A estrada para longe da clínica seguia silenciosa. O rádio do carro estava desligado, o motor murmurava baixo, e os faróis desenhavam sombras nas calçadas vazias, como fantasmas se arrastando pela madrugada. Miguel mantinha uma mão no volante e a outra próxima ao câmbio, mas seu olhar escapava constantemente para o passageiro ao lado.
Davi repousava a cabeça contra o vidro da janela, os olhos entreabertos, como se a escuridão da noite refletisse seu próprio passado.
"Ei…" murmurou Miguel, quebrando o silêncio com voz baixa e cuidadosa. "Se quiser… pode dormir lá em casa de novo."
Davi não respondeu de imediato. Só depois de alguns segundos, murmurou quase num sussurro:
"Não. E tô sem forças pra conversar."
Miguel assentiu em silêncio, voltando os olhos para a estrada. A verdade é que, naquele momento, ele só queria cuidar de Davi. Vê-lo tão quebrado, tão distante da imagem firme e provocadora de sempre, mexia com ele de um jeito inesperado.
Quando chegaram ao prédio de Davi, Miguel estacionou, saiu do carro e deu a volta para abrir a porta do passageiro. Davi o encarou com leve surpresa.
"Você tá mesmo fazendo isso?" questionou, fazendo uma careta.
"Uh? Fazendo o quê?"
"Sendo estranho", respondeu, tentando soar irônico, mas o tom saiu mais como um sussurro cansado.
Miguel apenas ofereceu o braço, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
"Borá! Hoje você precisa de um braço forte, não de sarcasmo", disse com gentileza.
Davi hesitou, mas acabou encostando-se a ele. Por um breve instante, deixou-se amparar. Logo em seguida, se afastou, entrou pela portaria sem olhar para trás… e desapareceu do campo de visão.
Miguel ficou ali, observando o prédio em silêncio, sem saber que demoraria dias até vê-lo de novo.
– Quarta-feira –
Miguel não podia ficar parado, então naqueles dias estava no estúdio fotográfico de um amigo, ajudando na preparação de uma sessão de fotos. Enquanto ajustava as luzes, sentiu algo vibrar no bolso do short. Era o celular. Na tela inicial, lia-se apenas:
Davi: "Vou pra sua casa. Preciso te mostrar uma coisa."
O coração de Miguel disparou quando leu.
Horas depois, os dois estavam sentados no escritório do pai de Miguel. Davi parecia exausto, com olheiras escuras por trás dos óculos, mas determinado. Trazia nos braços um objeto: um casaco escuro, dobrado cuidadosamente.
"Sayuri encontrou isso", disse, estendendo o casaco. "Reconhece?"
Miguel pegou o casaco nas mãos. Seu olhar percorreu o tecido, e o cheiro invadiu suas memórias.
"Sim! É do meu pai…" constatou, surpreso.
"Exatamente. No dia que saímos da clínica ela foi ao meu prédio, disse que achou o casaco nos achados e perdidos da Taverna da Rua Baker. Parece que, naquele dia, ele esqueceu lá."
"E como a gente deixou isso passar?" questionou, franzindo a testa.
"Era um detalhe fácil de ignorar. A gente estava procurando por outra coisa. Mas tem mais", afirmou com seriedade.
Davi começou a apalpar o forro com cuidado até sentir algo. Puxou um pedaço de papel dobrado de um dos bolsos internos.
"Era isso que eu queria te mostrar", disse, desdobrando o bilhete e revelando a sequência escrita à mão: 2.6.8 / 1.1.6 / 5.22.1
Miguel franziu a testa.
"O que são esses números aleatórios?" perguntou, confuso.
"Não são aleatórios. É uma cifra. Passei dias tentando decifrar", explicou.
"E como funciona essa tal ‘cifra’?"
"Essa técnica é conhecida como cifra ou código de livro, onde tanto o remetente quanto o destinatário devem possuir o mesmo exemplar do livro utilizado como chave para a codificação e decodificação das mensagens. Cada trio de números indica capítulo, linha e palavra específica, permitindo reconstruir a mensagem original."
Ele se levantou e foi até a estante. Pegou um exemplar antigo de O Sinal dos Quatro de Arthur Conan Doyle.
"Essa era uma das histórias favoritas do seu pai. E é a chave. Aqui, por exemplo, esse trio representa capítulo 2, linha 6 e palavra 8. Desde que se tenha o mesmo exemplar, a mensagem pode ser decodificada. Veja: a primeira é ‘encontro’", explicou enquanto folheava o livro com precisão.
Miguel o observava em silêncio, fascinado.
"Foi por isso que você sumiu esses dias?" perguntou.
"Eu precisava encontrar a resposta. E quando encontrei… a mensagem estava lá", respondeu, mostrando seu bloco de anotações com a tradução: Encontro no galpão.
"Que galpão?" perguntou Miguel, mais sério agora.
"É isso que a gente precisa descobrir", respondeu com firmeza.
Começaram a vasculhar o local. No computador encontraram algo incomum no histórico de navegação. Parece que todo pai não sabe usar a guia anônima, e pela primeira vez isso era um alívio. Lá havia um endereço em uma zona industrial afastada, diferente dos locais que ele costumava frequentar. Sem hesitar, Miguel e Davi partiram imediatamente.
[Zona industrial: Fim de tarde]
O galpão parecia ter saído de um cenário pós-apocalíptico. Era antigo, com janelas quebradas, paredes cobertas de fuligem e um portão de aço enferrujado. O letreiro acima da entrada estava tão deteriorado que as palavras se tornaram ilegíveis.
Lá dentro, pilhas de caixas velhas, móveis cobertos de poeira e colunas metálicas se espalhavam pela penumbra. No alto, sustentada por colunas de ferro, havia uma sala de vidro: um antigo escritório suspenso, acessível apenas por uma escada lateral em espiral. Enquanto exploravam o ambiente, ambos começaram a sentir que não estavam sozinhos.
De repente, um estalo elétrico. As luzes do galpão se acenderam todas ao mesmo tempo. Na sala suspensa, um homem grande, encapuzado, surgiu. Estava parado, observando-os com uma presença ameaçadora.
"Quem é você?" perguntou Davi, tentando manter a calma.
A resposta veio distorcida por um modulador de voz: "Vocês não deveriam ter vindo. Ainda dá tempo de voltar… se quiserem sair daqui vivos", alertou a figura, com voz eletrônica.
Miguel congelou. Aquela voz distorcida, a postura volumosa, os gestos leves… Algo ali lhe parecia familiar.
"Você é igualzinho ao seu pai", continuou o homem descendo as escadas. "Curioso até demais."
Davi olhou de soslaio para Miguel, notando a mudança sutil em sua expressão.
"Vocês demoraram demais pra chegar até aqui", declarou o encapuzado ao chegar à frente deles.
Com um lampejo de intuição, Davi disparou: "Como você sabe disso?"
O silêncio que seguiu foi mortal. Devagar, o homem ergueu as mãos e retirou o capuz. Miguel e Davi deram um passo para trás. Um estalo de memórias surgiu em suas faces.
"Wendel…", vociferaram ao mesmo tempo, incrédulos.
O homem sorriu, com as bochechas rosadas, revelando um ar quase sereno. Eles se aproximavam devagar, atentos. Com a luz fraca, era possível ver sua aparência: corpo corpulento, pele clara, rosto redondo e simpático. Seus olhos grandes e azuis se destacavam no rosto. Possuía nariz arredondado, orelhas grandes e cabelo bem aparado. Vestia uma camisa social clara, coberta por um moletom escuro com capuz, e calças escuras com cinto. No pescoço, carregava um distintivo dourado preso por uma corrente. Nos pés, sapatos pretos.
"Eu estava esperando por vocês. Não queria que se metessem em perigo à toa", disse com tranquilidade.
Eles se olharam, surpresos. Wendel apareceu com um sorriso sereno e o olhar preocupado.
"Wendel... como sabia que estaríamos aqui?" perguntou Miguel, ainda em alerta.
Ele se aproximou com passos tranquilos, falando com suavidade: "Alguém me contou... alguém que se importa com vocês. Eu não podia deixar que ficassem sozinhos nessa."
Miguel cruzou os braços, desconfiado.
"Quem foi? Diz pra gente. A gente precisa saber", cobrou com firmeza.
Wendel suspirou, o rosto mostrando um misto de tristeza e responsabilidade.
"Isso não é relevante. Mas saibam que eu não faria isso se não fosse pra proteger vocês. Eu prometo que estou aqui pra ajudar, não pra machucar", garantiu com sinceridade.
Davi deu um passo à frente, a voz firme: "Então nos diga, Wendel. O que faremos agora?"
Ele sorriu com doçura, mas sua voz veio com um tom decidido: "Vamos cuidar um do outro. Juntos, nada vai nos derrubar! Nem traições, nem ameaças. Eu vou estar aqui, de olhos abertos, e sempre ao lado de vocês."
O clima que antes era pesado, aos poucos foi se dissipando. Os ombros dos dois finalmente puderam relaxar.
"Obrigado, Wendel. A gente vai precisar mesmo dessa força", confessou Davi.
Ele assentiu, olhando para os dois com ternura.
"Podem contar comigo sempre. Estou aqui porque chegou a hora de acabar com esse segredo", finalizou com convicção.

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