— Você vai se afastar daquele menino! — Ana falou num tom mandatório.
— Ana, nada vai acontecer — Fernanda respondeu.
Ninguém falava alto. Laura estava dormindo e não queriam que ela ouvisse aquela discussão.
— Eu falei milhares e milhares de vezes pra ele não contar, mas é claro que ele não me ouviu. Ele não comia! — Ana continuou.
— Mãe, eu não posso esconder isso pra sempre, tá bom? Isso é parte de quem eu sou. Eu pretendia amá-lo para sempre e eu acreditava que ele queria o mesmo. Não foi erro meu!
— Claro que foi! Ninguém veria isso como algo normal! E se você vir aquele rapaz de novo…
— O que? — interrompeu-a. — Você vai me deixar de castigo? Vai me expulsar de casa? Vai tirar meus brinquedos de mim? Eu não tenho mais cinco anos!
— Ana, você realmente tá exagerando — Fernanda disse. — Foi um evento ruim.
— Sim, o único evento ruim. E também o único que quase o matou! Quantas vezes ele ficou internando?!
— Ana, ele sabe se cuidar. Deixa ele amar quem ele quiser.
— Ele é meu filho, Fernada! — controlou-se para não gritar. — Meu filho, não seu!
— Eu também tenho uma filha!
— Sim, mas a sua não é uma aberração! — não se conteve dessa vez. Gritou.
— É isso que você pensa de mim? Bom, eu sabia que eu era um fardo, não uma aberração! Obrigado, mãe. Muitíssimo obrigado — disse com a voz embargada e saiu de casa batendo a porta atrás de si.
“Preciso falar com você. Podemos nos encontrar? Agora? Estou nas pedras”.
Marco recebeu a mensagem e agradeceu por ainda não estar dormindo, caso contrário, não ouviria a notificação.
Já eram quase duas da manhã e ele não queria acordar a irmã. Pegou o carro emprestado e deixou um bilhete informando-a.
Chegou à praia ansioso. Não sabia o que esperava, mas definitivamente não esperava o aconteceu.
— A gente não vai dar certo. Desculpe se te enganei — Miguel falou sem sequer cumprimentar Marco.
— Do que está falando?
— Marco, eu tô pedindo pra você se afastar antes que eu te machuque.
— De onde saiu isso, Miguel? Nós estamos nos dando bem. O que aconteceu? Me conta. Por favor.
Miguel calou-se e as lágrimas desceram por seu rosto.
— Por favor, não. Eu não posso te contar.
— Por que não?! O que eu fiz? Falei alguma coisa que te magoou? — sua testa estava enrugada de preocupação.
— Não! Não foi você! — apressou-se em falar.
— Então me conta o que foi — disse ao aproximar-se e segurar a mão de Miguel. Só agora percebera que ele estava chorando.
— Eu não posso. Quem vai se machucar sou eu.
— Eu não te machucaria. Nunca.
— Promete? Promete que não vai sair correndo?
— Prometo. De mindinho — ergueu seu dedinho. Miguel fez o mesmo. — Uma promessa de mindinho selada com um beijinho — disse quando os mindinhos se entrelaçaram e ele levou seu polegar ao do outro, fazendo com que se “beijassem”. Miguel sorriu.
O dono dos olhos azuis respirou fundo e fechou os olhos. Virou-se de costas e tirou a camisa. Sua tatuagem começou a se transformar. O que antes já era realista ficou ainda mais perfeito quando ganhou perspectiva. Marco olhou surpreso enquanto penas feitas à tinta viraram penas brancas de verdade e asas brotaram das costas de Miguel. Apesar da luz parca, Marco conseguiu ver que elas se tornavam cinzas em determinado ponto até ficarem totalmente pretas.
— Você ainda tá aí? — Miguel perguntou sem esperança alguma.
Marco estava boquiaberto. Engoliu em seco.
— Você é um anjo! — murmurou. — Você é um anjo! — falou mais alto como se aquilo fosse apagar a descrença de seu cérebro.
— Você realmente não vai correr? — perguntou ao virar-se para encarar o outro rapaz. — Não vai me chamar de aberração nem fugir?
— Por que eu o faria? É lindo. Você é um anjo!
— Porque é o que fizeram.
— Sério? O que aconteceu?
Miguel olhou para o chão e suspirou pesadamente.
— Não precisa falar se não quiser — Marco acrescentou.
— Depois disso você ainda acha que vai dar certo? — indagou com medo da reposta. — Acha que nós vamos dar certo?
— Sim. Eu ainda esfregaria na cara da Beatriz que estou namorando um anjo. Ela vai morrer de inveja — disse brincalhão.
— Primeiro: eu não sou um anjo e não sei o que sou antes que pergunte.
— Você é um anjo! — falou animado.
— Não! Eu sou uma aberração! — as lágrimas tornaram a manchar sua face.
— Quem disse isso?
— O mundo. Minha mãe.
— Isso não importa, Miguel. Eu adoraria ter asas e poder voar como os pássaros!
— Você diz isso porque não sabe o inferno pelo qual eu passei.
— Quer falar sobre isso?
Miguel balançou a cabeça afirmativamente diversas vezes. Segurou a mão de Marco e sentou-se, puxando-o para sentar ao seu lado.
— Começou quando eu tinha uns sete anos. Elas começaram a nascer literalmente do dia pra noite. Doía tanto que eu achava que não aguentaria. Eu cheguei a desmaiar devido à dor. Imagina o desespero que eu senti. Meu pai me ajudou. Ele também tinha asas. Quando as minhas pararam de se desenvolver e só cresciam, ele fez essa “tatuagem”. É um selo que me ajuda a controlá-las. Ou deveria. Elas apareciam quando queriam. As outras crianças riam de mim na escola e minha mãe conseguiu convencer os professores que eu era apenas brincalhão e gostava de pregar peças. No começo eu aturei as implicâncias, mas elas começaram a me incomodar eventualmente. Eu tinha acabado de fazer nove anos quando meu pai desapareceu. Não disse o porquê nem se despediu. Evaporou.
Miguel parou e respirou fundo. Fincou as unhas na própria perna para se impedir de chorar.
— Você passou pela adolescência. Sabe a confusão que é. Eu nunca consegui “guardar” minhas asas nesse período. Elas ainda não eram tão grandes, então eu as escondia sobre camadas e camadas de roupas. Eu não podia sair de casa direito sem morrer de calor. Com isso, ter uma vida social se tornou um grande desafio. Eu não me importava tanto porque minha mãe sempre me apoiou. Depois Fernanda chegou. Ela também foi bem compreensiva. No último ano do Ensino Médio, conheci o Luca. Nós namoramos por três anos. Fizemos promessas de amor eterno, planos de morar no exterior e quase nos casamos. Antes de marcarmos a data, resolvi contar pra ele sobre minhas asas. Pra quê? Por que eu fui tão idiota?
Dessa vez, não tentou se impedir de chorar. Sim, ainda doía.
— Ele riu de mim. Me xingou. Falou que eu nem deveria ter nascido. Acrescente isso a minhas inseguranças e ao meu ódio por mim mesmo. Eu comecei a me sabotar. Não saia de casa, não comia. Minhas mães me fizeram morar com elas depois de três internações. Fiquei assim por quase dois anos. A Laura já estava grandinha e tentava de tudo para me fazer sorrir. Seus esforços rederam frutos. Comecei a tomar as rédeas da minha vida pouco a pouco. Ainda não me sinto confortável saindo de casa. Não sei como nos encontramos uma segunda vez. Me surpreendi ao ver que não tinha inventado uma desculpa para não ir à praia hoje. Ontem — corrigiu. — Geralmente é a Laura que me convence a sair e ela não precisou se esforçar muito dessa vez — admitiu.
Marco não falou nada. Abraçou o rapaz a sua frente como se nunca fosse soltá-lo.
— Sinto muito que teve que passar por isso. E você não foi o idiota. Esse tal de Luca que não soube apreciar o que tinha — disse por fim.
Miguel sorriu. Foi um sorriso de gratidão. Nuca esperava encontrar alguém que o aceitasse. Se nem ele próprio poderia fazê-lo, por que alguém mais o faria?
Embalou Marco e aninhou-se ainda em seu peito.
— Obrigado — sussurrou e sorriu timidamente.
Marco também sorriu, mas ainda não acreditava que alguém podia machucar uma pessoa como Miguel.
Separaram-se após alguns minutos. O abraço era aconchegante, reconfortante.
—Eu posso dormir na sua casa hoje? — Miguel perguntou. — Por favor, não pergunte por quê.
Marco assentiu. Voltaram à casa de Miguel para que ele pegasse algumas roupas. Sua mãe o aguardava no sofá logo na entrada da residência.
— Miguel…
O que quer que fosse que ela falaria, se perdeu em seu cérebro quando ela viu as asas do filho e viu Marco atrás dele.
— Você mostrou pra ele? Você por acaso perdeu a cabeça?! — sua voz estava firme e baixa com um quê de desespero bem mascarado.
— Sim. E ao contrário de você, ele não me acha uma aberração. Eu vou ficar com ele por uns dias. Preciso esfriar a cabeça.
Ana abriu a boca, mas apenas ar saiu dela. Quando o filho saiu do cômodo, ela se aproximou de Marco.
— Cuide bem dele — disse e começou a chorar.
Miguel acordou Laura antes de sair. Explicou-lhe que precisava ficar fora por um tempo, que tudo estava bem e que eles não se afastariam tanto quanto ela imaginava. Beijou sua testa e se despediu.
— Suas costas estão sangrando — Marco falou quando caminhavam para o carro.
— Eu sei. É normal. Tirá-las dói um pouco. Mas eu já me acostumei.
— Você vai caber no carro?
De ponta a ponta, quando abertas, as asas tinham quase dez metros e dois metros de altura quando fechadas.
— Tem razão — disse e com um grunhido as asas encolheram, logo voltando a ser uma tatuagem.
— Agora tá sangrando mais! — Marco gritou desesperado.
Miguel não se manifestou.
O percurso até a casa de Marco foi silencioso. Ele apresentou seu quarto ao visitante e apressou-se em pegar gazes e álcool.
— Senta — ordenou ao voltar ao quarto apontando para a cama.
Miguel obedeceu. Marco viu cicatrizes em suas costas quando limpou todo o sangue. Eram grandes, mas não chegavam a ser chamativas. As feridas abertas eram profundas e ele não soube o que fazer por um breve momento.
— Eu posso te enfaixar?
— Não precisa. Amanhã já terá cicatrizado.
Agora Marco ficou sem saber o que fazer ou dizer por mais de um breve momento.
— Ok — disse por fim. — Estarei na sala se precisar de mim
— Por quê?
— Vou dormir no sofá.
— Não. Fica aqui — falou ao segurar seu pulso, puxando-o levemente.
— Acho melhor não.
— Por que eu sua uma aberração? — surpreendeu-se ao perceber que não gritou. Sua voz não passou de um murmúrio.
— Não! Claro que não! Eu só… A gente se conhece há dois dias. Eu acho que eu só esperava algo mais… Romântico. Nós ainda nem nos beijamos.
Miguel sorriu e não conseguiu conter uma risada. Ergueu-se e aproximou-se lentamente. Deu mais um sorriso quando viu Marco corar e beijou sua bochecha.
— Agora nos beijamos — declarou. — Podemos dormir?
Marco sorriu.
— Só um instante — falou e recolheu umas roupas que estavam sobre uma cadeira. — Não olha — pediu.
— Não sei se você percebeu, mas eu já te vi só de bermuda.
— A gente pode ignorar esse detalhe — disse ao olhar para trás. — Você tá olhando! — resmungou.
Miguel riu e virou-se, ficando de costas para Marco. Este, por sua vez, vestiu-se rapidamente e voltou para a cama. Pegou a mão do outro rapaz e deitaram-se.
— Me faz um favor? — Miguel pediu.
— Qual?
— Me diz que eu não sou uma aberração. Só mais uma vez.
— Miguel, você não é uma aberração. Você é um anjo — disse com a voz suave. — Quer que eu repita?
— Não. Mas eu posso te abraçar?
Marco sorriu e entrelaçou suas mãos, depositando um beijo na mão de Miguel. Dormiram abraçados e com um sorriso dançando nos lábios.
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