperto antes mesmo de abrir os olhos.
Na porta, Ren estava de pé. Descalço. Com o livro vermelho nas mãos.
— Eu não sabia pra onde ir — disse, com a voz trêmula. — As palavras começaram a se escrever sozinhas. Todas... falavam de você.
Hayato não se moveu. Não perguntou o que ele estava fazendo ali. Não mandou embora.
— O prédio quer alguma coisa — continuou Ren. — E, por algum motivo... acha que você é a chave.
O silêncio entre eles foi interrompido por uma oscilação da luz do abajur.
Como se o ambiente os escutasse.
Uma batida leve ecoou do armário. Depois outra. Como se a presença lá dentro testasse a resposta antes que ela fosse dada.
Ren ergueu os olhos, com algo entre medo e fé:
— Você confia em mim?
Hayato hesitou.
Por um segundo.
Depois, abriu espaço ao lado na cama.
Ren sentou, devagar. As mãos ainda tremiam, mas os olhos estavam firmes.
Os dois ficaram ali. O livro entre eles. A respiração baixa. E o prédio, assistindo.
No espelho do banheiro, uma sombra atravessou lentamente o fundo do reflexo. Primeiro uma silhueta pequena, curvada, imóvel. Depois, um sutil movimento de cabeça, como quem vira para escutar melhor.
Era a boneca. Sentada. De costas. O quimono claro, manchado nas bordas. A cabeça inclinada, como se estivesse esperando.
Como se soubesse que o próximo chamado viria dali.
Como se aguardasse ser chamada.
Horas depois, quando acordaram, o livro estava fechado.
Na capa, a palavra que agora os unia:
Yuki.
O nome do irmão morto de Hayato.
Riscado com terra.

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