Noite. Ou início de algo. No Kurokawa Heights, o tempo já não obedecia às regras do mundo de fora.
Hayato estava parado diante da porta do 701. Fazia quatro dias desde que a vizinha, Sra. Nakahara, havia sido vista pela última vez. O corredor estava quieto demais. Não com o silêncio natural da madrugada, mas com aquele silêncio que parecia... esperar. Denso. Quase sólido. Como se o prédio prendesse a respiração.
A luz amarelada piscava como um olho prestes a fechar. O cheiro.. sempre o cheiro.. de terra molhada, flores murchas e algo adocicado que oscilava entre mirra e sangue, tomava o corredor inteiro. Mais forte naquela porta.
Hayato bateu. Uma vez. Duas. Três. Nenhuma resposta.
Foi quando ouviu passos descalços atrás de si. Ren se aproximava, sem sapatos, como se tivesse sido guiado até ali.
— Sumida, né? — comentou ele, com a voz baixa. Seus olhos não sorriam. Parecia mais alguém que reconhecia um ritual do que fazia uma pergunta.
Hayato não respondeu. Apenas encostou a orelha na porta. Nada. Mas um nada que parecia conter tudo.
Ren puxou do bolso um papel amassado, parte de um bilhete rasgado. — Achei isso — disse, estendendo o pedaço.
A caligrafia era tremida. Mas algumas palavras ainda podiam ser lidas:
“...voltam sempre às 3h17. Mas agora batem no espelho também. Ela sussurra meu nome... mas não é a minha voz. Ela usa a minha voz...”
Ren virou o papel contra a luz fraca do corredor. No verso, havia um desenho — uma boneca com o rosto coberto por um véu manchado. Abaixo, em kanji quase apagado:
雪見 (Yukimi — "vendo a neve").
— É um trocadilho — murmurou Ren, apontando com a unha. — “Yuki-mi”. Ela estava vendo seu irmão. E agora… está vendo a gente.
Hayato não perguntou como ele sabia disso. Só olhou mais uma vez para a porta fechada.
Eles arrombaram juntos. Sem discutir. Sem hesitar.
Talvez fosse impulso. Ou talvez... um reconhecimento silencioso de que aquele momento não podia esperar mais. Ren olhou rapidamente para Hayato antes de forçar a maçaneta. Pela primeira vez, havia algo no olhar do arquiteto que não era resistência, era urgência.
O apartamento da Sra. Nakahara estava intacto. Sem sinais de briga, roubo ou desordem. Mas o ar... estava mais denso. Mais antigo. Mais vivido.
Como se aquela casa tivesse testemunhado coisas que ninguém mais queria lembrar. Como se guardasse, sob o cheiro de incenso velho e chá ressecado, a memória de alguém que resistiu até o fim.
Hayato lembrou-se da Sra. Nakahara, sempre educada, de fala baixa. Ela que uma vez lhe emprestou um guarda-chuva na chuva. Que dizia "bons sonhos" como quem lançava bênçãos.
E agora... estava ali em silêncio absoluto. Talvez ainda ali.
Como se ali dentro o tempo tivesse parado por décadas, ou estivesse voltando.
No canto da sala, um pequeno altar xintoísta. Velas derretidas, algumas ainda com a fumaça suspensa no ar, como se tivessem sido apagadas há minutos. O chão embaixo do altar estava levemente escurecido, como se algo tivesse escorrido ali e sido limpo às pressas.
Hayato olhou para as paredes. E, à primeira vista, tudo parecia normal. Mas quando se aproximou... percebeu.
Sob o papel de parede florido, haviam riscos. Camadas apagadas de carvão. Símbolos circulares. Palavras riscadas. Nomes.
Entre eles: o de Ren.
Entre os desenhos, havia uma boneca pequena. Chorando. Mas com os braços estendidos, como se esperasse ser reconhecida.
— Ela também ouvia — disse Ren, passando os dedos com delicadeza pelos traços ocultos.
— Isso não é só “ouvir” — retrucou Hayato. — Isso aqui é um pedido de socorro.
— Ou um aviso — rebateu Ren. — Ela tentava selar. Sozinha.
Hayato se aproximou do altar. Entre as velas, repousava uma boneca. A mesma do sonho. Vestido branco. Boca costurada.
E presa ao pescoço, pendia um papel dobrado muitas vezes.
Ren o abriu com cuidado. Dentro, letras miúdas, quase todas em latim. Outras em japonês arcaico. Frases que pareciam rituais inacabados.
— Você entende isso? — perguntou Hayato, tentando decifrar algo nas linhas tortas.
Ren passou os dedos com calma pelo texto.
— É um ritual de nome. Pra devolver um nome esquecido.
— E aqui… — ele apontou para uma parte riscada e reescrita diversas vezes — diz:
“Se ela lembrar, ela volta. Se ela voltar… alguém tem que sair.”
Hayato franziu o cenho. — E você decifra isso com a mesma facilidade que lê um cardápio?
Ren riu, breve. Um som quase alheio ao lugar.
— Cresci ouvindo essas coisas. Minha avó via sombras nas paredes. Essas palavras… grudam. Mesmo quando a gente tenta esquecer.
Ela dizia que certos nomes são como espelhos: só aparecem quando a gente olha de verdade. E que quando a gente pronuncia... eles respondem.
Já de volta ao próprio andar, os dois pararam lado a lado no corredor. O prédio estava mais silencioso do que o habitual; o tipo de silêncio que chega logo antes de algo acontecer. Um silêncio que se ajeita na garganta, como um sussurro engasgado.
— Você parece mais calmo agora — comentou Ren, olhando para frente.
— Não é calma — respondeu Hayato. — É... foco.
Ren o olhou de relance. — Achei que você não acreditava nessas coisas.
— Eu não acreditava.
Silêncio.
— E agora?
— Agora eu só não quero morrer de um jeito estúpido.
Ren sorriu, de verdade. Hayato, sem pensar, retribuiu com o canto da boca.
— Você lida com isso desde sempre, né?
— Minha avó via coisas que ninguém mais via. Eu cresci aprendendo a escutar o que os outros chamavam de silêncio.
Mas… nunca me senti ameaçado. Até agora.
Hayato encarou o vazio à frente. Depois, virou o rosto pra ele.
— E agora?
Ren hesitou. Depois encarou Hayato com um olhar firme, vulnerável e cansado.
— Agora... eu tenho medo de deixar alguém sozinho aqui.
Hayato prendeu o olhar por um segundo a mais do que deveria. Mas não disse nada. Virou o rosto. Deu um passo. E, antes de entrar no apartamento, disse sem olhar pra trás:
— Amanhã... vamos atrás do nome dela?
— Vamos — respondeu Ren.
— E Ren...
— Hm?
— Obrigado por não me deixar sozinho.
Ren não respondeu. Mas apertou o papel como quem segura um fio invisível.
E, pela primeira vez em muitos dias, o prédio ficou em silêncio.
Não por ausência de som. Mas por escuta.

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