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O último corte

Prólogo

Prólogo

Jul 28, 2025

A lâmina repousava sobre o pano branco, ainda úmido de espuma e suor, um sudário para a vida que Miguel estava prestes a deixar para trás. Ao lado, uma toalha dobrada com um cuidado quase reverente, como se cada dobra carregasse o peso de um ritual antigo, uma despedida silenciosa. O silêncio da barbearia era quase religioso, denso, pontuado apenas pelo zumbido intermitente do poste luminoso do lado de fora, um lembrete fantasmagórico de que o mundo, indiferente, ainda girava lá fora.


Miguel sentou-se na cadeira do cliente, um lugar onde nunca gostava de estar, um trono vazio que agora o confrontava com a realidade de sua ruína. O espelho à sua frente devolvia um reflexo que ele mal reconhecia, uma imagem distorcida de si mesmo: olhos fundos, cavados pela insônia e pela dor, a barba malfeita, um emaranhado de preocupações, a camisa social desabotoada no colarinho, sufocando-o. Havia algo quebrado ali, algo irremediavelmente estilhaçado que ele se esforçava para esconder, até mesmo dos amigos de copo que, por vezes, compartilhavam suas angústias na cadeira ao lado.


Com a mão esquerda, pegou uma fotografia meio gasta pelo tempo, as bordas desbotadas, mas a imagem ainda vibrante. Ele e Helena, sua pequena, sorrindo em frente à casa simples com a fachada verde-musgo, um lar que agora parecia distante, quase um sonho. O sol daquele dia, o dia em que tiraram a foto, ainda parecia viver naquele papel, um calor que contrastava com o frio que agora o envolvia. Ela estava com os braços em volta do pescoço dele, a risada infantil ecoando em sua memória, um som que ele temia nunca mais ouvir com a mesma pureza. Ele, com um olhar de quem acreditava no amanhã, um amanhã que agora se esvaía entre seus dedos como areia.


Uma pontada seca na costela o fez contrair o rosto, um lembrete cruel da doença que o consumia. Ele tossiu, um pigarro seco que arranhou a garganta, e disfarçou, forçando um sorriso amargo. A doença já cobrava sua parte, dia após dia, roubando-lhe o fôlego, a força, a esperança. Mas não era a dor no peito que pesava mais. Era o futuro. O futuro dela. O futuro de Helena.


Com a mão direita, segurava uma carta. Três folhas de caderno universitário, dobradas com um cuidado quase cerimonial, escritas à mão com sua letra firme, cada traço uma confissão, uma promessa. Na capa, apenas um nome, um sussurro de amor e desespero: “Para Helena”. Ele imaginava os olhos dela lendo aquelas palavras, a confusão, a dor, a eventual compreensão. Ele esperava que ela entendesse. Ele esperava que ela o perdoasse.


Ele respirou fundo, um ar raso, dolorido, que mal preenchia seus pulmões. A doença avançava, implacável, mas não era a dor física que o sufocava. Era o peso da decisão, a inevitabilidade do caminho que ele escolhera. “Me perdoa, pequena…” sussurrou, olhando para o próprio reflexo, para o estranho que o espelho lhe mostrava. “O papai não encontrou outro jeito.” Sua voz era um fio, quase inaudível, mas carregada de uma dor profunda, quase um lamento. Ele não queria isso. Ele não queria se tornar isso. Mas por ela, ele faria qualquer coisa.


Na parede, o relógio marcava 23h18, um ponteiro implacável que selava seu destino, um ponto sem retorno. Do lado de fora, um trovão distante ecoou, um presságio. A chuva ainda não tinha começado, mas o cheiro da tempestade já estava no ar, um aroma de terra molhada e de algo mais, algo sombrio e iminente. Miguel se levantou, os passos firmes, mas o corpo pesado, caminhou devagar até a porta da barbearia e apagou a luz. A rua engoliu o interior da loja numa escuridão mansa, uma escuridão que parecia abraçá-lo, acolhê-lo em seu novo propósito.


No silêncio que ficou, só o som do envelope sendo guardado no bolso do paletó, um som seco, definitivo. E os passos firmes de quem sabia que não teria volta, de quem havia cruzado uma linha invisível, impulsionado por um amor que não conhecia limites, nem moral, nem lei. Um amor que, ele sabia, teria cheiro de sangue.


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gi4nms
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#drama #Crime #thriller #Suspense #noir #policial

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