O rádio antigo, um modelo Philips dos anos 70 com o dial amarelado, tocava um samba de fundo de quintal, daqueles que só os mais velhos sabiam cantar até o fim, com a alma e a voz. Na parede, fotografias emolduradas, algumas já desbotadas pelo tempo e pelo sol que teimava em invadir a barbearia: clientes antigos com cortes que marcaram época, jogadores de várzea com seus uniformes enlameados e sorrisos desdentados, e até um vereador, com sua pose solene e seu topete impecável. A barbearia de Miguel era mais do que um ponto de corte; era um confessionário, um palco para as pequenas e grandes histórias da vizinhança. Gente entrava ali para aparar a barba e saía mais leve da alma, com o peso do mundo um pouco menos opressor.
Na cadeira giratória, seu Zé da oficina, um homem de barriga generosa que parecia ter engolido um barril de chope, a camisa manchada de graxa e o hábito inabalável de reclamar do governo enquanto recebia o corte número dois nas laterais e a tesoura em cima — sempre igual, há vinte anos, uma rotina tão previsível quanto o nascer do sol. “Você viu quanto que tão cobrando num litro de óleo, Miguel? Isso é um assalto!”, resmungava ele, com a capa preta cobrindo o corpo como um manto, transformando-o numa figura quase monástica, alheia ao mundo exterior.
Miguel sorria com o canto da boca, um sorriso que não alcançava os olhos, atento ao espelho, onde a imagem de seu Zé se multiplicava. O pente passava firme, traçando linhas precisas no cabelo grisalho. A tesoura cantava o seu ritmo conhecido, um som que para Miguel era quase uma melodia, a trilha sonora de uma vida que ele amava, mas que agora se desfazia. “Tá tudo caro, seu Zé. Mas cortar o cabelo aqui continua o mesmo preço de sempre”, respondeu, tentando manter o tom leve, a voz sem a sombra da dor que o acompanhava.
“Só porque você é bom de coração. Porque de comerciante, você é uma desgraça”, brincou o velho, rindo com o peito, um riso rouco que ecoava na barbearia. Miguel riu também, um riso forçado, mas seus olhos não acompanharam a alegria. A dor veio como uma pontada seca na costela, mais forte que o habitual, um lembrete cruel da doença que o corroía. Ele fingiu que era cansaço, que a noite mal dormida cobrava seu preço, mas a verdade era que cada respiração se tornava um esforço, cada movimento, uma batalha.
O sino da porta tilintou, um som agudo que quebrou a rotina. Um garoto entrou correndo, Pedrinho, com um saco de pão ainda quente nas mãos, o cheiro de fermento e trigo invadindo o ambiente. “Mãe mandou deixar aqui, tio Miguel. É o que sobrou da fornada de hoje.” Miguel pegou o saco, sentindo o calor do pão, um calor que contrastava com o frio que sentia por dentro. “Valeu, Pedrinho. Diz pra ela que amanhã eu passo lá pra cortar o cabelo do seu pai.” O garoto sumiu rua abaixo com a mesma pressa com que chegou, um vulto de inocência que Miguel observou pela vitrine. O céu começava a se fechar em nuvens escuras, prenunciando a tempestade.
“A chuva vem hoje”, comentou seu Zé, alheio à tormenta interna de Miguel. “Vem, sim”, respondeu Miguel, como se estivesse falando de outra coisa, de um futuro incerto, de uma decisão que já estava tomada. Terminou o corte com precisão, um toque de navalha aqui, um perfume de colônia ali, um ritual que ele conhecia de cor, mas que agora parecia vazio. Seu Zé se levantou, agradeceu com um aperto de mão forte, um gesto de camaradagem que Miguel sentiu como uma despedida. “Você ainda vai cortar cabelo no céu, viu?”, disse o velho, saindo devagar, deixando Miguel sozinho com seus pensamentos.
Miguel ficou sozinho por um instante, o silêncio da barbearia agora pesado, opressor. Olhou para a cadeira vazia, depois para suas próprias mãos, as mesmas mãos que por anos haviam trazido conforto e confiança a tantos. A ponta dos dedos tremia, quase imperceptivelmente, um tremor que não era de cansaço, mas de medo, de apreensão. Sabia que o tempo estava se esgotando, que cada minuto que passava o aproximava do abismo.
Pegou uma caixa de madeira sob o balcão, uma caixa velha e gasta, como quem visita um altar secreto, um santuário profano. Abriu devagar, o rangido da madeira ecoando no silêncio. Dentro, além das lâminas novas e afiadas, havia um envelope pardo, com dois nomes escritos à caneta, em uma caligrafia apressada: “Donato” — e, logo abaixo, “valor final”. Miguel tocou o envelope, sentindo a aspereza do papel, o peso do que ele representava. Era o preço. O preço da vida de Donato. O preço da liberdade de Helena. O preço de sua própria alma. Ele fechou a caixa, o som seco e definitivo, selando seu destino.
O rádio agora tocava Alcione, uma canção de amor e perda, a voz rouca da cantora preenchendo o vazio da barbearia. Do lado de fora, a primeira gota de chuva caiu sobre o vidro da vitrine, escorrendo lentamente, como uma lágrima. Era o início da tempestade, a tempestade que Miguel havia pressentido, a tempestade que agora se abatia sobre sua vida, lavando para longe qualquer resquício de sua antiga existência.
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