"Quando os três pedintes chegarem, alguém deve morrer"
Sob tal premissa formou-se a lenda. Três entidades que anunciam a chegadas de maus tempos, o Luto, o Desespero e a Dor. Essas podem ser evitadas, como qualquer mau-presságio, mas uma vez que a natureza abre portas para entes lendários, apenas o tempo pode apaziguar seus danos. Ou ao menos é o que dizem.
Lendas são ouvidas, absorvidas e contadas. Cada uma com uma lição ou um aviso. Lendas são alegorias, em sua maioria. Mas quando a lenda toma carne, o que pode detê-la?
Seu nome era Yorick e ninguém da cidade o conhecia. Ou ao menos se recusavam a reconhecer sua existência, a cada geração havia alguém como ele, e a culpa era de ninguém e de todos. Uma maldição, por assim dizer.
Tempos antes, quando ainda vila, uma bruxa tinha posses, como qualquer outro aldeão. Era igual a qualquer outro e tinha o respeito dos vizinhos, lhe garantia curas e bençãos em tempos difíceis, o que fazia a aldeia prosperar até um pouco demais. A prosperidade da vila chamou atenção de forasteiros. Foram recebidos de braços abertos, claro, havia o bastante para todos, então por que não dividir?
Dividir, no entanto, parecia tarefa impossível para os recém-chegados. Tomando as matas ao redor, aos poucos encontraram as terras da bruxa e, espantados com o desconhecido, expulsaram-na da vila que ela própria ergueu. A bruxa, revoltada e humilhada, lançou uma maldição que perdurou por eons. Todos bons atos seriam extintos e as bênçãos, invertidas. E o preço para cada estação que ajudara a nascer seria pago pela vida de um morador. Mas os novos moradores estavam incrédulos, e os antigos, em número muito menor, foram calados.
Falta de crença tanta que apenas começaram a repensar na maldição quando o líder da vila foi comido vivo por lobos. Ninguém nunca havia visto um naquelas redondezas e, certamente, não foi a melhor introdução. Não puderam fazer muito, e depois dele, a vila só foi se manchando mais de vermelho. Foi só quando uma mãe, sem condições de cuidar de todos os filhos, abandonou um para que a Fome o tomasse, que as mortes cessaram por um tempo. Mas por que haveria paz com o simples abandono de um garoto?
Ora, alguém nas ruas é o mesmo que alguém morto. E levou-se um ano para que a criança, vivendo de lixo e restos, fosse levada de fato.
Então por gerações foi decidido: um deles seria apenas um fantasma com roupa de carne. Ignorado pelos seus como um morto. E bastou.
Benette, no início de seus onze anos, por acaso ressuscitou um gato morto enquanto organizava seu funeral, talvez fossem as folhas e flores de escolhera para decoração que fizeram a mágica, ou talvez fosse natural dela, mas não havia como negar: era uma bruxa. Isso não interferiria muito em sua convivência, os que conheciam sua família sabiam que teria criação boa, e nunca usaria magia contra seus amigos.... Certo? Ainda havia certo ressentimento.
Foi aos doze que percebeu Yorick no Velho Carvalho, sem folhas pela chegada do inverno, e instigou a Morte a visitar mais uma vez. Isso levou a uma multidão em sua porta, não com tochas e forcados, mas com pedidos para que quebrasse a maldição. Era uma bruxa, como aquela que há muito viveu, claro que funcionaria. E funcionou, graças a dois anos de incessante procura e testes e, portanto, outras oito vidas.
Foi aos vinte que se viu casada com o mesmo rapaz.
Um homem sentava-se perto do Velho Carvalho, no meio da pequena cidade. Seu nome era Yorick e ninguém da cidade o conhecia. Passado. Hoje o conheciam com prazer, casado com a segunda bruxa que a cidade teve e futuro pai. Benette, mesmo prenhe, ainda praticava sua magia, mas nunca tão forte quanto aquela. A noite do parto eventualmente chegou, e a sala estava devidamente decorada para que a Natureza desse as boas vindas a seu filho.
Quando os gritos começaram, Benette sorriu em meio ao suor. É meu filho, pensava. A Dor de parto é tremenda, mas, quando o bebê nasce, a mãe já não mais se lembra, pela alegria de ter vindo ao mundo seu filho. Mas que filho? A bruxa, ainda fraca, levantou o tronco para receber a cria quando percebeu que os gritos haviam cessado, e que sequer viam da criança. A parteira estava no chão, em Pânico, e a assistente havia se recolhido para o canto da sala, mas e seu filho?
A coisa que se rastejava em direção à porta. Aquilo era seu filho. Deformado e endiabrado, tinha metade de uma cabeça, com apenas tocos por pernas e uma espinha volumosa e que parecia poder rasgar as costas a qualquer momento. Poderia o universo permitir aquilo? Tudo ficou escuro.
Quando acordou, era a próxima manhã. Estava sem a barriga e com as roupas ensanguentadas do parto, então sabia que não havia sonhado. Yodrick estava do lado de fora. Parecia novamente ser o fantasma que todos evitavam, pois desta vez estava morto por dentro.
Nada se faz sem um preço.
Uma boa colheita na estação? Uma boa aparência para um casório? Um bom ventre para a futura família?
Claro. Por que não?
Amor correspondido, mesmo que forçado? Dinheiro garantido, mesmo que ilegítimo e desmerecido? Reanimação de um ente querido, mesmo que apenas para um último adeus?
Há muito o que uma bruxa pode fazer, assim que chegarem a um acordo no preço de seus serviços. Um terço da colheira, o primogênito do feliz casal, a alma do renascido... Não é um preço que muitos achem justo, ou que estejam dispostos a pagar, mas bruxas não são seres todo-poderosos como comentam.
Toda magia tem um preço, e a pechincha muitas vezes não agrada a fonte do poder. Benette sabia disso, mas mesmo em seu melhor dos dias, às vezes a natureza parece não estar disposta a ajudar as almas menores.
Uma alma comum é suficiente para um ano de trabalhos, no caso de uma maldição de gerações, o preço é maior. Bruxas têm almas mais valorizadas, por sua conexão com a Criação, e para quebrar uma maldição tão forte quanto aquela, seria ele o pagamento ideal. Ideal, mas um pagamento que não havia concordado.
O esposo já não estava mais lá, mesmo presente. E seu filho, se poderia chamar aquilo por tal título, foi morto e enterrado pelos vizinhos antes mesmo que Benette pudesse acalentá-lo pela primeira vez. Sua família, mãe e pai, vítimas da maldição, uma vez despertada novamente. A bruxa encheu-se da tristeza de todas as suas perdas, e entregou-se para o Luto.
E com Luto na alma, Luto se tornou.
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